Questões psiquiátricas do abuso sexual na infância

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O abuso sexual contra crianças é um tipo de violência muito mais comum do que se imagina, afetando milhares delas todos os dias. Mas o assunto ainda é um tabu na sociedade, e muitas vezes o problema é negligenciado devido a uma série de fatores como vergonha, medo de repressão, culpa, e outros mitos que envolvem o tema.

Quando se fala em abuso sexual de crianças, a maioria das pessoas pensa que ele apenas ocorre quando o abusador é um adulto, mas o conceito é um pouco mais amplo. O abuso sexual pode ocorrer entre duas crianças quando uma delas exerce poder sobre outra, ou até mesmo sem contato sexual, quando a criança é exposta a pornografia, voyeurismo ou ainda quando trava conversas em tons sexuais pela internet.

Infelizmente as estatísticas confirmam que o abuso sexual em crianças é muito mais prevalente do que se imagina: 10% das crianças (meninos ou meninas) serão abusadas antes dos 18 anos. Este número aumenta quando se fala apenas de meninas, chegando a uma em sete. Dados mostram que 44% dos estupros com penetração ocorrem em crianças antes dos 18 anos. Em torno de 90% das crianças abusadas conhecem seus abusadores, e 30% são abusadas por familiares.

Existem alguns fatores de risco para o abuso de crianças: meninas tem um risco cinco vezes maior de serem abusadas, e o baixo nível socioeconômico da criança triplica a chance de abuso sexual.

As consequências do abuso sexual na infância podem ser devastadoras em vários sentidos, tanto para a família quanto para a vítima. Com relação às questões psiquiátricas, o abuso sexual é fator de risco para diversas doenças mentais. A severidade do abuso está diretamente relacionada com a gravidade dos sintomas ou doenças ao longa da vida do paciente.[2] Algumas delas estão diretamente conectadas, como o transtorno de estresse pós-traumático e o transtorno de personalidade bordeline.

Abuso de substância e tentativas de suicídio têm o risco aumentado pelo abuso sexual. Algumas pesquisas relacionam também os transtornos do humor.

Uma meta-análise com 17 estudos caso-controles e 20 estudos de coorte concluiu que existe um risco aumentado de mais de duas vezes entre pacientes com história de abuso sexual na infância e o desenvolvimento de estresse pós-traumático (OR = 2,34; IC de 95%, 1,59-3,43) e um risco aumentado em mais de quatro vezes em relação a tentativas de suicídio (OR = 4,14; IC de 95%, 2,98-5,76).

Entre os diagnósticos mencionados, o mais controverso é o que talvez mais relação tenha com a questão do abuso sexual: o transtorno de personalidade borderline (TPB). Este diagnóstico é uma das heranças psicanalíticas que a psiquiatria ainda mantém sem a existência de uma validade científica.

O nome bordeline (fronteiriço) diz respeito a estar na fronteira da neurose e da psicose. O transtorno de personalidade borderline é muitas vezes confundido com o transtorno afetivo bipolar (TAB) simplesmente porque o DSM-5 em nenhum momento leva em consideração, nos critérios diagnósticos, a importância do abuso sexual no diagnóstico de TPB. Os dois quadros têm muitas semelhanças como a labilidade do humor, irritabilidade, impulsividade.

As diferenças é que são essenciais no diagnóstico: o comportamento de automutilação é muito comum nos pacientes borderline (50%-80%), mas incomum nos pacientes bipolares; o TAB é altamente hereditário, já o TPB é muito pouco hereditário; o TPB está  altamente associado a abuso sexual (40%-70%), quase o dobro quando comparado à prevalência no TAB (20%-40%).

Com relação ao tratamento, é bastante claro depois de quase um século de pesquisas, que TAB deve ser tratado com “estabilizadores de humor” e, em alguns casos, o uso coadjuvante de psicoterapia. Já com relação ao TPB, o uso da medicação é coadjuvante à terapia, principalmente a dialética .

Entretanto, as questões psiquiátricas envolvendo os abusadores são muito mais controversas. Muito se discute sobre a questão de se os abusadores são ou não doentes mentais, por praticarem este tipo de crime. Nem todo abusador é um pedófilo.

Os pedófilos têm como características o início da história de abusos quando jovem, e podem tem um número grande de vítimas, que raramente são familiares.

Os abusadores que não preenchem critérios para pedofilia podem ser observados pela ótica do conceito de temperamento, que pode ser definido como versões leves de estados de humor, incluindo alterações no nível de energia e comportamento (incluindo o sexual), além da impulsividade, sendo os dois temperamentos mais envolvidos o hipertímico e ciclotímico. O primeiro envolve sintomas leves de mania como aumento da energia, diminuição da necessidade do sono e aumento da libido.

O segundo envolve constantes alternâncias entre sintomas leves depressão e mania. Normalmente são extrovertidos e de boa socialização, são pessoas que as vezes têm comportamento de riscos que podem ser vistos como impulsivos.

Outra questão importante relacionada a estes pacientes é a questão do insight ou julgamento. Este conceito não está apenas relacionado a como o paciente entende a própria doença, mas também a como ele interage com o mundo.

Normalmente o insight está prejudicado na mania e preservado na depressão, por isso podemos entender que na ciclotimia e na hipertimia existe uma tendência maior a ter o insight prejudicado.

Existe um mito que homossexuais abusariam mais de crianças, e isto não é real. Um estudo mostrou que 82% dos abusadores eram heterossexuais e/ou parentes próximos da vítima. Outra informação importante é que a maioria dos adolescentes abusadores não se torna pedófilo, e não mantém comportamento sexual predatório.

É de extrema importância para o diagnóstico e para o tratamento do paciente, que os profissionais questionem sobre a possível existência do abuso sexual na infância. A informação é necessária tanto para o diagnóstico quanto para a proteção do paciente.

Infelizmente, ainda existe uma grande barreira no meio médico em tornar essa avaliação mais comum, tanto na criança quanto no adulto. Muitas vezes cabe aos médicos abordar o assunto e oferecer um tratamento digno às vítimas desta violência, que gera consequências às vezes irreparáveis a uma criança, assim como fazer um bom diagnóstico dos pacientes que apresentam risco de abusar.

Artigo publicado no Medscape em 12 de dezembro de 2017