Impacto psicológico da quarentena: uma breve revisão das evidências

Foi publicada em fevereiro uma breve revisão das evidências sobre as questões psicológicas e ou psiquiátricas causadas pelo período de quarentena, que muitos países já estão adotando e outros, como o Brasil, ainda terão de adotar.

De 3.166 artigos encontrados, 24 foram incluídos na revisão, sendo que a maioria eram estudos transversais. As pesquisas foram realizadas em 10 países e os pacientes incluídos tinham as seguintes doenças: síndrome respiratória aguda grave (SARS, sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome), Ebola, influenza A (H1N1), síndrome respiratória do oriente médio (MERS, sigla do inglês, Middle East Respiratory Syndrome) e influenza equina. Ainda foi incluído um estudo associando H1N1 e SARS.

A maioria dos estressores foi: duração da quarentena, medo da infecção, frustração, tédio, falta de suprimentos, falta de informação, perdas financeiras e estigma.

Quarentena é a separação e restrição do trânsito de pessoas que possam ter sido expostas a alguma doença contagiosa, a fim de verificar se elas ficam sintomáticas, diminuindo assim o risco de transmissão para outras pessoas. A definição de quarentena é diferente da de isolamento, que consiste na separação de pacientes que foram diagnosticados com alguma doença contagiosa das pessoas que não apresentam a doença, mas, na prática, os dois termos são usados quase como sinônimos.

A palavra quarentena foi usada pela primeira vez em Veneza, em 1.127, para isolar pacientes com hanseníase, e foi amplamente utilizada durante a peste negra. Recentemente o termo voltou a ser utilizado na China em relação à Covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019), quando cidades inteiras foram colocadas nesta condição. Essa não é a primeira vez que vilarejos ou cidades inteiras são colocadas em quarentena; em 2003, algumas áreas na China e no Canadá entraram em quarentena em função da síndrome respiratória aguda grave (SARS, sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome), além de vilarejos inteiros na África durante o surto de Ebola.

A quarentena normalmente é uma experiência desagradável, pois existe separação de parentes, perda da liberdade, incerteza sobre a doença e tédio, que pode causar situações difíceis.

Preditores pré-quarentena de impacto psicológico

Há uma discussão na comunidade científica sobre se características particulares e demográficas poderiam ser preditores de impacto psicológico na quarentena. Um estudo sobre o surto de influenza equina identificou que mulheres jovens (de 16 a 24 anos), com baixo grau de instrução e com filhos foram associadas a sofrerem um impacto negativo da quarentena. Profissionais da saúde apresentaram sintomas mais intensos de ansiedade, raiva, medo, frustração, culpa e tristeza, além de mais medo de infectar outras pessoas.

Estressores durante a quarentena

Duração da quarentena

Estudos mostram que quanto mais longa a quarentena, maior o impacto na saúde mental, causando principalmente sintomas de raiva, ansiedade e esquiva.

Medo da infecção

Pelo menos oito estudos mostraram que as pessoas em quarentena apresentaram temor pela própria saúde ou de infectar os outros. Um estudo mostrou que gestantes e famílias com filhos pequenos representam uma grande parcela da população que tem medo da infecção.

Frustração e tédio

O confinamento, a perda da rotina e a redução do contato físico e social com outras pessoas frequentemente causam tédio, frustração e sensação de isolamento do resto do mundo. Estes sentimentos podem causar angústia a quem está de quarentena. A frustração aumenta diante da impossibilidade de realizar as atividades do dia a dia, como fazer as próprias compras de necessidades básicas ou interagir socialmente.

Inadequação de suprimentos

A inadequação de suprimentos como água, comida, roupas ou acomodação durante a quarentena é uma fonte de frustração, e tem sido associada à ansiedade e raiva. Estes sentimentos podem durar por volta de quatro a seis meses após o término da quarentena. Além disto, a falta de acesso a atendimento médico regular e prescrições médicas também é um problema para as pessoas em quarentena.

Falta de informação

Muitas pessoas que ficaram em quarentena citaram que a falta de informações do poder público é um estressor, referindo insuficiência de orientações sobre ações e o propósito da quarentena. Participantes relataram uma falta de transparência das autoridades sobre a gravidade da pandemia.

Estressores após a quarentena

Finanças

Perdas financeiras podem ser um problema durante a quarentena, pois muitas pessoas não podem trabalhar e são pegas de surpresa neste momento, não podendo se organizar financeiramente. Estudos mostram que perdas financeiras causam angústia e são fatores de risco de sintomas psiquiátricos como ansiedade e raiva, podendo perdurar mesmo após o fim da quarentena. Um estudo com pessoas em quarentena durante o surto de Ebola concluiu que, mesmo recebendo auxílio financeiro, a ajuda foi insuficiente e chegou tarde demais. Outro estudo mostrou que pessoas mais pobres acabam sendo mais prejudicadas nestes períodos.

Estigma

O estigma em relação a outras pessoas foi o tema mais recorrente na literatura, persistindo por um bom tempo após a quarentena. Em uma comparação entre profissionais da saúde que ficaram em quarentena e aqueles que não ficaram, os primeiros relataram maior sensação de estigmatização e rejeição de pessoas nos bairros onde viviam. Participantes de estudos relataram que eram tratados de maneira diferente por outros, sendo temidos por alguns, além receberem comentários críticos. Diversos profissionais de saúde envolvidos no surto de Ebola, no Senegal, relatam que durante a quarentena suas famílias os pressionaram a abandonar seus empregos por serem muito arriscados, criando tensão dentro de casa.

Educar as pessoas sobre as doenças, além de explicar os fundamentos da necessidade de quarentena, pode diminuir o estigma. A mídia deve tomar os devidos cuidados ao relatar as notícias para o público em geral. É importante que as autoridades de saúde pública forneçam informações rápidas e claras para a população.

O que se pode fazer para atenuar as consequências da quarentena?

Os autores da revisão estipulam alguns fatores que podem reduzir as consequências da quarentena.

Fazer com que a quarentena seja o mais breve possível

As quarentenas mais longas estão associadas a desfechos psíquicos mais negativos. Deve-se tentar restringir a duração ao menor tempo possível, respeitando as evidências científicas. Entende-se que, para pessoas que já estão em quarentena, a decisão de estender ainda mais o período de isolamento pode causar ainda mais frustação e sensação de desmoralização. Quarentenas impostas a cidades inteiras, como ocorreu na China e Itália, podem ser ainda mais prejudiciais para a saúde mental.

Fornecer o máximo de informações para a população

Pessoas em quarentena normalmente têm medo de infectar outras pessoas ou de ser infectadas por elas. Muitas vezes as pessoas confinadas têm avaliações catastróficas dos sentimentos experimentados durante a quarentena. Os autores pontuaram que é fundamental que as pessoas submetidas ao confinamento tenham um bom entendimento sobre a doença em questão e as razões para a quarentena.

Fornecer suprimentos adequados

As autoridades devem assegurar que as pessoas em quarentena tenham acesso a suprimentos de necessidade básica. As coordenadas dever ser feitas antes do início da quarentena, para que estes suprimentos não faltem.

Reduzir o tédio e melhorar a comunicação

O tédio e o isolamento causam angústia e sofrimento. Pessoas em quarentena devem ser orientadas, e medidas objetivas devem ser repassadas para que elas tenham mais condições de lidar com o estresse da situação. É essencial acionar amigos e familiares remotamente. Um estudo mostrou que disponibilizar uma linha direta com psiquiatras e outros profissionais de saúde mental especificamente para as pessoas em quarentena diminui o senso de isolamento. É importante que as empresas provedoras de internet se preparem para a sobrecarga de seus sistemas, e que ofereçam velocidade mais alta para os lugares em quarentena. É importante também disponibilizar linhas diretas com profissionais de saúde que possam dar informações sobre o que fazer e para onde se dirigir em caso de contaminação.

Profissionais de saúde merecem atenção especial

Os profissionais de saúde geralmente estão em quarentena e esta revisão sugere que, assim como a população em geral, eles sofrem efeitos negativos. Os profissionais de saúde acabam sentindo-se culpados por abandonar seus postos de trabalho e de causar uma sobrecarga aos seus colegas. É importante que estas pessoas tenham o suporte de seus colegas mais próximos.

A revisão tem algumas limitações. A mais importante é o fato de ter sido feita em pouco tempo, devido ao surto de Covid-19. A maioria dos estudos teve pequenas amostras, poucos estudos comparam participantes em quarentena com participantes que não estavam em quarentena.

Conclusão

No geral, esta revisão sugere que as consequências da quarentena são amplas e podem durar por um longo tempo. Diante desta conclusão, os autores não sugerem que a quarentena não deva ser aplicada, mas reforçam que, com a necessidade da quarentena, as autoridades devem tomar todas as medidas para que essa experiência seja mais tolerável para as pessoas.

Artigo publicado no Medscape em 23 de março de 2020


Estudo sueco avalia risco de pacientes psiquiátricos sofrerem ou cometerem atos de violência

Estudo sueco avalia risco de pacientes psiquiátricos sofrerem ou cometerem atos de violência

Indivíduos diagnosticados com doenças psiquiátricas podem vivenciar diversos desfechos adversos, como desemprego, falta de moradia e morte prematura. Além disso, em comparação com a população em geral, estes indivíduos têm mais contato com o sistema judiciário e mais risco de cometer atos violentos; no entanto, as evidências do aumento do risco desses pacientes serem vítimas de violência são limitadas.

