‘Um filho’: filme que retrata a realidade de muitas famílias
Este texto contém spoilers do filme “Um Filho”.
O excelente longa-metragem “Um filho”, de Florian Zeller — mesmo diretor de “Meu pai”, que retrata um paciente com demência — pode passar despercebido por muitos, o que seria uma pena. O filme vai além da beleza artística e nos traz a oportunidade de discutir um assunto importante e sensível para muitas famílias: a doença psiquiátrica nos adolescentes, tema que ultrapassa a relação entre pais e filhos.
Muitas vezes a doença psiquiátrica nessa faixa etária é tratada como algo passageiro, como uma “fase”, fazendo com que muitas vezes os pacientes cheguem nos consultórios ou nos serviços de emergência com uma sintomatologia muito mais agravada.
A história do filme se inicia com a conversa de um casal divorciado sobre as dificuldades acadêmicas de seu filho adolescente, Nicholas, que não ia à escola fazia um mês. A mãe notara mudanças no comportamento do rapaz, e por isso o pai, Peter, tem uma conversa com o jovem. Nessa conversa, Nicholas pede para se mudar para a casa do pai, que está no segundo casamento e tem um bebê recém-nascido. Peter nota marcas no antebraço de Nicholas, mas não entende o que levaria o seu filho a se automutilar, afinal de contas o rapaz tem momentos nos quais “até sorri”.
Automutilação é algo bastante comum entre adolescentes e adultos jovens.[1] Normalmente, começa entre 13 e 14 anos de idade, e muitas vezes tem a função de aliviar emoções negativas, acalmar ou trazer alívio ao indivíduo. Alguns estudos associam a automutilação a sintomas de mania na adolescência.[2] Outro dado importante é que ao menos 60% dos pacientes com transtorno bipolar se automutilarão ao menos uma vez na vida.[3] A automutilação e os comportamentos suicidas são muitas vezes entendidos como um contínuo.[1] Nos últimos anos, novos dados têm apontado a automutilação como um fator de risco de comportamento suicida. Estudos mostram que a automutilação não tem o objetivo de “chamar atenção”, como muitos acreditam.[1] Um estudo de 2020 com adolescentes entre 12 e 17 anos mostrou uma prevalência de ideação suicida de 14%.[4]
Nicholas, o adolescente do filme, continua faltando às aulas mesmo após ir morar com o pai e trocar de escola. Em uma nova conversa entre os dois, o jovem explica que, para ele, a vida é um fardo grande para se carregar.
Muitos adolescentes com sintomas de ansiedade encaram a escola e o convívio social em geral como um grande desafio. Um estudo de 2020 registrou 9% de prevalência de ansiedade em adolescentes entre 12 e 17 anos nos 12 meses anteriores à coleta dos dados.[5] O absenteísmo escolar é um sinal de alerta muito importante para pais, profissionais da saúde e educadores. Segundo o mesmo estudo, a prevalência de absenteísmo escolar em um mês foi de 30,2% em uma população de 268.142 adolescentes de 69 países de baixa e média renda.[5] O trabalho conclui que a taxa de absenteísmo é maior entre meninos e meninas com ansiedade. Uma revisão sistemática de 2019 também sugere associação entre ansiedade e absenteísmo escolar.[6] Estudos têm colocado sintomas de ansiedade na infância e adolescência como fator de risco/pródromo de transtorno bipolar na idade adulta.[7-9]
Nicholas tenta o suicídio. Ele é então internado na ala psiquiátrica de um hospital geral e seus pais são chamados para uma conversa com o psiquiatra assistente, que recomenda que o jovem permaneça internado por mais tempo. Nicholas se enfurece com a aquiescência dos pais em mantê-lo internado. No caminho de volta para casa, o casal muda de ideia e retorna ao hospital para assinar a alta, contra a orientação do psiquiatra. Nicholas volta para casa feliz, faz um café para os seus pais, e eles combinam de ir ao cinema. Quando Nicholas vai para o quarto se arrumar, um estampido de um tiro é ouvido pelos pais. Nicholas se suicidou.
