Quais são os limites entre a vaidade e a doença?

Muitos se perguntam o que leva mulheres e homens a fazerem procedimentos estéticos em locais inapropriados e, muitas vezes, com profissionais inabilitados, arriscando a saúde ou a própria vida em busca do corpo perfeito. O ser humano, na grande maioria das vezes, é um ser imediatista, inserido em uma sociedade relativamente simplista, e que pouco evoluiu em relação a diversas questões importantes, como a vaidade. Um exemplo disso são os conceitos de beleza e feiura, discutidos e relatados desde a Grécia Antiga. No século IV a.C Policleto, um dos mais notáveis escultores gregos da época e pai da teoria da arte, produziu uma estátua denominada Cânone, na qual se estabelecia todas as regras de uma proporção ideal da figura humana. Mais tarde, o arquiteto Vitruvius ditaria as proporções corporais em frações da figura inteira: o rosto deveria ter 1/10 do comprimento total, a cabeça 1/8, o comprimento do tórax 1/4, e assim por diante. Dessa forma, todos os seres humanos que não se ajustassem a estas proporções eram vistos como feios. O papel de Vitruvius hoje é o papel da mídia, principalmente as mídias sociais.

Podemos ver a amplitude da influencia da mídia, seja ela tradicional ou social, quando observamos o número de procedimentos estéticos realizados. O Brasil é o segundo maior consumidor de procedimentos estéticos no mundo, representando 10,7%, e ficando atrás apenas dos Estados Unidos (17,9%). É um número bastante alto para um país que esta passando por uma crise econômica. Podemos concluir, então, que a estética é fundamental para o brasileiro.

Um estudo com 114 homens do Paquistão indicou que a mídia seria um dos fatores de risco para uma autoimagem corporal negativa. O estudo comparou paquistaneses que imigraram para os Emirados Árabes Unidos e homens que permaneceram no Paquistão, revelando que os imigrantes foram mais influenciados negativamente pela mídia. Um outro estudo de 2017 demonstrou que as mídias sociais podem ser um fator de risco para sintomas depressivos. Pacientes no quartil superior de frequência de uso de mídia sociais chegam a triplicar o risco de sintomas depressivos (OR = 3,05; IC de 95%, 2,03 - 4,59).

Isso nos leva a refletir sobre pacientes com quadro do espectro obsessivo-compulsivo (EOC), que é caracterizado por pensamentos intrusivos persistentes e subsequente comportamentos ou rituais que se tornam compulsões. Já o transtorno dismórfico corporal (TDC) é caracterizado por uma preocupação angustiante ou debilitante com pequenos defeitos na aparência, como "nariz imperfeito, bumbumpequeno, e lábios finos", entre outros. O TDC faria parte do espectro do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). As apresentações são bastante parecidas, ambas com pensamentos intrusivos e comportamentos obsessivos. Um estudo avaliou o julgamento dos pacientes com TDC, e concluiu que normalmente o julgamento é bastante prejudicado. Isso nos mostra o quanto estes pacientes podem se tornar vulneráveis para profissionais mal-intencionados. A prevalência do TDC chega ao redor de 1% na população geral, mas possivelmente é maior em pacientes que procuram cirurgias cosméticas. Um estudo demonstrou que, entre pacientes que procuram cirurgia cosmética, a prevalência pode chegar até 15%.

É importante ressaltar também a possível relação entre pacientes com imagem distorcida do corpo e o suicídio. Já há alguns anos existem estudos que demonstram um risco aumentado de suicídio entre mulheres que passaram por cirurgias estéticas, principalmente de aumento das mamas. Um estudo realizado nos EUA em 2001, contou com 13 mil mulheres que fizeram cirurgia de aumento de mamas. O trabalho observou que, em média, 14 anos após o procedimento cirúrgico, houve um significativo aumento na taxa de mortalidade padrão (usando como medida a taxa de mortalidade padronizada, TMP). Neste estudo a taxa foi de 1,63 (IC de 95%, 1,1 - 2,3).

A TMP em um estudo com mulheres finlandesas e dinamarquesas foi ainda maior: 4,26 (IC de 95%, 1,56 - 9,26) e 3,1 (IC de 95%, 1,7 - 5,2). Esta relação pode ser explicada pela alta prevalência de sintomas depressivos em pacientes com TDC. Um estudo com 178 pacientes com diagnóstico de TDC identificou que 74,2 % dos sujeitos tiveram sintomas depressivos.

Podemos concluir então que os transtornos do humor cursam com uma grande frequência nestes pacientes que buscam procedimentos estéticos é cosméticos, sem levar em consideração a real necessidade e os riscos. Algo que chama atenção é que muitos cirurgiões não estão atentos a este grave problema. Um estudo da International Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS), que contou com a participação de 265 médicos, constatou que 70% dos cirurgiões que responderam à pesquisa não consideram TDC uma contraindicação para as cirurgias. Nós médicos somos parte do problema, mas devemos começar a ser parte importante de uma mudança na sociedade. O limite entre a vaidade saudável e a vaidade patológica é tênue, por isso devemos ficar atentos aos sinais que os pacientes nos dão.

Artigo publicado no Medscape em 28 de agosto de 2018


Lítio e o mito do uso no idoso

O lítio é um elemento natural encontrado em pequenas quantidades em plantas e animais. É o elemento principal da pedra petalita, descoberta em 1800 pelo químico brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva. Estudos observacionais mostram que o lítio em água potável aumenta a longevidade humana.

As doses de lítio para o tratamento de doenças psiquiátricas são mais de cem vezes maiores do que a ingestão diária. Antes do uso na psiquiatria, o lítio foi usado no tratamento de gota, cálculo urinário, diabetes e reumatismo.

A história moderna do uso de lítio começa em 1949, quando John Cade observa efeitos em pacientes maníacos[2]. Do período de 1954 até 1970, vários estudos confirmaram o efeito do lítio em relação a episódios agudos de mania e na profilaxia de novos episódios da doença maníaco-depressiva.

Em 1970 o uso do lítio foi aprovado pela Food and Drug Administration (FDA) para a prescrição para quadros de mania.

O lítio em sua farmacocinética não se liga a nenhuma proteína, e é absorvido no sistema gastrointestinal e eliminado quase que exclusivamente pelos rins. Os níveis terapêuticos variam de acordo com a idade e com a associação de outras medicações como anti-inflamatórios não esteroides e diuréticos conversores da angiotensina.

Preconiza-se que pacientes acima dos 50 anos devam ficar com os níveis séricos entre 0,4 - 0,7 mmol/L. A comida não altera a absorção do lítio e normalmente se aconselha que o fármaco seja usado após as refeições, para evitar irritação gastrointestinal.

A meia-vida normalmente é de 24h, mas como a excreção é feita exclusivamente pelos rins, a função renal é central para determinar a meia-vida. Como a função renal diminui com a idade, consequentemente a meia-vida do lítio aumenta com ela.

Tratamento de quadros de mania e quadros mistos:

A eficácia do lítio em quadros de mania aguda tem a história mais longa de qualquer medicação.

Desde o primeiro relato em 1949 por John Cade, muitos estudos foram publicados comprovando o efeito do lítio em relação à mania aguda. O carbonato de lítio acabou se tornado o padrão-ouro no tratamento da afecção, passando a ser a droga a ser comparada.

Com isso, todas as "novas" drogas como valproato de sódio e carbamazepina, entre outras, seriam comparadas à eficácia do lítio. Um exemplo disso é um estudo feito com o valproato de sódio comparando os efeitos desta droga com o lítio.

Em um outro estudo comparativo de 2011, que usou dados de pesquisas com mais de 100 sujeitos, randomizados, duplo-cego e controlados para mania aguda, observou-se que o lítio apresenta resposta em relação a mania quase sem o efeito sedativo. Além disso, o estudo mostrou um número necessário para tratar (NNT) de 4 para o lítio, o que representa um número bastante expressivo, e o menor entre os estabilizadores do humor.

É importante ressaltar que, quanto maior o NNT, menos pessoas terão a resposta esperada, sendo a droga perfeita a que tem um NNT igual a 1. Os estudos atuais com lítio em quadros de mania normalmente usam uma redução de 50% dos sintomas em escalas como a Young Mania Rating Scale(YMRS). Além disso, é considerado remissão valores menores que 12 nesta escala.

O lítio continua a ser a droga de primeira-linha para o tratamento de episódios de mania, recomendada pela grande maioria das diretrizes internacionais. O lítio, normalmente na forma de carbonato, pode ser usado em casos agudos associado a antipsicóticos, por um curto prazo.

Com relação à população geriátrica, existe uma falta de estudos randomizados comparados a placebo. Uma recente revisão sistemática de 2017 avaliou os estudos que relacionavam o uso de lítio e quadros de mania.

Os critérios de inclusão foram os seguintes: pacientes de ambos sexos acima de 50 anos, com diagnóstico de transtorno afetivo bipolar (TAB) e estudos que avaliassem a eficácia e a segurança do uso no tratamento e na prevenção de quadros de mania.