Primeiramente, revisões sistemáticas relataram grandes, mas imprecisos, riscos relativos relacionados com a probabilidade de pacientes psiquiátricos serem vítimas de violência, em comparação com a população em geral. Estas revisões foram baseadas em estudos transversais com pequenas amostras e em estudos retrospectivos. No entanto, as pesquisas publicadas até então não excluíram a possibilidade de causa reversa nem controlaram para risco de violência pregressa.

Em segundo lugar, estudos com famílias e gêmeos têm mostrado que doenças psiquiátricas, crimes violentos e ser vítima de violência tem uma tendência a ocorrer em famílias, mas sua etiologia ainda é pouco conhecida. A literatura sugere que os estudos sobre agressividade em pacientes psiquiátricos são enviesados por causa do confundidor familiar.

Buscando preencher esta lacuna na literatura, foi conduzido um estudo populacional na Suécia entre janeiro de 1973 e dezembro de 1993 que permitiu a avaliação de potenciais associações entre a perpetração de violência e a vitimização de pacientes psiquiátricos – levando em conta os confundidores familiares.

No total, 250.419 pacientes psiquiátricos foram identificados a partir do registro nacional sueco. A exposição à violência foi avaliada desde o nascimento dos participantes. Os pacientes foram pareados por idade e sexo com a população em geral (2.504,190) e com seus irmãos biológicos sem diagnóstico de doença mental (194.788). A data de início foi definida como a liberação do primeiro episódio. Os participantes foram excluídos do estudo em caso de migração, morte ou desfecho de interesse.

Exposição à violência foi definida como: buscar por atendimento médico em algum serviço de saúde, ser submetido a internação hospitalar ou ter sido assassinado. Perpetração de violência foi definida como: cometer algum crime violento com dolo.

Foi usado o modelo de regressão de Cox na tentativa de eliminar confundidores sociodemográficos e familiares.

Entre os 250.419 pacientes, 55,4% eram mulheres, sendo que a média de idade ao receber o primeiro diagnóstico psiquiátrico variou de 20,0 anos para pacientes diagnosticados com transtorno por uso de álcool a 23,7 anos para pacientes com transtornos de ansiedade.

Em comparação com os controles sem doenças psiquiátricas, os pacientes psiquiátricos tiveram mais risco de sofrer e de cometer atos de violência. Nos modelos ajustados para confundidores, as pessoas com doenças psiquiátricas apresentaram risco 3,4 vezes maior de sofrer alguma violência do que seus irmãos sem diagnóstico psiquiátrico (intervalo de confiança, IC, de 95% de 3,2 a 3,6). Já o risco de cometer atos de violência foi de 4,2 (IC 95% de 3,9 a 4,4).

Para lembrar:

É importante ressaltar que este estudo não diferenciou os pacientes em episódios agudos ou em momentos crônicos da doença. É sabido que pacientes psiquiátricos em episódios agudos têm mais risco de cometer atos de violência do que quando estão estáveis.

Taxa de suicídios na Grécia antes e durante o período de austeridade estratificado por sexo e idade: Relações com desemprego e variáveis econômicas

Nos últimos anos tem sido debatido se o aumento da taxa de suicídios na população europeia está relacionado com a recessão econômica na região. Embora o comportamento suicida seja multifatorial, existe uma grande ênfase nos fatores socioeconômicos.

Vários fatores de risco de suicídio foram identificados e classificados como sendo primários, tal como a presença de doenças psiquiátricas, doenças graves e história de tentativa de suicídio. Fatores de risco secundários são: situações adversas da vida e fatores psicossociais. E fatores demográficos, como ser do sexo masculino e ter idade avançada, podem ser considerados como fatores de risco terciários.

Sabe-se que a presença de fatores de risco primário torna o risco de suicídio maior. Os fatores secundários e terciários só elevam o risco com a presença de um fator primário.

As variáveis econômicas são de suma importância, pois são fatores modificáveis.

Uma análise dos países europeus, especialmente da Grécia, identificou um aumento de mortes por suicídio. Em 2014 e 2015 a taxa de suicídios atingiu recordes históricos no país (mesmo ainda sendo baixa para a Europa); em comparação com a média registrada entre 2000 e 2010, o aumento de casos chegou a 51,7% entre os homens e 76,2% entre as mulheres. Em 2015, foi observada uma pequena diminuição de 5,4% entre homens e 6,8% entre mulheres, o que sugere uma estabilização da taxa de suicídios na Grécia.

A causa do aumento e da diminuição dos índices de suicídio ainda é motivo de debate, sendo que a situação econômica em geral pode ter sido um fator; no entanto, também foram observados padrões de aumento da taxa de suicídios na Alemanha, Noruega e Holanda.

Durante os anos de crise, a imprensa enfatizou a possível relação entre a crise econômica e o aumento da taxa de suicídios. Tanto na Europa como nos Estados Unidos o aumento do desemprego foi seguido de um aumento da taxa de suicídio.

O objetivo deste estudo foi entender o papel do desemprego e de outras variáveis econômicas, como produto interno bruto (PIB), inflação e PIB per capita, no aumento dos índices de suicídio específico por idade e gênero. Para isso, foram utilizados dados da autoridade grega de estatística, usando regressão linear e correção de Bonferroni para múltiplos testes.

Os resultados mostram 33% de aumento das mortes por suicídio durante o período de recessão na Grécia (de 2009 a 2015). Um terço dessas mortes pode ser diretamente atribuída ao desemprego, um terço a outros fatores associados à recessão, e o outro terço a fatores desconhecidos. O efeito do desemprego foi restrito a homens em começo de carreira (de 20 a 24 anos), meia-idade (de 45 a 49 anos e 55 a 59 anos).

Para lembrar:

Países que passam por momentos de grande crise econômica, como o Brasil, devem levar em consideração a possibilidade de aumento da taxa de suicídios. É importante que programas de assistência sejam estruturados e melhorados. Os canais de atendimento por telefone são uma forma de apoio que contribui para a prevenção, como o trabalho desempenhado pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), que deve sempre ser divulgado.

Incidência e determinantes de uso de serviço de saúde mental após cirurgia bariátrica

A associação entre ganho ponderal em excesso e saúde mental é complexa e pode envolver fatores genéticos, hormonais, sociais e ambientais. A obesidade tem sido ligada a falta de satisfação corporal, baixa autoestima e depressão. Doenças psiquiátricas estão associadas ao início do ganho ponderal. Indivíduos com obesidade normalmente são estigmatizados, sofrem exclusão social e discriminação.

A cirurgia bariátrica foi concebida nos anos 50 e tornou-se muito comum nas duas últimas décadas. Estudos mostram que este tipo de cirurgia exacerba doenças psiquiátricas, especialmente automutilação e suicídio. No entanto, como esta relação se faz ainda é desconhecido.

A hipótese dos autores do estudo em pauta foi que a cirurgia bariátrica exacerbaria as comorbidades do paciente, resultando em um aumento da procura por atendimento psiquiátrico após a cirurgia, inclusive por aqueles sem diagnóstico prévio de doença psiquiátrica. O estudo avaliou a incidência e os fatores de risco de busca por serviços psiquiátricos após a cirurgia bariátrica. Para isso, foi feita uma estratificação de acordo com o tipo de doença psiquiátrica.

Foram utilizados dados do banco de dados da Austrália Ocidental, sendo a data index o momento da cirurgia. Os pacientes foram acompanhados por 10 anos. No total, 24.766 pacientes foram incluídos no estudo; a média de idade foi de 42,5 anos; e 77,3% eram mulheres.

O uso de ao menos um serviço psiquiátrico ocorreu em 16,1%. Destes, 35,2% buscaram atendimento antes da cirurgia; 25,8% antes e depois; e 39,0% apenas depois do procedimento. Houve um aumento na ocorrência de doenças psiquiátricas após a cirurgia bariátrica (uso de ambulatórios, RR = 2,3; IC 95%, de 2,3 a 2,4; uso de pronto-socorro, RR = 3,0; IC 95% de 2,8 a 3,2; e hospitalização, RR = 3,0; IC 95%, de 2,8 a 3,1. Houve um grande aumento na incidência de casos de automutilação (RR = 4,7; IC 95% de 3,8 a 5,7); e quase 10% de casos suicídio após a cirurgia.

Para lembrar:

É necessária uma avaliação psiquiátrica muito criteriosa antes da liberação de qualquer paciente para a cirurgia bariátrica. Nem todo paciente deve ou tem condições clínicas de se submeter a este tipo de intervenção. Lembrando que existem critérios muito bem estabelecidos, que às vezes não são seguidos, para que pacientes sejam submetidos à cirurgia bariátrica.

Artigo publicado no Medscape em 02 de fevereiro de 2020


Janeiro Branco: É possível fazer prevenção em saúde mental?

Nesse episódio do Conversa de Médico o tema é Janeiro Branco, uma campanha brasileira criada para aumentar o conhecimento sobre as doenças mentais e a prevenção delas.