Devemos aqui nos questionar quanto ao quadro clínico do adolescente. Nicholas estaria deprimido? O que é difícil de enxergar nesse caso é que muitos adolescentes que apresentam ansiedade, irritabilidade, automutilação, impulsividade e tentativas de suicídio não estão deprimidos, mas sim em um estado misto, ou depressão mista. Desde os anos 1980, quando a doença maníaco-depressiva foi dividida em transtorno bipolar e depressão maior, o meio psiquiátrico deixou de enxergar os estados mistos. Isto ocorre porque deixa-se de lado o conceito kraepeliniano, que valoriza o curso recorrente dos episódios, sejam eles de mania, melancolia ou mistos, e volta-se para o conceito leonhardiano, que prioriza os polos e faz com que os quadros depressivos mistos sejam abarcados pelo conceito de transtorno depressivo maior.[7] Possivelmente, os estados mistos são a apresentação mais comum do transtorno bipolar em adolescentes.[8] Outro dado importante é que episódios “depressivos” antes dos 25 anos estão mais ligados ao diagnóstico de transtorno bipolar.[9] Esses dados são de extrema relevância, pois existe uma grande influência do quadro no tratamento escolhido e no risco de suicídio. A incidência de transtorno bipolar entre adolescentes é baixa quando comparada à de transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade.[10, 11]
Os quadros mistos são um fator de risco bastante relevante para o suicídio, pois os sintomas juntam a ideação suicida com o impulso para colocá-la em prática. Em um estudo realizado com 1.560 adultos jovens entre 18 e 24 anos, concluiu-se que existe um risco de suicídio mais de 13 vezes maior em pacientes que apresentam quadros mistos, quando comparados aos controles.[12] Um outro estudo mostra que 81,3% dos pacientes que tentaram o suicídio tiveram êxito em até um ano após uma tentativa anterior,[13] exatamente o que é ilustrado no filme com o suicídio de Nicholas.
Outra questão relevante é o grande aumento do uso de antidepressivos e sua relação com a elevação do risco de suicídio. Uma revisão sistemática identificou um risco mais de cinco vezes maior em adolescentes usuários de antidepressivos em relação aos que não faziam uso desses fármacos.[14] Para se ter ideia, entre 1998 e 2018 o uso de antidepressivos triplicou no Reino Unido.[15] No Brasil o uso só do antidepressivo vortioxetina aumentou 336,2% entre 2014 e 2019.[16, 17] Quadros mistos não devem ser tratados com antidepressivos e, sim, com estabilizadores do humor e antipsicóticos de segunda geração.[18, 19] O uso de lítio é recomendado em casos como os de Nicholas, principalmente na prevenção do suicídio.[20] Outro dado importante entre adolescentes vem de um estudo sueco que demostrou que, quanto mais diagnósticos de transtorno bipolar — e consequentemente a adoção do tratamento correto —, menor a taxa de suicídio.[21]
O filme “Um Filho” evidencia as dificuldades enfrentadas pelos pais quando são confrontados com a realidade das doenças psiquiátricas em seus filhos adolescentes. A adolescência é uma fase de transformação, mas a ideia de que todas as alterações comportamentais são reflexos deste momento é perigosa. É importante que o pediatra, o clínico geral e o psiquiatra fiquem atentos a alguns sinais de alerta, como história familiar de suicídio e transtorno bipolar, automutilação, agitação psicomotora, ansiedade, abuso de substâncias e isolamento. Muitos desses sinais de alerta foram dados por Nicholas.
Referências
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3. Esaki, Y. et al. Higher prevalence of intentional self-harm in bipolar disorder with evening chronotype: A finding from the APPLE cohort study. J. Affect. Disord. 277, 727–732 (2020).
4. Biswas, T. et al. Global variation in the prevalence of suicidal ideation, anxiety and their correlates among adolescents: A population based study of 82 countries. (2020). doi:10.1016/j.eclinm.2020.100395
5. Dalforno, R. W., Wengert, H. I., Kim, L. P. & Jacobsen, K. H. Anxiety and school absenteeism without permission among adolescents in 69 low- and middle-income countries. Dialogues Heal. 1, 100046 (2022).
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Artigo publicado no Medscape em 12 de junho de 2023