Os estudos deveriam ter ao menos 10 sujeitos. Estes estudos compararam lítio com outros estabilizadores de humor ou com placebo, e avaliaram a tolerabilidade da droga por meio da frequência de descontinuidade. Foram excluídos estudos em que o lítio não estava sendo utilizado para o tratamento de TAB e de episódios maníacos.

Além disso, que o lítio fosse comparado a outras drogas que não fossem estabilizadores de humor, como antipsicóticos típicos ou atípicos. Assim, 15 estudos foram incluídos, e sete deles avaliaram eficácia e tolerabilidade do uso do lítio no tratamento em idosos – três estudos avaliaram apenas eficácia e cinco avaliaram tolerabilidade.

As conclusões desta revisão são de que o lítio é bem tolerado e efetivo neste subgrupo de pacientes, e pode ser considerado como droga de primeira-linha no tratamento de episódios maníacos. Além disso, parece ser mais efetivo em doses mais baixas e seu nível sérico deve ser controlado com mais rigor.

Tratamento dos quadros de depressão bipolar:

O tratamento da depressão bipolar é considerado complexo, pois a maioria dos pacientes acaba apresentando episódios mistos, nos quais a agitação psicomotora, o principal sintoma de mania, está presente – principalmente o aceleramento da velocidade do pensamento e a agitação motora.

Este seria um dos motivos pelos quais muitas vezes apenas o lítio não seria suficiente para o tratamento. Existem um número limitado de estudos randomizados comparados a placebo, e os que existem, em sua grande maioria, têm uma metodologia questionável.

Em um estudo de 2014 com pacientes bipolares tipo I e II em fases depressivas, que foram tratados abertamente com lítio, constatou-se uma remissão, depois de seis semanas, de 62%.

Tratamento de manutenção ou profilaxia de novos episódios:

A prevenção de novos episódios, ou ao menos a diminuição de frequência e gravidade em uma doença com o curso recidivo e cíclico como o TAB, é de extrema importância para a qualidade de vida dos pacientes e de seus familiares.

Antes de passarmos para as evidências existentes com relação ao uso de lítio para a manutenção ou para a profilaxia de novos episódios é importante entendermos o conceito de recaída na doença. Muitos autores consideram recorrência apenas os episódios que ocorram após seis meses ou mais depois da estabilização do episódio agudo.

O grande objetivo em longo prazo é evitar novos episódios, sejam eles depressivos, maníacos ou, na maioria das vezes, mistos. Com isto, tentativas de suicídio serão prevenidas, além da melhora das funções sociais e ocupacionais.

Entretanto sabe-se que completa remissão pode não ser possível para alguns pacientes, pois a grande maioria apresenta um dos três principais tipos de temperamento, que são sintomas subclínicos interepisódicos (distimia, hipertimia ou ciclotimia).

A fase de manutenção inicia-se, a princípio, na fase aguda, com o início do uso de estabilizadores de humor e não apenas usando-se medicações de uso agudo, como em alguns casos os antidepressivos e, muitas vezes, os antipsicóticos. As principais drogas usadas na fase de manutenção são os estabilizadores de humor.

Após as evidências demonstradas por Cade, de que o lítio poderia ter um papel importante no tratamento dos episódios agudos, o psiquiatra dinamarquês Mogens Schou, em 1967, administrou pela primeira vez o lítio para pacientes com TAB por longo prazo, e acabou notando que estes pacientes apresentavam menos recorrência de episódios de mania e depressão.

O primeiro estudo com lítio que o comparou com placebo para demonstrar eficácia foi chamado de estudo de descontinuação, no qual todos os sujeitos que estavam usando lítio antes de iniciar o estudo descontinuaram o uso. Um grande número de pacientes recaiu logo após começarem a usar placebo em vez de lítio.

Em uma revisão sistemática, em estudos usando métodos onde pacientes eram pré-selecionados (161 sujeitos), o lítio teve um tamanho de efeito muito grande (OR = 22,0; IC de 95%, 1,0 - 68,7). Já em estudos nos quais os pacientes não são pré-selecionados o tamanho do efeito foi menor, mas muito mais preciso pelo tamanho da amostra, de 495 pacientes (OR = 1,9; IC de 95%, 1,2 - 2,8). O estudo BALANCE, de 2010, randomizou abertamente 330 pacientes acima dos 16 anos, divididos entre: os que faziam uso de lítio em monoterapia, os que usavam valproato de sódio em monoterapia, e os que estavam em uso combinado entre os dois.

O índice de recaída foi muito parecido entre o grupo combinado e o grupo em uso de lítio em monoterapia. O maior índice de recaída se deu no grupo que usava valproato de sódio em monoterapia. Uma recente revisão sistemática de estudos observacionais comparou lítio a outros estabilizadores de humor, concluindo uma substancial superioridade do lítio, agregando dados da "vida real" aos dados provenientes dos estudos randomizados existentes.

Além disto, pacientes em uso de lítio têm uma necessidade menor de usar várias medicações ou polifarmácia. Um estudo com 4.035 sujeitos diagnosticados com TAB analisou o padrão de prescrição das principais classes de psicofármacos.

O tamanho do efeito para pacientes usuários de lítio usando menos de quatro drogas foi muito menor quando comparado ao para pacientes em uso de outros estabilizadores de humor (d de Cohen = 0,03 para usuários de lítio e 0,11 para usuários de valproato).

Efeitos colaterais:

O uso do lítio pode apresentar efeitos colaterais leves, graves e mesmo causar toxicidade. Entre os efeitos colaterais leves os mais comuns são sedação, boca seca, tremor de mãos, poliúria e polidipsia, náusea, diarreia e acne. Esta poliúria e polidipsia, quando graves, podem representar um quadro de diabetes insipidus.

A grande maioria destes efeitos colaterais são tratáveis. A sedação pode ser aliviada usando a apresentação de liberação lenta. Poliúria e polidipsia podem ser contornadas usando diuréticos tiazidicos, como hidroclortiazida 50 mg. Como este tipo de diurético o nível sérico de lítio aumenta. Por isso, os níveis séricos devem ser acompanhados com mais regularidade e, principalmente no idoso, as doses devem ser reduzidas ainda mais.

Quanto ao tremor de mãos, normalmente este efeito colateral pode ser contornado com o uso de betabloqueadores como propranolol, nas doses entre 20 mg e 120 mg. Devemos ressaltar que nos idosos deve-se ter muito cuidado com relação a hipotensão e queda.

Os efeitos colaterais mais sérios são divididos em três categorias: alterações tiroidianas, insuficiência renal crônica e alterações cardíacas. A alteração tiroidiana pode ocorrer tanto no início do tratamento, quanto pode aparecer após anos de uso da medicação. Portanto, é importante o monitoramento dos níveis de TSH. O aumento dos níveis de TSH podem indicar a necessidade do tratamento com levotiroxina.

Os efeitos do lítio sobre os rins se dão mais em longo prazo, normalmente depois de 20 anos de uso. Um estudo de 2015 analisou 630 pacientes que iniciaram o tratamento com lítio e que tiveram ao menos 10 anos de uso da medicação.

Ao final do estudo apenas 5% desta amostra apresentou insuficiência renal grave. São contraditórias as evidências de que estes pacientes com insuficiência renal grave deveriam parar com o uso do lítio, e ainda se este quadro seria reversível com a parada da medicação.

É de extrema importância o acompanhamento dos níveis de creatinina dos pacientes usuários de lítio, ao menos duas vezes ao ano. Uma importante medida para prevenir alterações renais e diminuir a possibilidade de poliúria seria usar o carbonato de lítio uma vez ao dia em vez de dividir a dose. Isto também ajudaria o paciente a aderir melhor à medicação.

Com relação às alterações cardíacas, a inversão da onda T é o achado mais frequente em eletrocardiograma. Outros achados incluem disfunção do nodo sinusal, bloqueio sinoatrial, prolongamento PR e QT, e taquiarritmias ventriculares. Alguns pacientes apresentaram casos mais graves, mas com uma frequência baixa, como por exemplo bloqueios cardíacos e padrões de Brugada.

É importante que pacientes idosos tenham monitoramento com ECG pelo menos uma vez ao ano.

Toxicidade:

Níveis de 0,8 mmol/L podem ser tóxicos em idosos que usam lítio, por isso os níveis terapêuticos nesta população devem ser mantidos em patamares menores do que para os adultos. Os sintomas de intoxicação por lítio podem variar desde diarreia, náusea, desequilíbrio, fraqueza, letargia, ataxia e vômitos até coma.

Os principais fatores que podem levar pacientes, principalmente idosos, a quadros de intoxicação por lítio são: desidratação, doenças infecciosas, doenças renais, e uso de diuréticos e anti-inflamatórios. Pacientes idosos usuários de lítio e os familiares destes devem sempre ser orientados sobre estratégias de hidratação e sobre os sintomas de intoxicação.