Para discutir esse tema está conosco o Dr. Sivan Mauer, psiquiatra e advisor de psiquiatria do Medscape Edição em Português. O Dr. Sivan inicia trazendo para a conversa uma informação muitas vezes esquecida: existe prevenção para doenças mentais e uma parte importante dela é a psicoeducação. Como funciona? O Dr. Sivan explica que conhecer a doença mental é, também, uma forma de preveni-las, já que a falta de informação fomenta a o uso de equivocado de “diagnósticos” que jamais foram validados por um psiquiatra.

“Todo mundo discute depressão, mas muitos não entendem exatamente o que é essa doença. Depressão é só tristeza?, Luto é depressão? As pessoas não sabem”, diz o psiquiatra.

Um outro aspecto salientado na discussão é a ampliação do acesso a gerações mais modernas de medicamentos, que conseguem proporcionar resultados mesmo com doses baixas e com menos efeitos colaterais. Um exemplo são os inibidores seletivos da receptação de serotonina, que hoje são ampla e facilmente prescritos. O avanço no tratamento, no entanto, também tem o lado ruim: o uso contínuo não é isento de efeitos colaterais, especialmente quando se trata de alguns anti-psicóticos cujo uso em longo prazo pode ter efeitos neurológicos debilitantes.

Mas o ponto nevrálgico da conversa é realmente o acesso aos serviços de saúde mental. Como falar em prevenção se os hospitais gerais não têm psiquiatras atuando junto aos serviços de emergência, ou com departamentos de psiquiatria estruturados?

Para o Dr. Sivan, os psiquiatras se isolaram em seus consultórios, se afastando da prática hospitalar, o que acabou contribuindo para que a assistência aos pacientes psiquiátricos seja hoje fragmentada e difícil de acessar, mesmo na saúde suplementar.

A presença de estruturas apropriadas permitiria não só um atendimento clínico aos pacientes psiquiátricos, mas também a identificação de quadros psíquicos em pacientes internados com outros diagnósticos o que poderia orientar uma internação mais breve e com melhor desfecho.

E por fim, o Dr. Sivan nos lembra que existem serviços que formam esses médicos em quantidade adequada, o que permitiria fazer frente a esse quebra-cabeças que é hoje a prevenção e o tratamento das doenças psiquiátricas no Brasil.

Ouça o podcast em Medscape.


Estudo avalia ex-jogadores de futebol para risco de doenças neurodegenerativas

Mortalidade por doença neurodegenerativa entre ex-jogadores de futebol profissional

Nos últimos anos alguns têm se questionado sobre o risco de várias doenças degenerativas como Alzheimer, esclerose lateral amiotrófica (ELA) e encefalopatia traumática crônica (ETC) estarem relacionadas com os esportes de contato. O reconhecimento de alterações patológicas da ETC em ex-jogadores de futebol e futebol americano tem despertado esta preocupação, porém, os dados sobre o risco de doenças neurodegenerativas nesta população ainda são limitados.

As consequências neurocognitivas da prática de esportes de contato são incertas, mas os benefícios associados à prática de atividades físicas na prevenção de doenças crônicas – inclusive de demências – é bem estabelecido. Estudos revelam que, em comparação com a população em geral, atletas de alto nível têm maior longevidade, com menos risco de doença cardiovascular.

O futebol é um esporte praticado em mais de 200 países, e soma mais de 250 milhões jogadores; no entanto, não é possível comparar os jogadores amadores com os profissionais. As informações sobre a saúde dos ex-jogadores profissionais podem ser extremamente valiosas para a avaliação dos riscos desse esporte.

Pesquisadores conduziram um estudo de coorte retrospectivo para avaliar a mortalidade por doenças neurodegenerativas entre ex-jogadores profissionais escoceses – comparando com controles da população em geral. Para isto, foram incluídos 7.676 ex-jogadores de futebol profissional e 23.028 controles saudáveis da população em geral.

A causa da morte foi verificada por meio da certidão de óbito. Dados da dispensação de medicamentos para demência foram comparados.

Em uma média de 18 anos de acompanhamento do estudo, morreram 1.180 (15,4%) ex-jogadores e 3.807 (16,5%) controles. Quando foram comparadas todas as causas de morte até os 70 anos, os ex-jogadores apresentaram uma taxa menor que os controles.

A taxa de mortalidade por doença isquêmica foi menor entre os ex-jogadores do que entre os controles (hazard ratio, HR, = 0,8; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 0,66 a 0,97); assim como por câncer de pulmão (HR = 0,53; IC 95%, de 0,40 a 0,70).

A mortalidade por doença neurodegenerativa como causa primária representou 1,7% entre os ex-jogadores e 0,5% entre os controles. A doença neurodegenerativa mais frequente entre os ex-jogadores foi doença de Alzheimer (HR = 5,07; IC 95%, de 2,92 a 8,82) e a menos frequente foi doença de Parkinson (HR = 2,15; IC 95%, de 1,17 a 3,96).

Os ex-jogadores receberam mais prescrições de medicamentos para demência do que os controles (odds ratio, OR, = 4,90; IC 95%, de 3,81 a 6,31). Não houve diferenças na taxa de mortalidade por doenças neurodegenerativas entre goleiros e jogadores de outras posições, mas os goleiros receberam menos prescrições de medicamentos para demência.

Para lembrar:

Este estudo retrospectivo sugere que ex-jogadores de futebol têm mais risco de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e possivelmente ETC. E é importante lembrar que até o momento não existe tratamento para ETC. Existe um estudo recente sobre a possibilidade do uso de lítio para a prevenção de ideação suicida, demência, impulsividade e labilidade do humor nestes pacientes.

Associação entre uso de anfetamina e desfechos psiquiátricos: uma revisão sistemática e metanálise

A preocupação com o uso de metanfetamina tem aumentado globalmente, principalmente do ponto de vista de saúde pública. Em 2016, o Escritório das Nações Unidas Sobre Drogas e Crimes (UNODC, sigla do inglês, United Nations Office on Drugs and Crime) estimou que 34 milhões de pessoas no mundo usam anfetaminas, sendo que 4,96 milhões seriam dependentes da substância. O uso ilícito mais comum envolve a metanfetamina.

A intoxicação por anfetamina pode causar sintomas transitórios, como alucinação e paranoia, e exacerbar a psicose em pacientes com esquizofrenia, mas não está claro se o uso pode causar a doença.

O uso crônico dessa substância está associado a um aumento da agressividade, e, segundo pesquisas, das taxas de suicídio. O consumo recorrente de anfetamina é bastante associado à depressão. A intoxicação também pode provocar ansiedade.

Foi conduzida uma revisão sistemática e metanálise de dados relacionando o uso de anfetamina com cada um dos seguintes desfechos psiquiátricos: psicose, violência, suicidalidade, depressão e ansiedade. Foram incluídos estudos transversais, caso-controle, de coorte e randomizados controlados.

O objetivo do trabalho foi estimar a associação entre o uso de anfetamina e cada um dos cinco desfechos psiquiátricos, bem como avaliar as evidências consistentes de casualidade.

Foram incluídos 149 estudos, dos quais 59 incluídos na metanálise. A metanálise teve uma heterogeneidade significativa. As maiores evidências foram provenientes dos estudos transversais. O uso de anfetamina foi associado a aumento do risco de psicose (odds ratio, OR, de 2,0; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,3 a 3,3), suicidalidade (OR = 1,7; IC 95%, de 1,0 a 2,9) e depressão (OR = 1,3; IC 95% de 1,2 a 1,4).

A presença de transtorno por uso de estimulantes aumentou o risco de psicose (OR = 2,4; IC 95%, de 1,6 a 3,5), violência (OR = 6,2; IC 95%, de 3,1 a 12,3) e suicidalidade (OR = 1,5; IC 95%, de 1,3 a 1,8).

Para lembrar:

O uso de anfetamina (tanto lícito como ilícito) está associado a potenciais desfechos psiquiátricos. Além disso, muitas pesquisas mostram que as anfetaminas são neurotóxicas. Serão as consequências da legalização das anfetaminas uma lição para a legalização da maconha?

Comparando a saúde mental de usuários de Facebook e não usuários em uma amostra de pacientes internados na Alemanha

No século XXI as mídias sociais fazem parte do cotidiano da grande maioria da população mundial. Com mais de 2,3 bilhões de usuários, o Facebook é uma das redes sociais mais populares.

Indivíduos que usam as mídias sociais de forma constante normalmente recebem um retorno positivo dos amigos e familiares, e isto melhora seu humor e aumenta o sentimento de pertencimento a um grupo ou à sociedade.

Foi hipotetizado que esta experiência positiva contribui para a saúde mental dos indivíduos: Um estudo de 2016 relatou um aumento da percepção de suporte, da sensação de felicidade e de satisfação e uma redução do humor deprimido entre usuários do Facebook em comparação com não usuários. Com isto, levantou-se a hipótese de que o Facebook poderia ser uma ferramenta para o tratamento clínico, como psicoeducação e intervenções cognitivas.

No entanto, outros estudos questionaram este efeito positivo do Facebook; alguns estudos longitudinais descreveram que o uso cotidiano da rede contribui para a diminuição da satisfação diária e piora do humor.

O tempo de uso diário foi relacionado com o nível de depressão maior e sintomas de ansiedade. Além disso, o uso do Facebook, por si só, tem sido causa de angústia. O uso do Facebook já foi descrito como uma influência negativa para o bom funcionamento do ciclo circadiano.

Estas inconsistências impedem a conclusão se o uso desta mídia social deve ser incentivado ou desencorajado. Além disso, a maioria dos estudos na área foram conduzidos com jovens estudantes, o que limita a generalização dos resultados.

