Pesquisadores propõem uso do lítio para prevenção da encefalopatia traumática crônica
A encefalopatia traumática crônica (ETC) ganhou destaque nos últimos anos após a comprovação da prevalência da doença degenerativa em ex-jogadores profissionais de futebol americano. A ETC está associada à repetição de lesões na cabeça que, com o tempo, podem levar ao acúmulo anormal da proteína tau. Ainda não existem tratamentos com eficácia testada e comprovada, no entanto, um recente editorial publicado no periódico Bipolar Disorders propõe o lítio como medicamento de prevenção secundária.
“Os traumas sucessivos desencadeiam uma ‘cascata’ microscópica no tecido cerebral. A proteína tau passa por uma hiperfosforilação no nível dos microtúbulos. Isso acontece internamente na célula e faz com que os neurônios morram”, resumiu o Dr. Sivan Mauer, psiquiatra e pesquisador do Departamento de Psiquiatria da Tufts University, advisor do Medscape em Português e coautor do editorial.
“Saindo do microscópico para o clínico, a ETC tem basicamente três aspectos: questões relacionadas com humor e impulsividade, suicídio e demência”, apontou.
É essa proximidade com outras doenças para as quais o lítio é recomendado que os autores do editorial propõem uma investigação mais aprofundada sobre as potencialidades de uso em pacientes com ETC.
“Hoje, não temos um tratamento comprovado, nem mesmo profilático, para a ETC. Mas o lítio age justamente sobre as questões relacionadas com a encefalopatia traumática crônica. Ele é o único medicamento que comprovadamente previne o suicídio”, disse o psiquiatra.
Segundo o Dr. Sivan, o lítio poderia ser utilizado para prevenção secundária nos pacientes diagnosticados com ETC. “Em casos em que a doença já está instalada, poderíamos agir em um estágio inicial, para que o paciente não desenvolva a demência”, defendeu.
“Por muito tempo, não conseguimos demonstrar a viabilidade desse tratamento. Agora, estamos dando um passo importante para conseguir montar um estudo observacional. O melhor seria um estudo randomizado, dando lítio para jogadores com ETC e comparando a evolução com outros que não estivessem usando o medicamento”, disse o Dr. Sivan.
Antes conhecida como “demência do pugilista”, a ETC começou a ser estudada ainda nos anos 1920 como uma doença aparentemente causada pelos violentos golpes sofridos por boxeadores. No início, acreditava-se que ela era restrita àquele esporte, mas com o tempo, a ETC também foi identificada em militares que haviam passado por situações de combate e, do mesmo modo, sofreram traumas físicos na cabeça.
A associação da ETC com concussões sofridas em outras circunstâncias, além dos ringues, e a difusão do nome atual da doença tornaram-se mais frequentes apenas no início dos anos 2000, quando o Dr. Bennet Omalu, então pesquisador da University of Pittsburgh, estudou o cérebro do ex-jogador de futebol americano Mike Webster, que morreu em 2002 após longos anos convivendo com a doença. Mike Webster acabaria se tornando, post mortem, o primeiro atleta de sua modalidade diagnosticado com ETC.
Em 2015, a história do trabalho realizado pelo Dr. Bennet foi retratada no filme Concussion (cujo título em português é Um homem entre gigantes), que deu início a uma série de processos judiciais movidos por ex-jogadores e familiares contra a National Football League (NFL), a liga profissional de futebol americano. O aumento da atenção dispensada à ETC fez com que a doença também fosse pesquisada em outros esportes, inclusive no futebol praticado no Brasil. Em 2014, um estudo feito pela Universidade de São Paulo (USP) concluiu que Hilderaldo Luís Bellini, capitão da Seleção Brasileira de Futebol na conquista do primeiro título mundial, em 1958, morreu em decorrência da encefalopatia traumática crônica.
Um dos grandes desafios no estudo da doença é que, até hoje, as principais pesquisas foram realizadas post mortem. “Não conseguimos quantificar e monitorar os níveis da proteína tau no cérebro de um paciente vivo, para avaliar de forma objetiva a resposta dele à terapia”, disse ao Medscape o Dr. Bennet, atualmente na University of California, em Davis. Ele busca financiamento para levar a cabo um teste clínico do tipo.
“Eu acredito que a farmacoterapia será a resposta para a ETC, e não os dispositivos tecnológicos, como novos capacetes”, disse o Dr. Bennet. “O lítio é um medicamento muito bem estabelecido, estudado e testado, que sabemos ser efetivo. Ele inibe a enzima que forma a proteína tau anômala no cérebro, o tipo de proteína encontrado no cérebro dos pacientes com ETC. É [um medicamento] promissor e que precisa ser testado”, defendeu.
Para o Dr. Bennet, apesar dos indícios favoráveis, a pesquisa das potencialidades do lítio para o tratamento da ETC vem sendo subestimada. “Alguém precisa fazer a conexão e formular a base científica para a aplicação do lítio, para administrar a ETC. Eu venho desenvolvendo essa fundamentação científica desde 2002, após identificar a ETC no cérebro de Mike Webster. Mas é muito difícil convencer os outros médicos sobre esses pensamentos criativos e propositivos, especialmente quando estamos aplicando medicamentos conhecidos e estabelecidos, que já estão no mercado”, lamentou.
“Não acho que devamos sempre desenvolver novos medicamentos para testar em doenças novas. Podemos testar drogas existentes, amplamente utilizadas e já bem estabelecidas.”
Os Drs. Bennet Omalu, Sivan Mauer e Nassir Ghaemi, este último médico da Tufts University, que também assinou o editorial publicado no periódico Bipolar Disorders, participarão de uma mesa-redonda sobre o tema no próximo congresso da American Psychiatric Association (APA), marcada para 20 de maio.
“Existe muito negativismo conformista em relação à ETC na sociedade. Podemos fazer melhor do que isso”, finalizou o Dr. Bennet.
Artigo publicado no Medscape em 01 de maio de 2019