Artigo publicado no Medscape em 20 de agosto de 2018


Tabaco na adolescência e o risco de psicose

Tabaco na adolescência e o risco de psicose

Os altos índices de uso de tabaco por pacientes com transtornos psicóticos sugerem estratégias de automedicação, e algumas pesquisas estudam uma possível associação bidirecional. No entanto, meta-análises têm demonstrado uma forte associação entre o tabaco e o aumento do risco de psicose. Efeito relacionado à quantidade de tabaco (cigarros) também tem sido descrito. Esta associação tem persistido em estudos prospectivos após ajustes para status socioeconômico e abuso de drogas.

O objetivo deste estudo foi examinar a relação do uso diário de tabaco em adolescentes com idade entre 15 e 16 anos, e o risco de psicose aos 30 anos. Os autores tentaram responder a três hipóteses neste trabalho. A primeira era que fumar diariamente na adolescência seria um fator de risco independente para o desenvolvimento de psicose. A segunda hipótese era relacionar o aumento do risco de acordo com a quantidade. A terceira era entender se o início precoce do uso diário de tabaco resulta em um maior risco para o desenvolvimento de psicose quando comparado aos indivíduos com início tardio (após ajuste para múltiplos fatores de confusão, como experiências psicóticas e abuso de outras drogas).

Para a avaliação de experiências psicóticas foi usado um autoquestionário (PROD-screen), que avalia sintomas prodrômicos de psicose. Para este estudo foi utilizada uma amostra de 6.081 indivíduos, dos quais 47,7% eram garotos provenientes da população do norte da Finlândia. O uso de tabaco foi categorizado em três grupos: não fumantes, fumantes de um a nove cigarros/dia e acima de 10 cigarros/dia.

O estudo demonstrou que pacientes que fumavam acima de 10 cigarros por dia apresentaram um risco de psicose (HR = 3,15; IC de 95%, 1,94 - 5,13). Quando ajustado para experiência psicótica no baseline, a associação persistiu (HR = 2,87; IC de 95%, 1,78 - 4,68) e permaneceu significativa quando corrigida para múltiplos fatores de risco conhecidos como uso de Cannabis, uso frequente de álcool, uso de outras drogas, uso de substância pelos pais e psicose. Além disto, quanto maior o número de cigarros/dia maior o risco de psicose (OR = 1,05; IC de 95%, 1,01 - 1,08).

Para lembrar:

O uso pesado (acima de 10 cigarros/dia) de tabaco na adolescência pode estar associado com um maior risco de psicose. É necessário que campanhas antitabaco sejam feitas e direcionadas para esta população, que é muito mais vulnerável. O controle pelas autoridades também deve ser mais rígido, com medidas como aumentar o preço dos cigarros, fiscalizar a venda para menores e proibir da venda de cigarros avulsos, além de proibir a venda de tabaco nos arredores de escolas.

Experiências psicóticas na pré-adolescência: o que precede a doença mental grave?

Transtornos psicóticos raramente ocorrem na infância. No entanto, sintomas psicóticos como alucinações e pensamentos delirantes são fenômenos comuns nesta fase, com uma prevalência de 17% entre crianças com idade entre nove e 12 anos. Algumas pesquisas demonstram que experiências psicóticas na adolescência podem sinalizar psicose em outros momentos da vida. Entretanto outros estudos relatam que este tipo de experiência pode ser comum nos adolescentes. Experiências psicóticas são preditores de vários tipos de sintomas não psicóticos como ansiedade, depressão e comportamento suicida. Nas doenças não psicóticas a presença deste tipo de experiência demonstra um sinal de maior gravidade, incluindo maior comorbidade e pior prognóstico. Além disto, em torno de 90% das crianças acima de 11 anos que apresentam sintomas psicóticos desenvolvem pelo menos uma doença psiquiátrica por volta dos 38 anos. Alguns estudos têm demonstrado uma relação entre sintomas psicóticos e adversidades na infância.

Este estudo teve três objetivos: a avaliação comportamental e emocional que ocorrem durante experiências psicóticas; o exame e a relação de quais problemas que se desenvolvem em crianças com idades de três e seis anos foram associados com experiências psicóticas aos 10 anos; por último, o exame e a relação entre as adversidades na infância e as experiências psicóticas aos 10 anos. Análises separadas foram feitas para adversidades que ocorreram antes dos cinco anos. Além disso, as adversidades foram divididas entre físicas, maus-tratos, sexuais e outras.

Um total de 3.984 mulheres foram incluídas. A amostra deste estudo foi retirada de uma coorte prospectiva desde a idade fetal em diante, no período de 2002 a 2006, incluindo mulheres grávidas de Roterdã, na Holanda. Quando as crianças completaram 10 anos, as respectivas mães responderam a escala CBCL /6-18, um instrumento validado internacionalmente para avaliar questões emocionais e comportamentais. A escala consiste em oito domínios: ansiedade/depressão, isolamento/depressão, queixas somáticas, problemas sociais, problemas de pensamento, problemas de atenção, comportamento de quebra de regras e comportamento agressivo.

Experiências psicóticas foram apresentadas por 20% da amostra. Aos três anos, constatou-se um aumento de 10% do risco da criança apresentar problemas emocionais e comportamentais. Respectivamente: OR = 1,10; IC de 95%, 1,06 - 1,15 e OR = 1,03; IC de 95%, 1,02 - 1,05). O risco de a criança apresentar problemas de ansiedade/depressão aos seis anos foi de 11% (OR = 1,11; IC de 95%, 1,06 - 1,15). Abusos sexuais quase triplicaram o risco (OR = 2,65; IC de 95%, 1,21 - 5,80). As adversidades na infância mais do que dobraram o risco (OR = 2,24; IC de 95%, 1,72 - 2,92).

Para lembrar:

Ansiedade e depressão foram preditores relevantes após adversidades na infância e abuso sexual. Isto nos mostra o quanto os transtornos de humor na infância são importantes e relevantes. É necessário entendermos melhor o curso dos transtornos de humor na infância e qual a repercussão deles na adolescência e no adulto. Para isso, mais estudos prospectivos de longa duração são necessários. É de extrema importância que profissionais de saúde questionem as crianças e adolescentes sobre a possibilidade de existência de abuso sexual.

Sintomas afetivos na adolescência e mortalidade

Sintomas afetivos na adolescência são associados a uma série de desfechos negativos no adulto, incluindo baixo nível educacional, comportamentos nocivos em relação à saúde e doença mental no adulto, resultando em um aumento da morbidade/mortalidade. Desta maneira pode-se entender que os sintomas afetivos, por si só, seriam um fator de risco para mortalidade prematura. Entretanto, poucos estudos examinaram esta relação, e alguns deles têm falhas metodológicas, como falta de ajustes para fatores de confusão.

Para este estudo foi utilizada a coorte NSHD, conhecida como coorte inglesa, de pacientes nascidos em 1946. Foram incluídos 3.884 participantes. Os adolescentes foram avaliados por professores usando o questionário Rutter B. Foram geradas três categorias: sem sintomas/sintomas leves, sintomas moderados e sintomas graves. A mortalidade foi obtida por meio do registro nacional de saúde do Reino Unido. A causa da morte, que foi codificada pela CID-9 ou CID-10, foi focada em causas cardiovasculares, diversos tipos de câncer e causas externas (violentas, acidentes ou suicídio). O acompanhamento foi dos 15 anos de idade até o óbito do participante (excluindo participantes que mudaram de país).

Após 53 anos de seguimento, 12,2% dos participantes da coorte morreram. Sintomas afetivos graves foram associados com aumento da mortalidade quando comparados com pacientes sem sintomas/sintomas leves. Pacientes com sintomas afetivos graves tiveram aumento do risco para doenças cardiovasculares (HR = 1,92; IC de 95%, 1,11 - 3,32) e aumento do risco de câncer (HR = 1,52; IC de 95%, 1,00 - 2,31).

Para lembrar:

Pacientes com sintomas afetivos graves na adolescência apresentam uma mortalidade prematura, principalmente em relação a doenças cardiovasculares, mas também em relação a diversos tipos de câncer. É de extrema importância que ocorra a prevenção e o tratamento destes pacientes. Transtornos de humor na criança e no adolescente devem ser levados mais a sério e não simplesmente tratados como uma fase da vida do paciente.

Artigo publicado no Medscape em 31 de julho de 2018


O suicídio e a controvérsia do diagnóstico de “depressão”

Há algumas semanas dois expoentes, duas pessoas talentosas e admiradas mundialmente – uma do mundo da moda e outra da área de gastronomia/entretenimento – chocaram o mundo ao tirarem as próprias vidas. Anthony Bourdain, diziam muitos, tinha o emprego dos sonhos, viajando pelo mundo e mostrando em seu programa a cultura e a culinária de lugares desconhecidos.