Faltam estudos sobre o uso do Facebook e sua relação com a saúde mental de pacientes com doenças psiquiátricas. Este estudo se propôs a comparar variáveis relacionadas com a saúde mental entre pacientes internados em ala psiquiátrica que usam Facebook e os que não usam a plataforma. Para isto, foram usados modelos dimensionais positivos (aspectos emocionais, psicológicos e sociais de bem-estar) e negativos (HEALTH-49, uma escala de depressão de cinco pontos e uma escala de estresse social).

Foram incluídas duas subamostras de pacientes internados em uma clínica na Alemanha (336 usuários de Facebook e 265 não usuários). Os usuários da rede social apresentaram três variáveis com valores maiores na dimensão negativa (depressão, estresse social e insônia) e valores significativamente menores em relação à dimensão positiva, quando comparados com os não usuários.

O tempo de uso diário do Facebook foi positivamente associado a variáveis da dimensão negativa.

Para lembrar:

O uso do Facebook deve ser visto com restrições, principalmente em pacientes com transtornos do humor. A grande maioria dos estudos realizados até o momento recomenda que estes pacientes evitem ou, pelo menos, restrinjam ao máximo o uso da plataforma.

Artigo publicado no Medscape em 20 de janeiro de 2020


Transtorno da personalidade borderline e transtorno afetivo bipolar: como fazer o diagnóstico diferencial

O interesse no transtorno da personalidade borderline (TPB) vem crescendo com o passar do tempo, tanto entre a classe médica como entre os pacientes. Um exemplo disso é quando observamos no Google Trends o gráfico de termos mais procurados no Google. Entretanto, o interesse da população em uma determinada doença e consequentemente o aumento do número de diagnósticos da mesma não necessariamente valida um diagnóstico médico.

Primeiramente, para se estabelecer a validade científica de um diagnóstico em uma especialidade como a psiquiatria, cujas doenças não apresentam sinais e/ou sintomas patognomônicos, é necessário usar os validadores diagnósticos de Robins e Guze (sintomas, curso da doença, resposta ao tratamento, genética/história familiar). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) usa apenas sintomas como critério diagnóstico, principalmente desde sua terceira edição. Isto pode gerar o que se chama na medicina de comorbidade. No entanto, esse conceito não é bem utilizado na psiquiatria. Em 1970, Feinstein cunhou o termo, no qual duas doenças diferentes ocorrem ao mesmo tempo por acaso, e não dois nomes diferentes para um conjunto de sintomas que se sobrepõem. O exemplo mais claro seria o paciente que sofre de diabetes e hipertensão.

Com relação ao transtorno de personalidade borderline, a doença que acaba fazendo a maior sobreposição seria o transtorno afetivo bipolar (TAB). Esta sobreposição pode causar uma série de erros diagnósticos e dificuldades no tratamento. A conferência de cada validador pode ajudar a diminuir esta confusão. A ideia do conceito borderline, ou seja, limítrofe, tem suas raízes nos conceitos psicanalíticos, de acordo com os quais o paciente estaria entre a neurose e a psicose. Este conceito data dos anos 30, quando a síndrome foi descrita pela primeira vez.

O diagnóstico diferencial entre TPB e TAB é controverso e difícil. Os principais sintomas que se sobrepõem são: labilidade do humor, impulsividade e síndrome maníaca. Labilidade do humor é definida como flutuações do humor durante minutos ou horas. Este sintoma consta como um dos critérios para transtorno da personalidade borderline na 5ª edição do DSM, mas não para o transtorno afetivo bipolar. No entanto, um estudo conseguiu diferenciar a labilidade do humor entre os dois transtornos baseado no tipo e intensidade. Em suma, existem poucas evidências de que a labilidade do humor seja um diferencial entre TAB e TPB.

Com relação aos sintomas maníacos, um estudo com 260 participantes concluiu que humor eufórico esteve bem mais associado ao TAB, e possibilitou a diferenciação das doenças (razão de chances ou odds ratio, OR, de 4,02; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,80 a 9,15).

Os sintomas de impulsividade estão muito próximos da labilidade do humor, e normalmente se manifestam como impulsividade sexual nestes dois transtornos. No entanto, pode se apresentar como descontrole financeiro ou agressividade. Existem alguns estudos demostrando uma prevalência em ambas as condições. Assim como a labilidade do humor, a impulsividade parece ser comum em ambas as doenças.

Um importante sintoma de diferenciação entre as duas doenças é a presença de automutilação. Uma recente metanálise concluiu que a automutilação é comum no TPB, girando entre 51% e 80%. Um estudo sobre automutilação em TAB chegou a uma frequência de 0,9%. Outro estudo recente demonstrou um aumento > 10 vezes do risco de automutilação em pacientes com história de abuso sexual. Outro estudo mostrou risco de automutilação duas vezes maior em pacientes com TPB versus TAB. A diferença de frequência deste sintoma entre as duas condições é grande, portanto, a automutilação é um sintoma muito mais relacionado com o TPB – não que seja patognomônico.

A maior revisão sistemática de estudos em gêmeos comparando transtorno afetivo bipolar e outras doenças concluiu que o TAB e a esquizofrenia são as duas doenças hereditárias mais comuns (80%). A hereditariedade do TPB foi de aproximadamente 40%. Podemos entender por estes números que o TAB tem um grande componente genético, maior que o transtorno de personalidade borderline, que tem uma grande influência ambiental (associado a circunstâncias, como, por exemplo, abuso sexual).

Uma questão no curso da doença que pode diferenciar as duas condições é a história de abuso sexual. Um estudo recente avaliou pacientes com diagnóstico de TAB e TPB de acordo com os critérios do DSM. Neste estudo, 12% dos pacientes com TAB tinham história de abuso sexual na infância contra 42,3% dos com TPB, produzindo um risco relativo de 3,47 (IC 95%, de 1,79 a 6,72). Pode-se entender que o abuso sexual é um fator fundamental para o quadro de TPB, tanto quanto o trauma para fratura óssea na ortopedia.

A resposta ao tratamento costuma ser vista como o validador mais inespecífico, pois as medicações podem estar relacionadas com vários diagnósticos, no entanto, alguns efeitos de certos tratamentos podem ser específicos. Em relação ao TAB existem muitas evidências de que a psicoterapia isolada não é totalmente efetiva no tratamento, podendo ser usada como adjuvante com a medicação. Quanto ao tratamento do TPB, existe um certo consenso de que o mais efetivo é a psicoterapia, pois a farmacoterapia isolada tem demostrado ser pouco efetiva, no máximo trazendo efeitos colaterais sintomatológicos.

Muitas vezes o conceito de temperamento é negligenciado quando se pensa no diagnóstico diferencial de TPB. A questão mais importante do conceito de temperamento é a noção de que sintomas maníacos e depressivos podem ser crônicos e leves, presentes e ativos o tempo todo, fazendo parte da personalidade do indivíduo e não apenas como episódios com sintomas graves. Posto isto, temperamentos podem ser definidos como versões leves de estados de humor, incluindo alterações do nível de energia, do padrão de sono e de comportamentos como sexual, social ou relacionados com o trabalho.

Existem três principais temperamentos: hipertimia, ciclotimia e distimia. Os temperamentos hipertímico e ciclotímico podem ser confundidos com o diagnóstico de TPB, já que apresentam características clínicas parecidas como labilidade do humor e impulsividade. Neste caso, é muito importante que se pesquise a história familiar de transtornos do humor, e também a possível história de abuso sexual e automutilação. A partir destes dados pode-se realmente fazer a diferenciação entre os temperamentos e o TPB.

A diferenciação entre TAB e TPB é de extrema importância, tanto para que se trate corretamente o paciente como para se entender o prognóstico. Os validadores nos mostram que nem sempre os diagnósticos mais pesquisados são os mais corretos. Será o transtorno da personalidade borderline um diagnóstico cientificamente válido após estas evidências ou seria um subtipo de transtorno do estresse pós-traumático?

Artigo publicado no Medscape em 26 de dezembro de 2019


Antidepressivos podem aumentar risco de demência em idosos

Exposição a antidepressivos e risco de demência

A demência é caracterizada por um declínio cognitivo e um comprometimento das atividades cotidianas, trazendo uma alta carga financeira para a sociedade, além de ser uma importante causa de incapacidade e de morte. Cerca de 5% a 6% das pessoas acima dos 60 anos apresentam algum tipo de demência; e estima-se que o número de casos irá duplicar até 2040. Isto faz com que fatores modificáveis na prevenção da demência tenham uma importância cada vez maior e sejam uma prioridade para as autoridades de saúde.

Estudos mostram que a prevalência da depressão maior entre os idosos é de 1,8%, e tem se demonstrado um fator de risco/pródromo de demência. Além disso, embora pesquisas tenham demonstrado que a eficácia dos antidepressivos é limitada nesta população, este tipo de medicamento ainda é muito usado.

Hipóteses antagônicas existem, associando o uso de antidepressivos e o risco de demência. A primeira postula que a maioria dos antidepressivos possuem efeitos anticolinérgicos e estes efeitos prejudicam as funções cognitivas, aumentando o risco para demência. A segunda hipótese relaciona os antidepressivos ao BDNF, efeitos anti-inflamatórios, neurogênese hipocampal e modulação da ativação da glia, fazendo com que o risco de demência diminua.

