Os Javalis Selvagens e o diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático.

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O time de futebol juvenil conhecido como Wild Boars (Javalis Selvagens) virou notícia mundial, mas infelizmente não pela qualidade dos jogadores ou pelos feitos em campo, e sim pela aventura dramática e quase cinematográfica da qual fizeram parte em um parque na Tailândia. O grupo composto de 12 meninos, com idades de 11 a 17 anos, além do jovem treinador de apenas 25 anos, ficaram presos durante 18 dias em uma caverna úmida e escura, há quilômetros de distância da saída mais próxima.

Após ser encontrado (todos com vida e relativamente saudáveis), o grupo foi resgatado, numa grande operação que contou com profissionais de diversas partes do mundo, e levado ao hospital local o mais rápido possível. Os profissionais de saúde que participaram do resgate tinham uma grande preocupação inicial em relação às consequências pneumológicas, oftalmológicas e nutricionais dos sobreviventes. Após algumas horas do resgate, começou-se a discutir se haveria consequências psiquiátricas de maior relevância, que poderiam ter impacto em alguns ou em todos os integrantes do grupo, como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

O diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático ainda é pouco discutido no nosso país. O conceito de trauma sempre foi central na psiquiatria e na psicologia. Este conceito se fortaleceu ainda mais com a psicanálise, pois Freud observou que a maioria das suas jovens pacientes diagnosticadas com histeria tinham história de abuso sexual na infância. Este conceito logo foi estendido aos adultos, na grande maioria soldados. A aceitação da teoria psicanalítica do trauma veio com a Primeira Guerra Mundial e o conceito do “Shell Shock” ou trauma pós-guerra.

É importante frisar que o conceito de trauma veio antes do conceito de estresse. Freud formulou a teoria do trauma como a neurose de guerra.

Após a guerra do Vietnã, e com a publicação da terceira edição do manual de psiquiatria Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III), em 1980, as designações histeria, trauma-pós-guerra e neurose de guerra transformaram-se em transtorno de estresse pós-traumático.

Na primeira edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-I) havia uma classe relacionada ao estresse de guerra, chamada “reação ao estresse bruto”. O período que se seguiu ao DSM-III foi de certa calmaria em relação a guerras no mundo, por isto o transtorno de estresse pós-traumático foi basicamente usado em relação a traumas domésticos, principalmente o abuso sexual na infância. Existem pesquisas demonstrando que a prevalência de trauma sexual ocorre em cerca de 10% a 20% da população.

É importante para o diagnóstico de TEPT saber distinguir o que é trauma e o que é um evento cotidiano. Pelo sistema DSM, trauma consiste em uma situação na qual a pessoa tem a vida colocada em risco ou sofre violência sexual, sendo esta pessoa vítima ou testemunha. Esta definição abre portas para uma interpretação mais ampla da que se tinha antigamente, como na época da histeria e do “shell shock”, quando os traumas estavam ligados apenas à morte e à violência sexual.

Hoje, muitos médicos ampliaram o conceito de trauma para problemas cotidianos, como perda de um trabalho ou de um animal de estimação, divórcio e assim por diante. Muitas pessoas podem transformar eventos corriqueiros em eventos traumáticos, mas pesquisas mostram que por volta de 80% das pessoas expostas a traumas não evoluem com transtorno de estresse pós-traumático.

A prevalência do transtorno de estresse pós-traumático nos pacientes com diagnósticos psiquiátricos é de aproximadamente 11,7%, e nos pacientes sem diagnóstico prévio, em torno de 5,1%.

Alguns fatores podem ser considerados protetores, como a resiliência. Pode-se abordar cientificamente o conceito de resiliência por meio da personalidade ou do temperamento do paciente. Sabe-se que alguns temperamentos seriam mais suscetíveis do que outros para ter transtorno de estresse pós-traumático nas pessoas com história de traumas.

Atualmente, a literatura sugere que os pacientes com personalidade do tipo depressiva têm mais predisposição para o transtorno de estresse pós-traumático, ao contrário da personalidade com traços de mania, que acaba se tornando protetora nesses casos.

Alguns estudos mostram uma relação positiva com a religiosidade. No caso específico dos meninos tailandeses, a grande maioria das crianças que ficaram presas nas cavernas é adepta do budismo, o que pode fortalecer a resiliência diante de experiências como a que o grupo viveu.

Como tratar o paciente diagnosticado com transtorno de estresse pós-traumático?

Existe uma extensa literatura, usando estudos randomizados com diversos medicamentos. Na maioria deles o resultado do tratamento do transtorno é modesto. Em grande parte das vezes os efeitos são mais sintomáticos, o que significa que esses medicamentos acabam não tratando a causa. Não devemos ter falsas expectativas em relação ao tratamento medicamentoso nestes quadros. O real tratamento desde Freud é por meio de psicoterapia. Existem vários tipos de psicoterapias que podem ser benéficas nestes casos.

O caso dos meninos da Tailândia nos mostra que temos de tomar certos cuidados ao diferenciar eventos realmente traumáticos de eventos cotidianos difíceis. Neste caso, esses meninos passaram por um evento realmente traumático, no qual tiveram suas vidas colocadas em risco. Sabemos que os meninos parecem ser resilientes, talvez por sua filosofia de vida. Além disto, certas atitudes como a meditação, ensinada pelo treinador dentro da caverna, podem ter ajudado a reforçar a resiliência do grupo. Sabe-se também que o grupo passou um tempo em um retiro espiritual após o resgate, o que pode-se entender como uma psicoterapia de apoio.

Traumas violentos e abuso sexual podem transformar a vida de uma pessoa. Assim, medidas de suporte são extremamente necessárias nesses casos, como diversos tipos de psicoterapia, auxilio de animais de serviço, apoio espiritual ou grupos de apoio. Um bom diagnóstico é fundamental para que o paciente seja tratado de maneira adequada e consiga reestabelecer sua funcionalidade dentro da sociedade.

Artigo publicado no Medscape em 18 de outubro de 2018