Kate Spade era uma conhecida estilista norte-americana que influenciou milhares de mulheres com seu trabalho inovador, irreverente e feminino. Ambos cometeram suicídio na mesma semana e da mesma maneira, tragicamente trazendo à tona, mais uma vez, a discussão sobre o tema.

Muitas questões já foram abordadas em relação ao suicídio, que é um grande problema de saúde pública, mas não restam dúvidas de que ainda há muito espaço para discussões sobre o assunto.

Primeiramente, a sociedade precisa ser conscientizada e orientada sobre o problema, parando de tratar o assunto de uma maneira simplista. Antes de mais nada, a classe médica precisa compreender melhor o que realmente esta por trás da grande maioria dos casos de suicídio para poder orientar a população leiga.

Muitas vezes, quando o assunto é tratado de maneira pública, o termo “depressão” é utilizado. Entretanto o termo se popularizou de uma maneira incorreta do ponto de vista médico, sendo mal compreendido por muitos. Na psiquiatria existem quatro tipos de episódios depressivos: melancolia, depressão mista, depressão neurótica e depressão pura.

melancolia é um tipo grave de depressão, geralmente não associada a ansiedade, onde os pacientes podem apresentar grave retardo psicomotor e acentuada anedonia. A característica principal da melancolia é a completa ausência de reatividade do humor, além do fato de que os pacientes são pouco responsivos a estressores psicossociais.

Já na depressão neurótica os pacientes apresentam sintomas depressivos menos graves, porém apresentam uma proeminência maior de sintomas ansiosos, além de uma sensibilidade aumentada a estressores psicossociais. A depressão pura se caracteriza pela total ausência dos outros tipos de depressão, ou seja, os pacientes apresentam os critérios definidos pelo DSM para depressão clínica, mas não apresentam sintomas maníacos ou ansiedade.

O quadro do paciente com depressão pura é geralmente episódico, apresentando-se eutímico entre os episódios de depressão.

A depressão mista, desde Kraepelin, é o tipo de episódio mais comum dentro do conceito de doença maníaco depressiva, no qual os polos (depressão/mania) não são importantes, mas sim o curso recorrente da doença.

Usando como exemplo um paciente que apresenta 20 episódios depressivos e nenhum episódio de mania ou um paciente que apresenta 10 episódios depressivos e 10 episódios maníacos. Ambos teriam o mesmo diagnóstico de doença maníaco-depressiva. Este conceito foi extinto a partir do DSM-III, em 1980.

depressão mista ou episódio misto pode ser definida, segundo Koukopoulos, como um quadro de depressão maior associado a agitação psicomotora, aumento da fala, tensão muscular, fuga de ideias, labilidade de humor, irritabilidade ou humor extremamente reativo.

Este conceito é importante, pois muitos pacientes que acabam desenvolvendo episódios mistos são pacientes com temperamento hipertímico, que envolve sintomas leves de mania, como aumento da energia, necessidade diminuída de sono, libido aumentada, sociabilidade, extroversão e bom senso de humor.

Esses indivíduos muitas vezes correm mais riscos, são mais criativos, audaciosos, se impõem cargas de trabalho maiores (workaholics). A criatividade é algo que desde muito tempo se correlaciona com os transtornos do humor. Por isso, em muitas profissões que têm em comum a criatividade (artistas, cantores, estilistas, chefs e apresentadores de televisão) muitas vezes nos deparamos com suicídios.

Os episódios mistos são um grande fator de risco para o suicídio, pois muitas vezes os pacientes apresentam-se com ideação suicida e com muita agitação psicomotora, o que os leva a colocar em prática a ideia de morte. Os pacientes normalmente apresentam-se agitados e ansiosos, sentindo um sofrimento extremamente grande, para o qual a única saída é a morte.

Sabe-se que com relação a Anthony Bourdain ele não tinha tomado um único copo de bebida alcoólica ou usado qualquer tipo de droga, o que nos faz imaginar o tamanho do sofrimento dele.

Outro fator importante que contribui para o aumento da incidência dos episódios mistos é o crescente uso de antidepressivos, que tem ocorrido desde os anos oitenta, com a introdução dos antidepressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina.

O primeiro a ser lançado no mercado, e ainda o mais conhecido, é a fluoxetina. Com a ampliação do conceito de “depressão” pelo DSM-III, consequentemente popularizaram-se as prescrições de antidepressivos. Esta classe de medicação está intimamente ligada com o aumento do número de episódios mistos, podendo levar também a um aumento das ideações suicidas e, consequentemente, a tentativas de suicídio nos pacientes.

Uma meta-análise de 2016 concluiu que o uso de antidepressivos em pacientes fisicamente saudáveis chegava quase a dobrar o risco de suicídio e violência (OR = 1,85; IC de 95%, 1,11 – 3,08) e um NNH de 16, o que significa que para cada 16 tratados com antidepressivos, um paciente cometerá suicídio.

Esses números deveriam chamar muito a atenção a comunidade médica. O tratamento dos episódios mistos deveria ser feito com estabilizadores de humor e doses baixas do que classificamos como antipsicóticos.

Outro fator importante pouco discutido ainda é a influência da luz solar sobre os pacientes que cometem suicídio. Este dado é conhecido há muito tempo, principalmente no hemisfério norte, onde existe um pico de suicídio na primavera, entre os meses de março a junho, com uma grande intensidade em abril.

Kraepelin já entendia que pacientes com sintomas depressivos dos invernos prolongados entravam em episódios mistos com o aumento gradual da luz solar. Não por acaso os suicídios destas duas celebridades ocorreram nesta época do ano.

Devemos começar a tratar a prevenção do suicídio de maneira diferente, com mais vigor do que se vem fazendo hoje.

Em primeiro lugar devemos começar a ser mais críticos com relação a diagnósticos, entendendo que sintomas maníacos são extremamente importantes, independentemente do tempo que ocorram ou da intensidade.

Devemos parar de tratar os sintomas e sim tratar as doenças, começando pela mais letal delas: a doença maníaco-depressiva, e principalmente os episódios mistos. As altas prescrições de antidepressivos devem ser revistas, e as medicações  adequadas para o tratamento dos transtornos do humor devem ser mais utilizadas.

Não podemos mais negar dados tão concretos sobre a prevenção de suicídio, como doses baixas de lítio, uma medicação barata e de fácil acesso. Esta droga chega a reduzir aproximadamente 90% dos suicídios em estudos controlados comparados com placebo.

Alguns estudos demostram a eficácia do uso de caixa de luz para o tratamento de pacientes com sintomas depressivos em períodos de inverno.

O estigma com relação ao suicídio ainda é grande. Se a classe médica, principalmente a psiquiátrica, não entender a necessidade de mudança urgente no diagnóstico e no tratamento dos transtornos de humor, muitos dos nossos ídolos serão interrompidos abruptamente da possibilidade de nos prover com suas músicas, receitas, roupas ou até mesmo decisões políticas, além de que muitos dos nossos entes queridos poderão tirar as próprias vidas.

Eu costumava assistir semanalmente aos episódios de Anthony Bourdain pelo mundo e sentirei falta da genialidade de um chef que conseguiu entrevistar o presidente dos Estados Unidos em um simples restaurante no Vietnã.

Artigo publicado no Medscape em 16 de julho de 2018


O caso dos testes farmacogenéticos em psiquiatria

Nos últimos meses diversas reportagens em jornais e revistas destinadas ao públicoem geral têm abordado os testes farmacogenéticos para o auxílio do tratamento de algumas doenças psiquiátricas, como a depressão maior. Além disto, diversas empresas têm propagandeado a venda destes testes. Quando se trata de tratamento de doenças psiquiátricas não apenas os médicos especialistas procuram algo concreto em que se basear, mas os pacientes também. Tais testes prometem auxiliar o clínico, apresentando uma lista de antidepressivos com os quais o paciente supostamente teria uma chance de melhor resposta. A psiquiatria, no entanto, está ainda um pouco distante desta realidade.

Atualmente, são poucas as evidências científicas em relação à utilidade destas ferramentas. Uma recente revisão sistemática identificou cinco estudos sobre testes genéticos em depressão maior. A revisão apresenta algumas questões que precisam ser apontadas. Por exemplo: alguns estudos foram financiados pelas empresas que desenvolvem testes farmacogenéticos. Outro fator importante é que os estudos eram relativamente pequenos – o maior deles contava com 685 participantes. Entende-se que amostras para estudos genéticos devem girar em torno de milhares de participantes, para que se tenha alguma relevância estatística. Três estudos eram abertos e não controlados, entendendo-se que alguns pacientes poderiam apresentar efeito placebo. Apenas dois estudos eram randomizados, duplo-cego e prospectivos.