Poucos estudos examinaram a associação entre o uso de antidepressivos e o risco de demência. A maioria deles mostra um aumento do risco, mas existem exceções. Além disto, o uso de antidepressivos não modificou o curso da alteração cognitiva em um estudo. Em outro estudo o uso de longo prazo de antidepressivos tricíclicos foi associado a uma redução do risco. A disparidade dos resultados pode ser explicada pela diferença nos desenhos dos estudos. A maioria deles não fizeram os devidos ajustes nos modelos de regressão.

O objetivo deste estudo foi testar a hipótese de que o uso dos antidepressivos pode estar associado a um aumento ou diminuição do risco de demência em pessoas com idade acima dos 60 anos. Para isto, foi usada uma coorte prospectiva israelense pareada (N = 71.515) com pessoas acima dos 60 anos, sem demência, seguidas desde maio de 2013 até outubro de 2017. Destes, 67.827 não foram expostos a antidepressivos e 3.688 foram expostos a antidepressivo em monoterapia. Foi usada a regressão cox.

Na análise primária o HR foi de 4,09 (IC 95%, de 3,64 a 4,60) e o ajustado foi de 3,43 (IC 95%, de 3,04 a 3,88). Foram feitas 24 análises de sensibilidade para analisar a taxa de risco, e os valores de HR variaram entre 1,99 e 5,47.

Para lembrar:

Este estudo mostra um aumento do risco de demência em pacientes idosos em uso de antidepressivos em monoterapia. Um bom diagnóstico diferencial nesta população é necessário, pois nem sempre os primeiros episódios depressivos dos pacientes são episódios de depressão maior; podem ser sintomas relacionados com doenças orgânicas, como doença de Parkinson ou Alzheimer, por exemplo. Outra possibilidade é um episódio de depressão bipolar em pacientes que já convivem com um dos três principais temperamentos (ciclotimia, distimia, hipertimia).

Canabinoides para o tratamento de doenças mentais e seus sintomas: uma revisão sistemática e metanálise

Alguns países estão permitindo a comercialização de canabinoides para uso medicinal, inclusive para o tratamento de doenças mentais. Os autores do trabalho analisado usaram o termo Cannabis medicinal para se referir a qualquer parte da planta Cannabis. Usa-se o termo canabinoide farmacêutico para se referir a qualquer categoria de extrato medicinal contendo tetrahidrocanabidiol (THC) com ou sem canabidiol (CBD). Devido ao grande interesse por produtos com CBD para o tratamento de diversas doenças, os pesquisadores agruparam separadamente os estudos que usaram apenas CBD.

Depois da dor crônica, a doença mental é a razão mais comum para o uso de canabinoide medicinal. Existem algumas hipóteses para explicar por que o endocanabinoide reduz os sintomas depressivos, além dos emocionais e cognitivos no transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Muitas pesquisas reportam aumento do uso de Cannabis entre pessoas com depressão, ansiedade, TEPT e psicose (em todos os casos como automedicação).

Uma revisão de cinco estudos randomizados controlados sobre doenças mentais, feita em 2015, concluiu que o canabinoide medicinal não apresentou efeito em psicose e depressão. Outra revisão, feita em 2016, incluiu 40 estudos randomizados sobre canabinoide medicinal para o tratamento de TEPT, doença de Tourette e doença de Alzheimer. Não foi possível identificar estudos randomizados controlados sobre nenhuma condição, consequentemente nenhuma conclusão foi possível sobre a eficácia. Até o momento, nenhuma revisão considerou todos os tipos de evidências, os diferentes potenciais relacionados com os diferentes tipos de canabinoides medicinais.

Este estudo examina as evidências de todos os tipos de canabinoide medicinal e todos os tipos de estudos (controlados e observacionais) para averiguar o impacto do canabinoide medicinal na remissão de sintomas de depressão, ansiedade, TEPT, psicose, transtorno de déficit de atenção e/ou hiperatividade (TDAH) e síndrome de Tourette. A revisão também avaliou a segurança do canabinoide medicinal para saúde mental.

Participaram desta revisão pacientes acima dos 18 anos tratados com canabinoide medicinal para depressão, ansiedade, TDAH, transtorno de Tourette, TEPT ou psicose. Não houve restrição com relação à língua ou ao tipo de estudo. O desfecho primário foi remissão e alteração nos sintomas destas doenças mentais. A qualidade dos estudos foi avaliada por meio da escala GRADE.

No total, foram incluídos 83 estudos, sendo que alguns se sobrepõem nos diagnósticos. Destes, 40 eram randomizados (N = 3.067); 42 eram sobre depressão (23 randomizados; N = 2.551); 31 eram sobre ansiedade (17 randomizados; N = 605); 8 estudos eram sobre síndrome de Tourette (2 randomizados; N = 36); e 3 eram sobre TDAH (1 randomizado; N = 30). Foram incluídos 12 estudos sobre TEPT (1 randomizado; N = 10) e 11 sobre psicose (6 randomizados; N = 281).

Houve melhora da ansiedade entre indivíduos com dores crônicas e esclerose múltipla, no entanto as evidências GRADE foram baixas. O uso de THC farmacêutico piorou os sintomas negativos nas psicoses em um dos estudos. Além disso, o THC farmacêutico não afetou nenhum desfecho primário entre outras doenças mentais, mas aumentou o número de pacientes com efeitos colaterais (OR = 1,99; IC 95%, de 1,20 a 3,29). Também houve um aumento no abandono dos estudos devido aos efeitos colaterais em comparação com o placebo (OR = 2,78; IC 95%, de 1,59 a 4,86).

Para lembrar:

Esta revisão sistemática e metanálise revela evidências escassas sobre a melhora dos sintomas citados quando tratados com canabinoides. O trabalho não apresenta evidências contundentes de que o THC farmacêutico melhore os sintomas de ansiedade entre indivíduos com outras patologias. Sendo assim, a prescrição deste tipo de medicamento ainda é precoce para qualquer um destes sintomas psiquiátricos. Outro ponto importante revelado pelo estudo foi o aumento dos efeitos colaterais, portanto, deve-se ter muito cuidado ao prescrever canabinoides para pacientes com quadros psiquiátricos.

Recente aumento de sintomas depressivos entre adolescentes norte-americanos: análise de tendências de 1991 a 2018

Evidências sugerem que a incidência de sintomas depressivos entre jovens norte-americanos permaneceu estável entre os anos 60 e 90, no entanto, cada vez mais evidências indicam que a prevalência deste tipo de sintoma tem sido maior nesta população nos últimos anos.

Um estudo reportou um aumento de 8,7% (em 2005) para 12,5% (em 2015) da prevalência de depressão maior entre adolescentes nos Estados Unidos. A incidência de casos de suicídio entre meninas de 10 a 14 anos quase triplicou de 1999 para 2014. Outro dado importante é que, a partir dos anos 90, o uso de medicamentos para tratar transtornos do humor em adolescentes ou adultos aumentou substancialmente.

Alguns estudos transversais e prospectivos têm indicado uma certa estabilidade na incidência de sintomas depressivos, mas a maioria desses trabalhos se concentra em adultos, e não inclui dados recentes de adolescentes. As últimas evidências mostram que não houve aumento da incidência de sintomas depressivos entre adolescentes, mas, na última década, houve uma rápida mudança do ambiente em relação a tecnologia (incluindo mídias sociais) e saúde (diminuição de horas de sono, obesidade e outras alterações que possam influenciar nos sintomas depressivos).

O aumento da incidência de sintomas depressivos pode indicar que fatores de risco ambientais estão aumentando em prevalência ou magnitude, além de ser um novo problema a ser abordado. Este estudo buscou abordar o hiato que existe em relação a incidência de sintomas depressivos em adolescentes, para isso, os pesquisadores utilizaram dados de 1991 a 2018 do estudo "Monitorando o Futuro". Foi usada uma pesquisa transversal do oitavo, décimo e do décimo segundo anos escolares (N = 1.260.159). Os pesquisadores adotaram modelos hierárquicos de idade, período e coorte, e mediram os sintomas depressivos por meio de um questionário com quatro perguntas.

Os sintomas depressivos das meninas diminuíram entre 1991 e 2011, mas aumentaram em 2018. Não houve efeito coorte, pois houve um aumento em todos os grupos. Nos meninos, a tendência foi parecida, mas o aumento foi menos marcante quando comparado com as meninas. Os sintomas depressivos estão aumentando entre os adolescentes, especialmente entre as meninas.

Para lembrar:

Os adolescentes devem receber um olhar especial em relação às condições como os transtornos do humor. Além da adolescência ser um momento de muitas mudanças orgânicas e psicológicas, o uso de redes sociais pode dificultar ainda mais esse período da vida. Estas questões precisam ser vistas como novos fatores de risco de sintomas depressivos e episódios de humor.

Artigo publicado no Medscape em 09 de dezembro de 2019


O Coringa: estigma e abandono na doença mental

Nesse episódio do Conversa de Médico falamos sobre o filme O Coringa, e para nos ajudar convidamos o Dr. Sivan Mauer, psiquiatra e advisor de Psiquiatria do Medscape Edição em Português.

