Liderança em tempos de crise: um olhar psiquiátrico
“A medicina é uma ciência social e a política nada mais é que a medicina em maior escala.”
– Rudolf Virchow
Muitos se perguntam o que faz de uma pessoa um líder. A liderança é uma qualidade que se aprende ou é um conjunto de características natas? Centenas de obras já foram escritas tentando decifrar personalidades políticas como Winston Churchill, Adolf Hitler, Joseph Stalin, Franklin D. Roosevelt ou ainda líderes do mundo corporativo como Steve Jobs, Elon Musk, entre tantos outros. A liderança é altamente contextual e o que é apropriado ou possível em uma situação ou época pode ser inapropriado ou inatingível em outra. Os estilos de liderança podem se diferenciar em tempos de guerras e em crises, quando comparados a tempos de paz e calmaria. O que é convencionalmente aclamado como liderança forte, pode não ser sinônimo de uma boa liderança. [1]
O filosofo iluminista e historiador britânico David Hume (1711-1776), afirmou que, “se o líder possuir tanta equidade quanto prudência e valor, ele se torna, mesmo em tempos de paz, o árbitro de todas as diferenças e pode, por meio de uma mistura de força e consentimento, gradualmente consolidar a sua autoridade”.
Quando falamos de liderança, a presença de doença mental pode trazer aspectos positivos e negativos ao líder e, consequentemente, à sua liderança. A doença maníaco-depressiva, por exemplo, pode tanto exacerbar características como empatia, realismo e insight (autocrítica) quanto atenuar essas características. Vale lembrar aqui que o conceito de doença maníaco-depressiva foi abandonado a partir da terceira versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla do inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) da American Psychiatric Association (APA), em 1980, sendo substituído pelos conceitos de transtorno bipolar e transtorno depressivo maior. Aqui, o conceito de polaridade se torna central e deixa de lado a questão do curso recorrente, que é fundamental para Emil Kraepelin. Assim, entende-se que o DSM não é Krapeliniano, e sim Leonhardiano.
Outro conceito importante que foi abandonado junto com o de doença maníaco-depressiva é o de temperamento. Em relação aos líderes e às respectivas lideranças, o conceito de temperamento se faz relevante, pois tratam-se de sintomas subclínicos e crônicos, e não episódicos, como na maioria das vezes são definidas as doenças do humor. O conceito de temperamento afetivo é antigo, descrito na Grécia Antiga e posteriormente sistematizado por dois importantes psiquiatras alemães, Kraepelin e Ernst Kretschmer.
Primeiramente, Kraepelin introduziu conceitos como os de temperamentos maníacos e depressivos, o que levou Kretschmer a desenvolver os conceitos de hipertimia e distimia, respectivamente. Posto isso, os temperamentos podem ser definidos como versões leves dos estados de humor, incluindo alterações no nível de energia, nos padrões de sono e de comportamento (p. ex.: sexuais ou em interações sociais/de trabalho).
De acordo com Kraepelin e Kretschmer, existem três temperamentos básicos:
- Hipertimia – envolve sintomas leves de mania, por exemplo: muita energia, pouca necessidade de sono, alta libido, bem como sociabilidade, extroversão e senso de humor. Esses indivíduos muitas vezes são conhecidos como “workaholics” e são mais inclinados a correr riscos.
- Distimia – envolve sintomas depressivos leves, por exemplo: pouca energia, muita necessidade de sono, baixa libido, bem como ansiedade em interações sociais, introversão e pouca produtividade no trabalho. Essas pessoas tendem a evitar comportamentos de risco e são mais ligadas às suas rotinas.
- Ciclotimia – envolve constante alternância entre sintomas leves de mania e de depressão, por exemplo: oscilações de humor e dos níveis de atividade. Normalmente são pessoas extrovertidas e sociáveis. Podem ter comportamentos de risco e são vistas como “imprevisíveis”.
Muitos se perguntarão sobre a questão do diagnóstico de personalidade. O conceito de temperamento foi perdido no século XX, com a ascensão da psicanálise. Desde então, os termos personalidade e temperamento têm sido usados quase como sinônimos, porém, personalidade era visto como um conceito psicológico e não biológico e era relacionado ao desenvolvimento emocional. Com a “redescoberta” dos temperamentos afetivos, diagnósticos de transtornos de personalidade como narcisista, antissocial e borderline podem ter uma nova abordagem. Na grande maioria das vezes esses diagnósticos são vistos apenas sob o aspecto sintomatológico, ou seja, deixa-se de lado outros validadores dos diagnósticos, como curso, genética, resposta ao tratamento e marcadores biológicos.