Um deles não demonstrou significância. Um estudo de 2017 usou um escore de risco poligênico (SRP) para estimar a contribuição multialélica em eficácia de antidepressivos, e na sobreposição de depressão maior e esquizofrenia. Este SRP foi construído e testado como preditor para resposta de melhora de sintomas em estudos que testavam a resposta de antidepressivos (STAR*D e GENDEP). Para isto foram incluídos 736 indivíduos do estudo GENDEP e 1409 do estudo STAR*D. Além destes, outros 3.756 indivíduos de outros estudos foram incluídos. Este trabalho novamente não conseguiu predizer resposta de antidepressivos usando SRP. Novamente é preciso entender que a amostra era pequena para um estudo como este. Em 2016 uma sessão “Personal View” do jornal The Lancet Psychiatry concluiu que existem incertezas sobre a validade e utilidade destas ferramentas.

Outro problema dos testes é que os resultados não diferem o tempo de resposta do antidepressivo. A grande maioria deles não reconhece que os benefícios são apenas em relação ao curto prazo. Estas ferramentas não traduzem a eficácia em longo prazo, e esta informação muitas vezes não está clara para pacientes ou médicos. Ademais, a grande maioria dos médicos que indicam o uso destas ferramentas o faz porque já não consegue mais dar respostas aos pacientes que têm pouca ou nenhuma resposta aos antidepressivos.

Muitos pacientes acabam fazendo uso de quase todos os antidepressivos disponíveis no mercado sem resposta adequada, sendo considerados pacientes com depressão resistente ao tratamento. É como se o paciente não respondesse a nenhum antibiótico e fosse indicado um antibiograma, mas infelizmente não é este o caso. A questão mais relevante quando se fala em depressão resistente é o problema do erro no diagnóstico.

Estudos demonstram que um terço das chamadas depressões resistentes são casos de erro no diagnóstico, principalmente de depressão bipolar. Ou seja, a grande maioria destes pacientes não teria um problema de ineficácia da medicação, mas sim do diagnóstico.

Muitas vezes, quando se avalia o exame do estado mental não se leva em consideração sintomas leves ou subclínicos de mania, como agitação psicomotora. Um exemplo seria os pacientes com transtorno bipolar do tipo II. Na grande maioria das vezes, estudos demonstram que os antidepressivos são ineficazes nestes pacientes. Pacientes que realmente têm o diagnóstico de depressão maior apresentaram uma resposta aguda a antidepressivos, ao redor de 60%-70%. Entretanto, apenas em torno de um terço apresentará resposta em logo prazo, quando se considera manutenção (profilaxia de novos episódios). O estudo STAR*D mostra que depois de múltiplas falhas em responder a antidepressivos a chance de resposta a um outro antidepressivo agudamente chega a apenas 15%.

Devemos ter cautela em relação a novas tecnologias que nos são apresentadas, principalmente em uma especialidade como a psiquiatria, onde não temos sintomas patognomônicos, e muito menos marcadores biológicos. Por enquanto os testes farmacogenéticos são apenas apostas que podem sair muito caro para os pacientes.

Artigo publicado no Medscape em 26 de junho de 2018


Associação de irritabilidade, depressão/ansiedade na infância com ideação e tentativas de suicídio na adolescência

Uso de eletroconvulsoterapia em tratamento de manutenção e continuidade na depressão: revisão sistemática e meta-análise

Os episódios depressivos são altamente recorrente, trazendo ao paciente substancial morbidade e mortalidade. Estudos longitudinais de mais de 15 anos mostram uma taxa de recorrência ao redor de 85%. A eletroconvulsoterapia (ECT) é um tratamento efetivo para episódios depressivos agudos, porém não é comprovada para a manutenção ou profilaxia de novos episódios.

A diferença entre o tratamento de continuidade e o de manutenção é  puramente temporal. O tratamento de continuidade refere-se ao tratamento dos seis meses após a remissão do episódio agudo. Já o tratamento de manutenção refere-se ao tratamento além dos seis meses. O objetivo do primeiro é evitar recaída, e do segundo é evitar recorrência.

Com o aparecimento da farmacoterapia os estudos sobre ECT diminuíram, mas voltaram na década de 80, e ainda com mais força nos últimos anos. Alguns estudos randomizados e não randomizados sugerem que o tratamento de continuidade e manutenção são bem tolerados e efetivos na prevenção de recorrência e recaída. No entanto a maioria das diretrizes e revisões sistemáticas mostram resultados inconsistentes. Esta é a primeira meta-análise de estudos randomizados sobre estudos de continuidade e manutenção em transtornos depressivos.

Nesta revisão foram os utilizados os bancos de dados MEDLINEEmbasePsycINFOClinicaltrials.gov e Cochrane. Os critérios de inclusão foram: estudos randomizados de continuidade ou manutenção sem restrição de língua, idade mínima de 18 anos, diagnóstico de depressão maior, remissão após uso agudo de ECT, continuidade no uso de ECT por seis meses ou mais. Depressão bipolar também foi incluída. A comparação dos estudos foi feita entre ECT associada a uso ou não de antidepressivos e uso de antidepressivos apenas.

De 1.567 estudos, apenas cinco foram incluídos na meta-análise, envolvendo 436 pacientes. A análise dos dados demonstrou que o uso da ECT para tratamento de continuidade e manutenção, ambos em conjunto com farmacoterapia, foi associado a menos recaídas e recorrências quando comparado à farmacoterapia sozinha, após seis meses e um ano de tratamento agudo com ECT (RR = 0,64; IC de 95%, 0,41 - 0,98 e RR = 0,46; IC de 95%, 0,21 - 0,98). No entanto não houve dados suficientes para realizar a meta-análise tanto para o tratamento de continuidade quanto com relação à manutenção.

Para lembrar:

É importante ressaltar que as evidências que existem até hoje não suportam o uso da ECT para tratamento de manutenção, seja na depressão unipolar ou bipolar. No entanto, esta ferramenta é de extrema importância no tratamento de episódios agudos em ambas doenças.

Disparidade racial e idade em taxas de suicídio entre jovens americanos entre 2001 e 2015

As taxas de suicídio entre brancos nos EUA tradicionalmente eram mais altas que entre os negros em todas as idades. No entanto, as taxas de suicídio entre crianças negras na faixa etária entre cinco e 11 anos aumentou nos períodos de 1993 a 1997, e de 2008 a 2012, e diminuiu entre brancos da mesma idade. A literatura existente não descreve adequadamente as disparidades do suicídio entre jovens.

Os dados do estudo foram obtidos do Web-based Injury Statistics Query and Reporting System (WISQARS), dos Centers for Disease Control and Prevention (CDC). A taxa de suicídio foi calculada por meio do WISQARS. Foram calculados riscos relativos entre idades comparando taxas entre brancos e negros. Para tanto foi usado regressão binomial.

Foram identificados 1.661 suicídios entre jovens negros (73,8% meninos e 26,2% meninas) e 13.341 suicídios entre jovens brancos (74,3% meninos e 25,7% meninas) entre 2001 e 2015. Durante este período a taxa de suicídio entre negros foi 42% menor que entre brancos, no entanto esta diferença foi fortemente distinta entre grupos de idade. No grupo de crianças na faixa etária de cinco a 12  anos, o suicídio entre crianças negras teve uma incidência significativamente maior que entre as crianças brancas (RR = 1,82; IC de 95%, 1,59 - 2,07). Adolescentes negros com idades entre 13 e 17 anos tiveram uma taxa de suicídio quase 50% menor que os adolescentes brancos (RR = 0,51; IC de 95%, 0,48 - 0,53). Se observarmos a estratificação por sexo, as meninas têm um risco de quase quatro vezes maior de cometer suicídio na faixa etária de cinco a 11 anos, enquanto os meninos têm um risco 2,5 vezes maior. O risco de suicídio entre os brancos só se torna maior a partir dos 13 anos. O estudo não aborda causas ou mecanismos destas diferenças, mas entende que é importante usar estas diferenças nas políticas de prevenção do suicídio.

Para lembrar:

É importante ressaltar que Brasil e EUA tem algumas similaridades históricas e culturais, incluindo a história de escravidão da população africana, sendo o Brasil o último país a libertar os escravos. Estudos como este são importantes para entendermos como devemos desenvolver políticas de prevenção ao suicídio levando em consideração particularidades de cada estrato da população. Um estudo brasileiro com foco na disparidade racial seria de extrema relevância para a saúde pública.

Associação de irritabilidade, depressão/ansiedade na infância com ideação e tentativas de suicídio na adolescência

Tentativas de suicídio são um problema de saúde pública. Indivíduos com transtornos do humor apresentam um risco maior de desenvolver ideação suicida, tentativa de suicídio, e de cometer suicídio. Por isto é importante reconhecer as manifestações iniciais das doenças que estão associadas a comportamentos suicidas.

Irritabilidade é um dos sintomas centrais dos transtornos do humor. No entanto, nas crianças a irritabilidade é observada com mais frequência do que nos adultos, chegado a um terço das crianças diagnosticadas com estes transtornos. Em alguns pacientes a irritabilidade se acentua, chegando a se transformar em ira.