Segundo o Dr. Sivan, mais do que conseguir estabelecer um diagnóstico psiquiátrico do personagem do filme – já que isso depende de informações que não se pode inferir completamente apenas com o roteiro do filme – é fundamental entender o contexto médico e social no qual se desenrolam as ações do filme.

O protagonista, ao início da história, recebia tratamento médico adequado e o necessário suporte social. Quando ele perde esse suporte, inicia-se a caminhada e direção à ruptura do tênue equilíbrio estabelecido até então.

Embora a violência possa chamar a atenção de quem assiste o filme, ela não é parte do quadro inicial do personagem, como também não faz parte do dia a dia dos pacientes psiquiátricos na vida real. Os pacientes, na sua grande maioria, não são violentos quando estão tratados e vivendo na forma crônica estabilizada de seus transtornos mentais.

Mais do que nos fazer pensar sobre um paciente psiquiátrico, o filme nos leva a refletir sobre como a sociedade lida com esses indivíduos e quais são os suportes que proporciona a eles.

É preciso lembrar o contexto histórico da época em que se passa a trama. A ação se dá nos anos 80, início do período neoliberal e das ideias do estado mínimo, lembra o Dr. Sivan. Nesse momento, especialmente nos Estados Unidos, as estruturas de suporte para os pacientes psiquiátricos são desmontadas. Se cria assim o cenário que culmina com muitas cidades norte-americanas registrando enormes contingentes de população de rua, a maioria delas portadora de transtornos psiquiátricos não tratados.

No Brasil não é diferente, e muitas vezes os doentes acabam no sistema prisional, encarcerados por conta de crimes e contravenções decorrentes de episódios de violência originados pela falta de tratamento.

A ausência de leitos nos hospitais gerais, com estrutura adequada para receber esses pacientes em momentos agudos mostra como a sociedade brasileira não consegue ainda enfrentar a doença psiquiátrica.

O Coringa, mais do que entretenimento, suscita uma reflexão importante sobre a doença mental e sobre como lidamos com ela, seja individualmente ou como sociedade.

Ouça o podcast em Medscape.


Automutilação entre adolescentes: o papel da dissociação e do abuso

Automutilação entre adolescentes: o papel da dissociação e do abuso físico e sexual

A automutilação é comum entre adolescentes. Uma pesquisa em escolas inglesas mostrou uma prevalência de 7% nesta população, sendo que, destes, apenas 12,6% procuraram ajuda em serviços de saúde.

É necessário um melhor entendimento sobre a automutilação de adolescentes para podermos traçar melhores estratégias de tratamento.

Foram identificados alguns fatores de risco associados a automutilação, como: exposição à negligência, e abuso físico e sexual. O abuso sexual, em especial, é um preditor de automutilação; cerca de 79% dos pacientes que praticaram automutilação relatam história de abuso sexual.

O abuso sexual está mais associado à gravidade e à cronicidade do quadro do que o abuso físico. No entanto, um estudo demostrou que 67% das vítimas de abuso sexual na infância não passaram a praticar automutilação. Pensa-se que trajetória do abuso sexual até automutilação seria mediada por outro fator.

Dissociação é um fator postulado que poderia elevar o risco de automutilação em vítimas de abuso sexual. De fato, em adultos, a dissociação está implicada como mediador parcial entre a ocorrência de abuso sexual na infância e a automutilação. Um estudo com adolescentes apresentou a dissociação como mediador entre o abuso sexual, os sintomas psiquiátricos e o comportamento de risco (incluindo tentativa de suicídio e automutilação). Em outras palavras, a exposição ao abuso sexual não leva a automutilação deterministicamente.

A 5ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) não leva em conta a dissociação para critérios de automutilação não suicida e transtorno de comportamento suicida. Dissociação é definida como um fenômeno psicológico envolvendo alterações da consciência, percepção, memória, identidade e afeto.

Para este estudo foi recrutada uma amostra de adolescentes de serviços de atendimento a crianças em momento agudo. Foi analisada a relação entre experiências dissociativas e a automutilação, testando se havia relação entre história de abuso e automutilação.

O estudo testou quatro hipóteses: (1) se dissociação, abuso e automutilação estão significativamente associados; (2) se a dissociação medeia a relação entre abuso e automutilação; (3) se os diferentes subtipos de dissociação contribuem para mediar a relação entre abuso e automutilação; (4) se os sintomas de dissociação seriam mais importantes entre os pacientes com padrão crônico de automutilação (definido como mais de três episódios de automutilação).

Todos os participantes que praticaram automutilação foram recrutados no momento que deram entrada no serviço de emergência. Foram incluídos 72 adolescentes entre 11 e 17 anos. Além disso, 42 pacientes sem doenças psiquiátricas foram usados como controles.

Os pacientes que praticaram automutilação apresentaram níveis significantemente mais elevados de abuso e dissociação quando comparados ao grupo de controle. A dissociação mediou significativamente a associação entre abuso e automutilação. Dos subtipos de dissociação, a despersonalização foi o principal mediador.

Para lembrar:

Abordar a questão da automutilação durante o exame físico de crianças e adolescentes é muito importante. Cada vez mais evidências robustas relacionam a automutilação com o abuso sexual. Esse tipo de questionamento é decisivo para um bom diagnóstico diferencial, neste caso, entre transtorno de personalidade borderline e transtorno afetivo bipolar. Sabendo que a prevalência de casos de abuso e de automutilação é muito maior no primeiro.

Desfechos longitudinais de pacientes com TAB de início na infância e no adulto comparados a controles com esquizofrenia e sem doença mental

Transtorno afetivo bipolar (TAB) é uma doença grave que afeta crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos. A prevalência em adultos é de aproximadamente 1% e em adolescentes, de 1,8%. Um recente estudo dinamarquês sugere aumento da incidência de diagnósticos de TAB entre crianças e adolescentes nos últimos vinte anos, o que corresponde aos dados de estudos norte-americanos.

O aumento na identificação e no reconhecimento do transtorno afetivo bipolar em crianças e jovens nas duas últimas décadas pode ser parte da justificativa para o aumento da prevalência da doença nesta população. Esta hipótese é embasada por vários estudos feitos com adultos com TAB que mostram que a doença inicia na adolescência, mas costuma ser diagnosticada apenas na idade adulta.

O transtorno afetivo bipolar diagnosticado na infância está associado a um desfecho mais reservado, ou seja, os pacientes apresentam quadros de mania e depressão mais graves e episódios mais longos em comparação com os de pacientes com TAB de início mais tardio.

O TAB está associado a aumento da morbidade e da mortalidade. Em comparação com a população em geral, os pacientes com TAB apresentam risco de suicídio mais de 10 vezes maior e expectativa de vida de 9 a 20 anos menor. A taxa de tentativas de suicídio é maior entre pacientes com TAB diagnosticado na infância. Além disso, tem sido observada uma forte associação entre o transtorno afetivo bipolar e atividades criminosas, com o abuso de substâncias sendo um mediador.

Os autores deste estudo buscaram investigar as taxas de automutilação, de atos criminosos e o uso de serviços de saúde para o tratamento de fraturas por pessoas com transtorno afetivo bipolar em comparação com pessoas com esquizofrenia e pessoas sem diagnóstico de doença mental.

Como desfecho secundário, os autores investigaram as internações em hospitais psiquiátricos e contato ambulatorial. Como desfecho terciário, a taxa anual de dias de hospitalização em serviços de psiquiatria.

Foi utilizada uma coorte dinamarquesa com pacientes diagnosticados com transtorno afetivo bipolar, esquizofrenia e pessoas em diagnóstico de doença mental. Os desfechos foram: tempo de internação hospitalar, internação psiquiátrica, atendimento em ambulatório de psiquiatria, fratura relacionada com atendimento em algum serviço de saúde, automutilação (incluindo tentativa de suicídio) e acusação criminal. Taxa de incidência ajustada para idade de primeiro contato psiquiátrico, abuso de substância e doença parental foram calculados, comparando início na infância (de 5 a 17 anos) e início em idade adulta (de 18 a 39 anos).

Os pacientes com TAB diagnosticado na infância (N = 349) foram melhores que os controles emparelhados esquizofrênicos em todos os seis desfechos. Desfechos similares foram observados em pacientes com TAB diagnosticado na idade adulta (N = 5.515) comparados com pacientes com esquizofrenia.

Ao comparar os pacientes com TAB diagnosticado na infância (N = 365) com os controles saudáveis (N = 1.095), apenas a automutilação se diferenciou significativamente. Inversamente comparando TAB diagnosticado na idade adulta (N = 6.005) com os controles saudáveis (N = 18.015), automutilação, fraturas e atos criminosos foram mais comuns entre pacientes com transtorno afetivo bipolar. Os pacientes com TAB foram mais associados a desfechos piores do que os controles saudáveis, mas a desfecho melhores do que os pacientes com esquizofrenia.

Para lembrar:

Desde o século XIX entende-se que o curso dos pacientes com transtornos afetivos é mais benigno que em pacientes com esquizofrenia. É crucial ter o entendimento sobre o curso destas doenças, porque o tratamento precoce melhora o prognostico. É importante ressaltar que o lítio é um medicamento claramente modificador dos transtornos afetivos, ou seja, altera o curso e o prognóstico da doença, e não apenas trata os sintomas.