Muitos líderes são taxados de “psicopatas” e descritos como tendo transtorno de personalidade antissocial. Robert Hare define psicopatas no âmbito interpessoal como sendo pessoas grandiosas, arrogantes, manipuladoras, irritadiças e sem empatia, remorso ou culpa. Na maioria das vezes essas características interpessoais e afetivas levam a comportamentos socialmente desviantes. Além disso, esses indivíduos podem ser impulsivos e ter tendência a ignorar ou violar as convenções sociais.
Esse é mais um exemplo do mau uso do conceito de comorbidade em psiquiatria, pois, se houver uma observação cuidadosa da descrição de Hare, podemos notar que ele descreve o temperamento hipertímico. Se não forem aplicados outros validadores, esses dois conceitos irão se sobrepor. Neste momento é importante o conceito de diagnóstico hierárquico, onde alguns diagnósticos devem ser priorizados em relação a outros, normalmente indo dos poli para os oligossintomáticos.
Nestes tempos de crise é interessante comentar sobre o artigo Two manic-depressives, two tyrants, two world wars (em tradução livre: Dois maníaco-depressivos, dois tiranos, duas guerras mundiais), publicado em 2008 por Julian Lieb no periódico ScienceDirect, que infelizmente teve pouca repercussão até hoje. No artigo e em seu livro o autor defende a tese de que uma das principais forças motrizes para que Hitler e Stalin chegassem ao poder tenha sido o fato de ambos terem doença maníaco-depressiva. Hitler era famoso por seus discursos intermináveis e, além disso, muitas vezes apresentava comportamento paranoico como medo de se contaminar, o que o levava a lavar as mãos obsessivamente. Ele tinha a ideia de que os judeus iriam contaminar o mundo e por isso seria necessário exterminá-los. Quando maníaco, apresentava-se arrogante, loquaz, grandioso, indiferente ao sentimento dos outros, intolerante a críticas. O historiador John Toland descreveu os episódios depressivos de Hitler como extremamente incapacitantes, afirmando que era medicado com anfetaminas e cocaína. O Dr. Theodor Morell, médico do ditador, referiu publicamente seu diagnóstico de doença maníaco-depressiva.
Com relação a liderança, é importante entender o papel da empatia, do realismo e do insight (autocrítica). O conceito de insight na psiquiatria é complexo, e não está apenas relacionado a como o paciente entende a própria doença, mas também a como ele interage com o mundo. Geralmente, o insight é preservado na depressão e prejudicado na mania. A metade dos pacientes com mania grave e a maioria dos pacientes com hipomania nega seus sintomas. O insight, melhor ou preservado na depressão, leva também a uma maior noção de realidade ao redor.
O modelo de realismo depressivo tem importantes implicações. A primeira seria que pacientes normais não deprimidos teriam lacunas de insight, apresentando alguns pontos cegos, o que para uma liderança em tempos de crise faria uma grande diferença.
Empatia, um sistema neural socialmente organizado, nos permite compartilhar os sentimentos dos outros, para imitar sem consciência, e formar a base de nossos relacionamentos e de nosso aprendizado social. Existem poucos estudos sobre empatia em pessoas com transtornos do humor. Em alguns deles a empatia parece estar aumentada durante episódios ou manifestação de sintomas depressivos.
Um estudo de 2012 comparou a empatia entre pacientes com transtorno bipolar, esquizofrenia e depressão. Os achados mais importantes foram que os pacientes esquizofrênicos apresentaram a empatia bastante prejudicada, seguido pelos pacientes bipolares, devido aos sintomas maníacos, enquanto os pacientes depressivos tiveram uma performance similar aos controles.
Bons líderes, na maioria das vezes, precisam ser as pessoas adequadas em momentos ideais. Para o momento no qual estamos passando precisamos de líderes empáticos, com bom julgamento, mas nem sempre eles serão os melhores líderes em momentos em que não exista uma crise desta importância. Possivelmente um bom líder, em momentos de crise, é aquele que consegue equilibrar sintomas leves de mania com sintomas leves de depressão.