Apesar da importância da interação da irritabilidade e da depressão na infância, apenas dois estudos longitudinais investigaram a relação delas com o comportamento suicida. Ambos estudos sugerem que a irritabilidade aumenta o risco de suicídio, independentemente dos sintomas de depressão. Nenhum destes estudos examinou a contribuição conjunta de ambos sintomas.

Este estudo longitudinal prospectivo teve como objetivos observar o perfil de irritabilidade e depressão e/ou ansiedade durante o curso da infância, e examinar a associações desses quadros com comportamentos suicidas durante a adolescência. O estudo incluiu 1.430 participantes, sendo 47,3% meninos e 52,7% meninas. O acompanhamento durou até os 17 anos de idade, e os pacientes faziam parte do estudo longitudinal de desenvolvimento de Québec (Canadá). No modelo de análise de regressão logística pacientes com alta irritabilidade e depressão/ansiedade apresentavam um risco duas vezes maior de comportamento suicida (OR= 2,22; IC de 95%, 1,32 - 3,74). Pacientes com moderada irritabilidade e poucos sintomas depressivos/ansiosos ainda apresentaram um risco relativamente alto em relação ao suicídio (OR = 1,51; IC de 95%, 1,02 - 2,25). Meninas com alta irritabilidade e com muitos sintomas depressivos/ansiosos têm um risco ainda maior, chegando a uma OR de 3,07 (IC de 95%, 1,54 - 6,12).

Para lembrar:

Crianças que manifestarem alta irritabilidade associada a sintomas de humor têm maiores chances de apresentar comportamentos suicidas, como ideação e tentativa. Estas crianças, quando apresentarem além destes, fatores de risco como história familiar de suicídio ou tentativa, devem ser acompanhas com mais cuidado. Em grande parte dos casos o carbonato de lítio é a única medicação com ação profilática quanto ao suicídio, devendo ser utilizada mesmo em crianças.

Artigo publicado no Medscape em 14 de junho de 2018


mania provocada por falta de sono e o risco de psicose puerperal em mulheres com transtorno afetivo bipolar

Mania provocada por falta de sono e o risco de psicose puerperal em mulheres com transtorno afetivo bipolar

Mulheres com transtorno afetivo bipolar (TAB) têm um risco aumentado de apresentar quadros de psicose (incluindo episódios de mania ou episódios de depressão psicótica) no período puerperal. Estes quadros normalmente são chamados de psicose puerperal (PP), sendo que a maioria dos episódios tem início agudo e é mais comum nas duas primeiras semanas de puerpério. Na população geral a psicose puerperal afeta uma a cada mil mulheres. Entretanto, no caso de mulheres diagnosticadas com TAB, de 20% a 30% delas podem apresentar episódios de PP.  É importante ressaltar que algumas questões neste período especifico das mulheres podem funcionar como importantes gatilhos, como mudanças na medicação, adaptação psicossocial à maternidade, complicações obstétricas, além de grandes alterações hormonais que ocorrem após o parto. Algumas questões podem estar envolvidas na etiologia do episódio, como primiparidade, desregulação do sistema imune e fatores genéticos.

No entanto, um outro gatilho ainda pouco estudado que pode estar envolvido no desencadear da PP é a alteração ou a privação de sono. A falta de sono normalmente antecede os episódios maníacos. Existem poucos estudos relacionando a falta de sono no período perinatal e psicose puerperal. Este estudo tem como hipótese que mulheres com TAB que relataram episódios de mania desencadeados por falta de sono seriam mais predispostas a apresentar PP do que as mulheres que não apresentaram alteração de sono como gatilho para episódios maníacos.

O estudo analisou dados de 870 pacientes diagnosticadas com TAB da coorte da Bipolar Disorder Network que tenham dado à luz. Todos os diagnósticos foram realizados por meio de entrevistas estruturadas. Informações sobre a causa do episódio de humor que teve relação com alteração de sono foi retirada da entrevista estruturada. Taxas de psicose puerperal foram comparadas entre mulheres que reportaram e que não reportaram episódios de humor causados por perda de sono.

Mulheres que relacionaram a falta de sono ao episódio de mania têm um risco de mais de duas vezes em comparação as que não tiveram alteração de sono (OR = 2,09, IC de 95%, 1,47 - 2,97). Também houve relação significativa da perda de sono com episódios depressivos e psicose puerperal.

Para lembrar:

A questão da higiene do sono deve ser discutida com pacientes com diagnóstico prévio de TAB durante a gravidez. O suporte da família durante este período é de suma importância para o bem-estar da paciente e consequentemente do bebê. Algumas estratégias como a drenagem do leite materno para que outra pessoa possa amamentar o lactente durante a madrugada é uma delas.

Maus-tratos na infância e automutilação: uma revisão sistemática e meta-análise

A importância clínica da automutilação, definida como um ato direto e deliberado de destruição de tecido do corpo na ausência de intenção suicida, tem crescido desde a década passada. Baseado em dados de 2014, a prevalência deste comportamento varia de 5,5% em adultos a até 17,2% em adolescentes. Apesar da maioria dos pacientes que apresentam estes sintomas repetitivamente param em alguns anos, mas aproximadamente 20% têm um curso mais crônico, persistindo por mais de cinco anos. Alguns estudos concluíram que automutilação é um preditor mais forte para tentativas de suicídio do que tentativas passadas de suicídio. Algumas questões em relação aos maus-tratos estão ligadas a automutilação, principalmente o abuso sexual na infância.

Os objetivos desta revisão sistemática foram os seguintes: (1) prover uma meta-análise sistemática sobre maus-tratos na infância, os subtipos e a relação deles com a automutilação; (2) avaliar a força da associação entre os subtipos de maus-tratos e a automutilação; (3) quantificar a associação entre as formas de maus-tratos e a gravidade da automutilação; e (4) fazer uma revisão qualitativa dos estudos sobre os mediadores e moderadores destas associações.

Para tanto, realizou-se uma meta-análise sobre maus-tratos na infância compreendendo abuso em geral, abuso sexual, abuso físico e negligência, abuso emocional e negligência, e suas relações com automutilação. Foram identificados 71 artigos. Abuso em geral teve uma associação com automutilação três vezes maior do que quando comparado a crianças que não sofreram abuso (OR = 3,42, IC de 95%, 2,74 - 4,26). Abuso emocional teve uma OR igual a 3,03 com IC de 95%, entre 2,56 e 3,54.

Para lembrar:

A pesquisa da história de abuso, principalmente o abuso sexual, e a presença de sintomas de automutilação na anamnese é essencial para que se faça o diagnóstico diferencial correto entre transtorno afetivo bipolar e transtorno de personalidade borderline. Pesquisas mostram que abuso sexual combinado com automutilação são muito mais frequentes em pacientes com transtorno de personalidade bordeline. Sempre lembrando que não existem sintomas patognomônicos na psiquiatria.

Estados mistos e suicídio: será o efeito do estado misto no comportamento suicida mais do que a soma de suas partes?

Estados mistos são descritos como a combinação de sintomas depressivos e sintomas maníacos. Muito caracterizados por ansiedade, irritabilidade e agitação psicomotora, ocorrendo em mais de 20% dos pacientes com transtorno afetivo bipolar (TAB). A associação de suicídio e TAB é cerca de 20 vezes maior do que na população em geral, e os estados mistos são particularmente considerados um grande fator de risco para suicídio. Um estudo prospectivo com 120 sujeitos com TAB tipo I, com mais de 10 anos de curso da doença, demonstrou que 37% deles apresentaram episódios mistos e tiveram um curso mais crônico da doença. Sujeitos com episódios mistos também tiveram mais tentativas de suicídio.

A hipótese deste estudo é de que o comportamento suicida é maior nos episódios mistos do que seria esperado nos episódios maníacos ou depressivos. Para isto, foram incluídos 429 participantes com TAB do Instituto Nacional de Doença Mental para Estudo Colaborativo para Depressão (CDS). O CDS foi um estudo observacional prospectivo com 909 participantes caucasianos. Os autores definiram o critério de inclusão para episódio misto como ao menos um episódio de humor com sintomas de mania e depressão durante o acompanhamento semanal. O comportamento suicida foi definido amplamente como suicídio completo ou uma tentativa de suicídio. A história de tentativas de suicídio foi avaliada usando a escala SADS.

Pacientes com estados mistos têm um risco maior de apresentar comportamento suicida quando comparados a indivíduos sem história de sintomatologia mista. Em pacientes com TAB tipo I o risco aumenta durante episódios de mania em HR = 1,96 (IC de 95%, 1,28 - 2,99). Em pacientes em episódios depressivos o risco aumentou para HR = 5,49 )IC de 95%, 4,01 - 7,51).