Prejuízo cognitivo em idosos com transtorno afetivo bipolar: fatores de risco e desfechos clínicos

O transtorno afetivo bipolar (TAB) em idosos é frequentemente associado a prejuízos cognitivos, no entanto, pouco se sabe sobre os fatores de risco e as correlações clínicas. Estudos recentes mostram que pacientes idosos com TAB têm pior função cognitiva em comparação com os seus pares sem a doença, e apresentam déficits em múltiplos domínios, com tamanhos de efeitos médios/grandes, levemente maiores do que os observados em coortes de pacientes mais jovens.

Estudos populacionais sugerem que o TAB está associado a um risco de demência duas vezes maior. Para esclarecer este processo é necessário entender os prejuízos neurocognitivos existentes antes do declínio. É sabido que pacientes com TAB apresentam vários graus de prejuízos quando comparados com pessoas sem o diagnóstico. Estes prejuízos envolvem: memória de trabalho, funções executivas, memória verbal, inibição de resposta e outros domínios, e são evidentes desde a idade adulta.

Prejuízos cognitivos são um dos mais importantes preditores de bom funcionamento no mundo real para pacientes com TAB. Apesar disso, eles ainda são pouco estudados. Os autores buscaram explorar fatores de risco relacionados com a doença, além de outros, entre pacientes com TAB. Foi usado um desenho caso-controle comparando pessoas com TAB com e sem prejuízo cognitivo.

Foram incluídos pacientes acima de 60 anos, dos quais 48 tinham diagnóstico de TAB sem prejuízo cognitivo e 38 tinham TAB com prejuízo cognitivo. Os participantes foram recrutados de ambulatórios e internações psiquiátricas, e foram avaliados por meio de vários instrumentos, entre eles, a Clinical Dementia Rating Scale e a avaliação cognitiva de Montreal. Foram usados modelos bivariáveis e modelos multivariáveis.

O prejuízo cognitivo em idosos com TAB foi associado ao diagnóstico de TAB tipo 1 (odds ratio, OR, = 6,4; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,84 a 22,31), à gravidade de doenças físicas (OR = 26,54; IC 95%, de 2,07 a 340,37) e ao baixo nível de instrução (OR = 0,79; IC 95% de 0,69 a 0,91)

Para lembrar:

Alterações cognitivas são muito frequentes em pacientes idosos com TAB. O diagnóstico precoce junto com o tratamento correto possivelmente são as duas medidas mais eficazes. Deve-se sempre lembrar que o lítio ainda é o único medicamento comprovadamente eficaz para a prevenção da demência, tanto em pacientes bipolares como em pacientes sem o diagnóstico. Além disso, pode-se e deve-se administrar doses mais baixas nesta população. Mais uma vez, é importante lembrar que o nível sérico de lítio destes pacientes não deve passar de 0,7 mEq/l.

Artigo publicado no Medscape em 11 de novembro de 2019


"Só o que eu tenho são pensamentos negativos": Reflexões sobre o Coringa

Esse texto contém spoilers.

O filme Coringa está sendo um grande sucesso de público e vem recebendo críticas positivas, mas também tem gerado muitas discussões no que concerne à psiquiatria. Para alguns, a questão mais importante é o diagnóstico de Arthur Fleck, o Coringa, sendo que uma doença que passa pelo imaginário das pessoas é a esquizofrenia, um dos principais motivos para isso é a presença de sintomas psicóticos (como pensamentos delirantes, alucinações auditivas, visuais ou táteis) e o fato de o personagem ter crises de riso sem motivo aparente.

Não só no filme, mas também na vida real, o diagnóstico sintomatológico na psiquiatria é um problema de longa data, problema este que aumentou desde a publicação do primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Um exemplo é o fato de, nos anos 70, existir uma grande diferença de prevalência de esquizofrenia entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Nos EUA, a esquizofrenia era vista com uma sintomatologia muito mais ampla que na Inglaterra. Desta questão surgiu um dos grandes artigos seminais da especialidade, explicando o porquê desta diferença.

Na mesma época, Robins e Guze também publicaram um artigo de extrema importância sobre esquizofrenia. No entendimento deles, uma doença psiquiátrica só teria validade científica através da verificação dos seguintes critérios: sintomas, curso da doença, resposta ao tratamento, história familiar/genética e marcadores biológicos. Sendo assim, Arthur pode ter vários diagnósticos, desde esquizofrenia até síndrome pseudobulbar. Para tentar chegar a um diagnóstico para este personagem seria necessário analisar, além dos sintomas descritos, os outros validadores acima citados.

Analisar a história familiar do Coringa é difícil, tendo em vista que não fica realmente claro quem são os pais do personagem. Uma das hipóteses é que ele seja filho de Penny Fleck, uma mulher com diagnóstico de psicose e transtorno de personalidade narcisista, e história de internação psiquiátrica. O que devemos entender é que psicose é um diagnóstico totalmente inespecífico, na verdade, é apenas um conjunto de sintomas. O transtorno de personalidade narcisista, mesmo segundo especialistas em transtornos de personalidade, não seria um diagnóstico cientificamente válido, ou seja, não se diferencia dos outros transtornos de personalidade. Porém, o filme apresenta a possibilidade de o personagem ter sido adotado por Penny, e ter sofrido graves abusos na infância. Neste caso, não há como determinar a história familiar de maneira conclusiva.

Com relação ao curso da doença, Arthur parece ter episódios recorrentes, principalmente quando deixa de tomar seus medicamentos. No filme, é revelado que o personagem já passou por internação psiquiátrica, e recebe acompanhamento psicoterápico, mas as informações são insuficientes para entender o curso da doença.

Entretanto, não acredito que o diagnóstico seja a questão psiquiátrica central deste filme, mas sim a relação da sociedade com a doença mental. Esta relação se apresenta de diversas maneiras, como violência, estigma e pobreza. Ainda hoje existe uma percepção geral de que doença mental e violência estão relacionadas. Esta percepção é muitas vezes reforçada pelo sensacionalismo da mídia audiovisual, que produz filmes e séries sobre crimes cometidos por pessoas com doenças mentais quando, na verdade, a população de criminosos que sofre de alguma doença mental é pequena. Um estudo concluiu que para prevenir um homicídio é necessário que se prenda 35.000 esquizofrênicos com risco de cometer algum ato de violência. Este dado contradiz claramente o senso comum de que pacientes com doença mental grave seriam uma ameaça.

Outro estudo mostrou que a maior prevalência de violência está entre os pacientes em episódios agudos. Aqui, é importante lembrar que Arthur se torna o Coringa quando o Estado para de prover seus medicamentos, então começa um episódio de raiva, labilidade de humor, sintomas psicóticos e violência.

"A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse." Esta é uma frase importante do filme, dita pelo Coringa. Essa frase mostra a percepção do personagem sobre a sociedade e sobre o fato de ter uma doença mental. Arthur entende que, para viver naquela sociedade, ele não pode revelar a própria doença, pois sua vulnerabilidade traz consequências, como ser vítima de violência. É importante ressaltar que não é apenas em Gotham City que as pessoas não conseguem se relacionar com o diferente. Até hoje o estigma da doença mental está enraizado na nossa sociedade. O estigma da doença mental está relacionado com o ato de rotular e associar as pessoas diferentes a estereótipos negativos. Além disto, faz parte do conceito a perda do status na sociedade.

A pobreza e a desigualdade social são elementos muito importantes na história de Arthur e na evolução da doença mental dele. Arthur é atendido por uma assistente social, e também depende que seus medicamentos sejam dispensados pelo serviço público.

Outro momento importante do filme é quando Arthur fala para sua terapeuta:"Você faz as mesmas perguntas todos os dias: 'Como vai seu trabalho?' 'Está tendo pensamentos negativos?' Só o que eu tenho são pensamentos negativos."

É evidente que Arthur não está bem, e a terapeuta não tem meios para lhe ajudar. Para piorar, ela anuncia que as consultas serão cortadas e, consequentemente, o fornecimento dos medicamentos. Coringa nasce!

Todos estes componentes são muito relevantes para a vida de uma pessoa com doença mental, seja qual for. O coringa existiria se Arthur estivesse no lugar de Bruce Wayne? A resposta é: provavelmente não. Coringa é um filme complexo e importante para sociedade, inclusive para os médicos repensarem a própria atitude em relação ao diferente e em relação à doença mental. Será que Arthur queria matar ou Arthur estava pedindo socorro?

Artigo publicado no Medscape em 08 de novembro de 2019


Revisão busca associar uso de cigarros eletrônicos e de maconha entre jovens

Associação entre uso de cigarros eletrônicos e maconha

O uso de cigarros eletrônicos entre jovens de 10 a 24 anos de idade aumentou substancialmente nos últimos cinco anos. Nos Estados Unidos, um terço dos jovens nos últimos anos do segundo grau relatam já ter usado cigarro eletrônico.

Até pouco tempo pensava-se que os cigarros eletrônicos eram mais seguros que os cigarros tradicionais, mas pesquisas mostram o contrário. O aerossol destes dispositivos contém altos níveis de nicotina, metais pesados e carcinógenos. Além disso, estudos recentes têm mostrado uma forte associação entre cigarros eletrônicos e consumo de bebidas alcoólicas, maconha e outras drogas.

Pacientes com transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de múltiplas drogas e ao uso de outras substâncias psicoativas geralmente começam a consumir estas substâncias antes dos 18 anos, e mais de 95% dos usuários iniciam antes dos 25 anos. Adolescentes e adultos jovens, cujo cérebro está em desenvolvimento, são mais vulneráveis que adultos a se tornarem dependentes de nicotina, bebidas alcoólicas, maconha e outras drogas.