Para lembrar:

Pacientes com episódios mistos, com predominância de sintomas depressivos, têm um risco aumentado em relação aos que apresentam predominância de sintomas maníacos. É importante entender que a ideação suicida normalmente vem do componente depressivo, e a impulsividade para colocá-la em prática vem do componente maníaco. Assim, faz todo o sentido que os sintomas depressivos sejam um fator de risco maior que os de mania. É importante fazer duas ressalvas em relação ao tratamento dos episódios mistos: primeiramente deve-se evitar por completo o uso de qualquer tipo de antidepressivo, além de que o uso de lítio deve ser usado para todos os pacientes com ideação suicida, mesmo em doses baixas (excluindo apenas aqueles com contraindicações absolutas).

Artigo publicado no Medscape em 06 de março de 2018


Questões psiquiátricas do abuso sexual na infância

O abuso sexual contra crianças é um tipo de violência muito mais comum do que se imagina, afetando milhares delas todos os dias. Mas o assunto ainda é um tabu na sociedade, e muitas vezes o problema é negligenciado devido a uma série de fatores como vergonha, medo de repressão, culpa, e outros mitos que envolvem o tema.

Quando se fala em abuso sexual de crianças, a maioria das pessoas pensa que ele apenas ocorre quando o abusador é um adulto, mas o conceito é um pouco mais amplo. O abuso sexual pode ocorrer entre duas crianças quando uma delas exerce poder sobre outra, ou até mesmo sem contato sexual, quando a criança é exposta a pornografia, voyeurismo ou ainda quando trava conversas em tons sexuais pela internet.

Infelizmente as estatísticas confirmam que o abuso sexual em crianças é muito mais prevalente do que se imagina: 10% das crianças (meninos ou meninas) serão abusadas antes dos 18 anos. Este número aumenta quando se fala apenas de meninas, chegando a uma em sete. Dados mostram que 44% dos estupros com penetração ocorrem em crianças antes dos 18 anos. Em torno de 90% das crianças abusadas conhecem seus abusadores, e 30% são abusadas por familiares.

Existem alguns fatores de risco para o abuso de crianças: meninas tem um risco cinco vezes maior de serem abusadas, e o baixo nível socioeconômico da criança triplica a chance de abuso sexual.

As consequências do abuso sexual na infância podem ser devastadoras em vários sentidos, tanto para a família quanto para a vítima. Com relação às questões psiquiátricas, o abuso sexual é fator de risco para diversas doenças mentais. A severidade do abuso está diretamente relacionada com a gravidade dos sintomas ou doenças ao longa da vida do paciente.[2] Algumas delas estão diretamente conectadas, como o transtorno de estresse pós-traumático e o transtorno de personalidade bordeline.

Abuso de substância e tentativas de suicídio têm o risco aumentado pelo abuso sexual. Algumas pesquisas relacionam também os transtornos do humor.

Uma meta-análise com 17 estudos caso-controles e 20 estudos de coorte concluiu que existe um risco aumentado de mais de duas vezes entre pacientes com história de abuso sexual na infância e o desenvolvimento de estresse pós-traumático (OR = 2,34; IC de 95%, 1,59-3,43) e um risco aumentado em mais de quatro vezes em relação a tentativas de suicídio (OR = 4,14; IC de 95%, 2,98-5,76).

Entre os diagnósticos mencionados, o mais controverso é o que talvez mais relação tenha com a questão do abuso sexual: o transtorno de personalidade borderline (TPB). Este diagnóstico é uma das heranças psicanalíticas que a psiquiatria ainda mantém sem a existência de uma validade científica.

O nome bordeline (fronteiriço) diz respeito a estar na fronteira da neurose e da psicose. O transtorno de personalidade borderline é muitas vezes confundido com o transtorno afetivo bipolar (TAB) simplesmente porque o DSM-5 em nenhum momento leva em consideração, nos critérios diagnósticos, a importância do abuso sexual no diagnóstico de TPB. Os dois quadros têm muitas semelhanças como a labilidade do humor, irritabilidade, impulsividade.

As diferenças é que são essenciais no diagnóstico: o comportamento de automutilação é muito comum nos pacientes borderline (50%-80%), mas incomum nos pacientes bipolares; o TAB é altamente hereditário, já o TPB é muito pouco hereditário; o TPB está  altamente associado a abuso sexual (40%-70%), quase o dobro quando comparado à prevalência no TAB (20%-40%).

Com relação ao tratamento, é bastante claro depois de quase um século de pesquisas, que TAB deve ser tratado com “estabilizadores de humor” e, em alguns casos, o uso coadjuvante de psicoterapia. Já com relação ao TPB, o uso da medicação é coadjuvante à terapia, principalmente a dialética .

Entretanto, as questões psiquiátricas envolvendo os abusadores são muito mais controversas. Muito se discute sobre a questão de se os abusadores são ou não doentes mentais, por praticarem este tipo de crime. Nem todo abusador é um pedófilo.

Os pedófilos têm como características o início da história de abusos quando jovem, e podem tem um número grande de vítimas, que raramente são familiares.

Os abusadores que não preenchem critérios para pedofilia podem ser observados pela ótica do conceito de temperamento, que pode ser definido como versões leves de estados de humor, incluindo alterações no nível de energia e comportamento (incluindo o sexual), além da impulsividade, sendo os dois temperamentos mais envolvidos o hipertímico e ciclotímico. O primeiro envolve sintomas leves de mania como aumento da energia, diminuição da necessidade do sono e aumento da libido.

O segundo envolve constantes alternâncias entre sintomas leves depressão e mania. Normalmente são extrovertidos e de boa socialização, são pessoas que as vezes têm comportamento de riscos que podem ser vistos como impulsivos.

Outra questão importante relacionada a estes pacientes é a questão do insight ou julgamento. Este conceito não está apenas relacionado a como o paciente entende a própria doença, mas também a como ele interage com o mundo.

Normalmente o insight está prejudicado na mania e preservado na depressão, por isso podemos entender que na ciclotimia e na hipertimia existe uma tendência maior a ter o insight prejudicado.

Existe um mito que homossexuais abusariam mais de crianças, e isto não é real. Um estudo mostrou que 82% dos abusadores eram heterossexuais e/ou parentes próximos da vítima. Outra informação importante é que a maioria dos adolescentes abusadores não se torna pedófilo, e não mantém comportamento sexual predatório.

É de extrema importância para o diagnóstico e para o tratamento do paciente, que os profissionais questionem sobre a possível existência do abuso sexual na infância. A informação é necessária tanto para o diagnóstico quanto para a proteção do paciente.

Infelizmente, ainda existe uma grande barreira no meio médico em tornar essa avaliação mais comum, tanto na criança quanto no adulto. Muitas vezes cabe aos médicos abordar o assunto e oferecer um tratamento digno às vítimas desta violência, que gera consequências às vezes irreparáveis a uma criança, assim como fazer um bom diagnóstico dos pacientes que apresentam risco de abusar.

Artigo publicado no Medscape em 12 de dezembro de 2017


Depressão pós-parto: da prevenção ao tratamento

Depressão pós-parto é a complicação psiquiátrica não psicótica mais comum no puerpério, afetando até 75% das mulheres, se incluirmos o baby blues. Essa alta prevalência é um problema de saúde pública de difícil acesso por diversos motivos, mas principalmente porque envolve a gravidez e o parto. A gestação é vista, na grande maioria das vezes, como um momento de extrema felicidade e regozijo para a mulher e para a família.

É difícil para a maioria das pessoas entender que este é um período de alta vulnerabilidade para o desenvolvimento de episódios de transtornos afetivos como depressão e, numa prevalência menos comum, psicose ou mania (em torno de 13%). Os índices de tratamento e diagnósticos ainda são baixos, e as consequências mais graves são o infanticídio e/ou o suicídio da mãe. Nos transtornos afetivos puerperais os sintomas e o tempo de início são muito importantes para a definição e o tratamento deles.

No baby blues os sintomas são leves e caracterizados como irritabilidade, ansiedade e alterações no humor, no apetite e no sono, que iniciam de dois a três dias após o parto. Já a depressão pós-parto normalmente começa dentro dos seis primeiros meses posteriores ao parto, e a maioria dos casos necessita de tratamento médico. Em muitos casos a depressão pós-parto se apresenta como a extensão do baby blues. A depressão pós-parto tem como sintomas sentimento de culpa, alteração de apetite e sono, incapacidade de lidar com e cuidar do bebê, dificuldade de concentração, fadiga, irritabilidade e labilidade de humor. Um estudo mostrou que os episódios realmente começam com mais frequência no pós-parto (40,1%) e não antes da gravidez (26,5%).

Estas doenças não são homogêneas, podendo fazer parte de outros quadros de humor como o transtorno afetivo bipolar (TAB). Existem vários fatores de risco para a depressão pós-parto. O maior deles é história prévia de transtornos do humor e ansiedade.

A patogênese da depressão pós-parto é desconhecida. Alguns estudos sugerem que a rápida diminuição do nível de hormônios de reprodução, como estrogênio, progesterona, gonadotrofina coriônica humana e cortisol, após o parto, contribui para o desenvolvimento de episódios depressivos em mulheres suscetíveis.

Outra hipótese é de que a interação entre o sistema hipotálamo-pituitária-gonadal e o sistema hipotálamo-pituitário-adrenal, e a alteração nos níveis dos hormônios gonadais, possam funcionar como gatilhos para a doença. Também a existência de fatores sociais como dificuldades conjugais e violência doméstica, aumentam o risco para desenvolvimento da depressão pós-parto. Um estudo mostra que violência sexual triplica o risco de depressão pós-parto.

Mulheres com fatores de risco deveriam ser avaliadas por meio da escala de depressão pós-natal de Edinburgh.

Uma questão bastante controversa em relação à depressão pós-parto é a relação dela com o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Alguns estudos mostram que a depressão pós-parto é três vezes mais frequente no TAB do que na depressão maior (odds ratio, OR = 3,33; IC de 95%, 1,84 - 6,04).

Um estudo multicêntrico retrospectivo comparou mulheres diagnosticadas com diferentes tipos de transtornos de humor. Num total de 576 mulheres, 444 foram diagnosticadas com depressão maior, 96 com TAB tipo II, e 36 com TAB tipo I. Destas, 24% apresentaram o diagnóstico de depressão pós-parto. Estas pacientes eram mais jovens e tinham mais história familiar de TAB, quando comparadas as mulheres que não apresentaram o diagnóstico de depressão pós-parto.

Metade das mulheres com diagnóstico de TAB tipo II relataram depressão pós-parto versus 21,6% das mulheres com diagnóstico de depressão maior. Algumas características são sugestivas de bipolaridade em mulheres com depressão pós-parto e devem ser pesquisadas com muito cuidado como: primeiro episódio depressivo no pós-parto, primeiro episódio manifestando-se em idade mais jovem, episódios mais curtos, episódios com sintomas atípicos (aumento do sono, aumento do apetite), agitação, e sintomas psicóticos.

Também deve-se observar a existência de depressão mista, ou seja, episódio de depressão maior e ao menos mais três dos seguintes sintomas: agitação, aumento da velocidade do pensamento, irritabilidade, humor lábil e insônia inicial. Além disto, avaliar a história familiar de transtorno bipolar é de extrema importância. A resposta ao tratamento também é uma questão relevante, devendo-se levar em consideração a história do uso de antidepressivos causando mania, hipomania ou sintomas mistos.

Ademais, rápida resposta aos antidepressivos e/ou perda de resposta a eles, também podem ser um indicativo importante de TAB. O tratamento da depressão pós-parto deve ser administrado com muito cuidado e a escolha da medicação deve levar em conta as questões expostas acima, e principalmente a questão do custo/benefício, especialmente em relação ao uso de antidepressivos em mulheres que apresentem características de bipolaridade e ideação suicida ou homicida em relação ao bebê.

A principal preocupação neste momento é a questão da amamentação, e ela deve ser um dos fatores em relação à escolha da medicação, uma vez que quase todas as medicações são transmitidas para o leite. Uma boa estratégia para pacientes que fazem uso de medicação durante o período de amamentação é coletar leite após a dose da noite e guardá-lo para uso no dia seguinte.

Em relação ao lítio a maioria dos trabalhos mostra que os bebês não tiveram efeitos adversos quando as mães usaram doses entre 500-1200mg ao dia e a litemia máxima do bebê foi de 0,25 mEq/l. Com relação ao valproato, ao contrário de sua proibição durante a gravidez, se mostrou seguro nos estudos abertos e em relatos de casos. Em relação a carbamazepina, estudos também mostram que não há efeitos nocivos para o bebê quando a mãe os amamenta usando a droga.

Com relação a lamotrigina, alguns estudos mostram a presença de apneia e cianose em alguns recém-nascidos. Com relação aos antipsicóticos atípicos, a grande maioria deles tem apenas mínima concentração do princípio ativo excretado com o leite materno. Dentre eles os mais seguros, por terem sido mais estudados, são: olanzapina e quetiapina.

Artigo publicado no Medscape em 19 de outubro de 2017


Precisamos sempre falar sobre suicídio

Desde 2003, o dia 10 de setembro é conhecido como o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Porém, desde 1994 já existia a campanha Setembro Amarelo, que se iniciou nos EUA com os pais e amigos de Mike Emme, um jovem de 17 anos que tirou a própria vida. Mike tinha grandes habilidades para lidar com mecânica automotiva, e recuperou e pintou de amarelo um Mustang ano 1968. Estas habilidades levaram Mike a ficar conhecido como "Mustang Mike".

Já a fita amarela virou tradição quando os jovens amigos de Mike as prenderam na lapela, no cabelo ou no chapéu no dia do funeral do jovem, onde também distribuíram cartões com a inscrição "It's ok to Ask4help", que basicamente significa "não tem problema pedir ajuda". A fita amarela lembrava a cor do Mustang de Mike, e o formato da fita em coração era para lembrar as pessoas que ele deixou. Impressionantemente, em cerca de três semanas o primeiro cartão distribuído no funeral chegou às mãos de um professor, com um pedido de socorro de uma aluna.

A história de Mike é comovente e tenho de certeza que sensibiliza a muitos, mas infelizmente no dia a dia a realidade não é bem esta, pois, o suicídio muitas vezes é alvo de preconceito e mitos, tanto por parte da população leiga quanto da comunidade médica. É preciso entender que o suicídio não é uma doença. Entretanto, na maioria das vezes, ele é o resultado de algumas doenças como o transtorno bipolar e a esquizofrenia.

Entre 80% e 90% das pessoas que cometem suicídio estão sofrendo de algum tipo de transtorno do humor, ou seja, estão tão doentes como aquele paciente que teve um infarto ou um acidente vascular cerebral (AVC). Muitas vezes, o paciente psiquiátrico sofre preconceito até mesmo por médicos de outras áreas e outros profissionais da saúde, em hospitais gerais. Ironicamente os médicos fazem parte de uma das profissões que mais cometem suicídio no mundo.

Entre a população leiga o preconceito em relação ao suicídio se amplifica. A falta de empatia pelo paciente pode ser exemplificada por meio de um artigo publicado no site de uma revista semanal. Neste artigo um motorista de aplicativo descreve um resgate de uma pessoa que estava tentando tirar a própria vida saltando de uma ponte entre Vila Velha e Vitória, no Espírito Santo. O resgate levou algumas horas, e neste intervalo as pessoas se expressavam de todas as maneiras, sendo a mais frequente o pedido para que o suicida se jogasse de uma vez por todas. Algumas, inclusive, afirmaram que se dispunham a empurrá-lo. Em um certo momento iniciou-se um buzinaço, e assim por diante.

Empatia é um fator importante para que exista o acolhimento do paciente psiquiátrico, e isso pode ser decisivo em momentos emergenciais como este. Segundo o relato do motorista, a equipe dos bombeiros demonstrou empatia e cuidado com o paciente, evitando o suicídio.

Podemos observar, também, o preconceito em relação a algumas populações no Brasil, como as indígenas, que chegam a ter uma prevalência de suicídio triplicada quando comparada à da população em geral. Isso demostra um descaso da sociedade em geral, do governo e das entidades responsáveis por esta população, que demonstra negligência diante de um número tão expressivo de suicídios.

As campanhas de prevenção são de extrema importância para pessoas que consideram a possibilidade do suicídio, pois cada vez mais a medicina entende que isso pode ser prevenido. Entretanto, os profissionais da área da saúde precisam se atualizar e entender os novos fatores de risco para doenças mentais. Alguns estudos, por exemplo, demonstram que cyberbullyng e o tempo que se passa na internet estão relacionados a suicídio.

Algumas formas de prevenção passam por abordagens psicoterápicas e outras pelo uso de psicofármacos. Entre as abordagens psioterápicas se destaca o CVV (Centro de Valorização da Vida), que desde 1962 exerce um grande papel na sociedade, trabalhando na prevenção do suicídio. O CVV atende 24 horas por telefone ou site, além de realizar atendimento pessoal. Quanto à questão psicofarmacológica, a maneira mais efetiva e importante de prevenção ao suicídio é o uso do lítio.

Hoje, esta abordagem já é fato. Mas ela precisa ser disseminada entre médicos clínicos que atendem pacientes, principalmente nos prontos-socorros. Precisamos ter em mente a questão da recidiva das tentativas de suicídio. Ao menos um estudo detectou que quase 10% dos pacientes que fazem uma tentativa de suicídio irão fazer uma segunda.

Muitas vezes o sofrimento psíquico não é levado com a seriedade devida. Apenas com medidas preventivas e educacionais, episódos como o que ocorreu na ponte poderão deixar de existir. E as pessoas, em vez de torcerem para que o suicida se jogue da ponte ou do alto de um edifício, terão o mínimo de empatia em relação ao sofrimento humano.

Artigo publicado no Medscape em 5 de outubro de 2017