Foi conduzida uma revisão sistemática e uma metanálise para caracterizar e quantificar a associação entre o uso de cigarros eletrônicos e de maconha entre adolescentes e adultos jovens. Os autores aventaram que o consumo de maconha seria maior entre os usuários de cigarros eletrônicos, e entre os adolescentes.

Os estudos analisados incluíam jovens de 10 a 24 anos de idade e comparavam usuários de cigarro eletrônico com não usuários. Foram incluídos estudos transversais e longitudinais. Dentre os 835 estudos inicialmente identificados, 21 foram selecionados. A metanálise incluiu 3 estudos longitudinais e 18 transversais, somando 128.227 participantes.

As taxas de consumo de maconha foram maiores entre jovens usuários de cigarros eletrônicos (razão de chances ou odds ratio, OR, de 3,47; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 2,63 a 4,59) – tanto nos estudos longitudinais como nos transversais: OR = 2,43; IC 95%, de 1,51 a 3,90; OR = 3,70; IC 95%, de 2,76 a 4,96, respectivamente. As taxas de consumo de maconha entre jovens de 12 a 17 anos usuários de cigarros eletrônicos foram maiores do que entre adultos jovens de 18 a 24 anos: OR = 4,29; IC 95%, de 3,14 a 5,87; OR = 2,30; IC 95% de 1,40 a 3,79, respectivamente.

Para lembrar:

É de extrema importância que se tomem medidas para dificultar o acesso a cigarros eletrônicos entre jovens, pois, como podemos constatar através desta metanálise, este grupo tem um risco três vezes maior de iniciar o uso de maconha. Também é importante conscientizar os responsáveis por adolescentes de que, mesmo que a maconha seja legalizada, esta não é uma droga segura para jovens com o cérebro em desenvolvimento.

O pensamento acelerado revisitado: uma dimensão-chave da ativação no transtorno afetivo bipolar

Pensamentos acelerados se referem a um aumento subjetivo da velocidade e à produção exacerbada de pensamentos, associado a episódios de mania/hipomania em pacientes com transtorno afetivo bipolar (TAB).

Apenas a última edição o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) reconheceu que os pensamentos acelerados ocorrem como especificadores de "características mistas" em episódios depressivos e de mania/hipomania.

De acordo com o DSM-5, os especificadores de "características mistas" podem ser aplicados quando três sintomas do polo oposto que não se sobreponham ocorrerem junto com um episódio de depressão maior ou de mania/hipomania. Entre os sintomas que não se sobrepõem, os pensamentos acelerados têm sido constantemente relacionados com as características mistas na depressão.

Alguns estudos sugerem que este seria o sintoma central presente em até 89% dos pacientes. A identificação dos pensamentos acelerados, junto com o humor deprimido, pode evitar importantes consequências no tratamento, entendendo que as "características mistas" estão associadas a um aumento na ideação suicida e a baixa resposta a antidepressivos.

Este estudo investiga as propriedades psicométricas do questionário sobre pensamentos rápidos e sobrecarregado (RCTQ) e a sua capacidade de diferenciar episódios depressivos típicos de episódios mistos em pacientes com TAB.

Estudos anteriores mostraram que os médicos normalmente não reconhecem sintomas do polo oposto predominantemente em episódios depressivos ou maníacos. Isto ocorre devido à específica fenomenologia dos episódios mistos, incluindo aumento da ansiedade e pensamentos acelerados.

Além disso, o diagnóstico torna-se ainda mais difícil devido aos sintomas em comum entre a mania e a depressão (falta de foco, irritabilidade e agitação psicomotora), que foram excluídos dos especificadores de características mistas. O atual critério diagnóstico apresenta falta de sensibilidade, permitindo o diagnóstico de depressão mista apenas em um entre quatro casos.

Estudos recentes mostram que a presença de menos sintomas concorrentes do polo oposto (por exemplo, pontuação > 2 na escala de mania de Young) tem uma especificidade e sensibilidade maior que os atuais critérios diagnósticos do DSM-5 para depressão com características mistas.

Esses estudos propuseram e validaram outras características, focando na ativação psíquica na depressão, argumentado que os critérios do DSM-5 falharam em reconhecer os sintomas que definem a depressão mista (irritabilidade, tensão e agitação psicomotora).

Dois tipos de pensamentos acelerados foram identificados em estudos de fenomenologia em pacientes com transtornos do humor: pensamento acelerado, associado a humor maníaco, e pensamento sobrecarregado, associado a humor depressivo.

A fenomenologia do pensamento acelerado e do pensamento sobrecarregado parece ser diferente. Pensamentos acelerados são caracterizados por uma rápida inundação de pensamentos, normalmente associados a humor exaltado. O pensamento sobrecarregado é descrito como um excesso de informações na cabeça dos pacientes, e está associado a uma funcionalidade prejudicada. Os pensamentos sobrecarregados normalmente são descritos em quadros de depressão, mas também podem ser vistos em quadros mistos.

O objetivo deste estudo foi avaliar a validade e a confiabilidade da escala RCTQ em pacientes com TAB e em controles saudáveis. Se a escala capturar pensamentos ativados especificamente associados a humor maníaco, então a pontuação deve ser maior em episódios maníacos e mistos do que em episódios depressivos e eutímicos.

O estudo tem particular interesse em discriminar depressão mista e não mista.

Foram incluídos 221 pacientes com TAB e 120 controles saudáveis. Todos foram avaliados pelas escalas de YMRS (mania), QIDS-C16 (depressão) e RCTQ para ruminação, preocupação e ansiedade.

Três grupos foram operacionalizados de acordo com a pontuação da escala YMRS, sendo pontuação > 2, < 6 e 1 ou 2 respectivamente para depressão mista e depressão não pura, e YMRS = 0 para depressão pura. Fatores de análise confirmatória mostraram que o modelo de três fatores da RCTQ produziu os melhores índices, e removeu itens redundantes, resultando em um questionário com 13 itens.

Hipomania e ansiedade foram os preditores com maior pontuação. Já ruminação não pareceu ser um preditor significativo. Os resultados da RCTQ foram maiores nos grupos com depressão mista e não pura, quando comparados com os de depressão pura.

Para lembrar:

A avalição da alteração da velocidade do pensamento é de extrema importância no exame do estado mental de qualquer paciente, seja no consultório ou na emergência. Com este dado é possível fazer o diagnóstico de episódios mistos, e assim evitar o uso de antidepressivos, que são extremamente deletérios para estes pacientes, podendo até mesmo aumentar as ideações suicidas nesses casos.

Nível sérico ideal para o lítio na manutenção do transtorno afetivo bipolar: uma revisão sistemática e recomendações

O uso do lítio foi aprovado na Europa e na América do Norte há mais de 45 anos, e é considerado o tratamento de primeira linha para o transtorno afetivo bipolar (TAB) na maioria das diretrizes.

Entretanto, esse medicamento tem um intervalo curto entre a dose terapêutica e a dose tóxica. O índice terapêutico do lítio é 2. As revisões recomendam diferentes intervalos de níveis de lítio para a manutenção do TAB, algumas recomendam de 0,4 mmol/L a 0,8 mmol/L e outras de 0,6 mmol/L a 1,0 mmol/L.

O maior problema das diferentes recomendações é que faltam grandes estudos, bem desenhados, para avaliar os níveis séricos ideais – principalmente estudos que equilibrem eficácia e tolerabilidade para a maioria dos pacientes.

A revisão mais recente sobre os níveis ideais de lítio para manutenção do tratamento do TAB identificou cinco estudos com amostras pequenas. Além disso, a revisão indica que faltaram alguns questionamentos importantes.

Uma força-tarefa da International Society for Bipolar Disorders e do International Group for The Study of Lithium Treated Patients (ISBD/IGLSI) foi designada para estabelecer um consenso sobre os níveis séricos de lítio para a manutenção do TAB, utilizando o método Delphi, que consiste no envio de questões clínicas e afirmações para que especialistas respondam.

Com os critérios de inclusão estritos não houve a inclusão de nenhum estudo. Foram incluídos sete estudos selecionados pelo objetivo da revisão. Destes, quatro estudos sugerem melhor eficácia do lítio entre 0,45 e 0,60 até 0,8 a 1,0 mmol/L. Estes dados suportam os achados da pesquisa Delphi.

Para idosos não houve consenso, mas a maioria dos membros endossou uma abordagem mais conservadora, normalmente entre 0,4 mmol/L e 0,6 mmol/L, com a opção de aumentar até 0,7 mmol/L ou 0,8 mmol/L em pacientes entre 65 e 79 anos, e usar no máximo 0,7 mmol/L em pacientes acima de 80 anos.

Para lembrar:

A dosagem de lítio é importante para a boa prática clínica. Com o surgimento dos estudos ecológicos, onde se entende que o lítio tem efeitos terapêuticos mesmo em microdoses, o clínico pode focar no limite superior do nível sérico, para fins de toxicidade. Para o nível inferior é importante que se use a resposta clínica/efeitos colaterais como parâmetro. A dosagem do nível sérico é importante para adesão, principalmente nos idosos, onde o intervalo e muito mais estreito.

Artigo publicado no Medscape em 10 de outubro de 2019