Eletroconvulsoterapia: estigmas e resultados
Discussões sobre a saúde mental vêm se intensificando nos últimos meses no Brasil, e uma das grandes controvérsias é sobre o uso da eletroconvulsoterapia (ECT), método que existe há mais de 80 anos na psiquiatria.
A ECT nasceu definitivamente na Itália com dois psiquiatras, Ugo Cerletti e seu assistente Lucio Bini. Após definir parâmetros seguros de um estimulo elétrico por meio de estudos com animais, eles induziram pela primeira vez uma convulsão em um paciente psicótico em abril de 1938. Após 11 sessões o paciente teve alta. Em 1950, Dr. Cerletti faz a sua primeira publicação em inglês sobre a sua nova técnica de tratamento.
Até hoje a ECT é considerada a primeira grande intervenção terapêutica na psiquiatria, que até aquele dado momento só podia oferecer internamentos prolongados aos pacientes e esperar a história natural da doença dar conta dos episódios de humor ou psicóticos. Algumas hipóteses sobre os mecanismos de ação passam pela indução da alteração da plasticidade estrutural cerebral e estímulo da neurogênesis pela promoção da proliferação de células-tronco. A partir de 1952 foi descrito o uso do relaxante muscular succinilcolina junto com a anestesia em sessões de ECT, evitando a convulsão periférica, e assim muitos efeitos indesejados como fraturas de vértebras, sangramentos bucais e confusões pos-ictais. Hoje a grande maioria dos serviços que aplicam ECT realiza a técnica “modificada”, ou seja, com o uso de relaxante muscular. Poucos países ainda usam a técnica “não modificada”.
Quando devemos optar pelo uso da ECT? Apesar da robusta evidência científica o uso da ECT é avaliado com reservas que, muitas vezes, não podem ser explicadas racionalmente. A ECT se mantém estigmatizada pela falta de conhecimento e entendimento, além de ressalvas quanto a possíveis efeitos colaterais. Estudos científicos comprovam que pacientes com transtornos afetivos podem se beneficiar do tratamento com ECT. Uma metanálise mostrou resposta de 77,1% em episódios de depressão bipolar. Alguns estudos têm mostrado fatores preditores para boa resposta, como no caso de episódios mistos, nos quais muitos pacientes acabam respondendo mal a medicações antipsicóticas em doses baixas e antidepressivos. Um exemplo é um estudo recente que incluiu 670 pacientes, sendo que os pacientes com agitação psicomotora apresentaram uma razão de chances (do inglês, odds ratio) de 4,43 (IC de 95%; 1,61-12,20), ou seja uma chance de boa resposta de mais de quatro vezes quando comparados aos pacientes que não apresentavam agitação.
Outra importante indicação da ECT é para pacientes com ideações suicidas que, mesmo com o uso de lítio, se mantêm intensas. Um estudo com 138 pacientes mostrou uma redução do sintoma após três sessões em 38,2% dos pacientes, após seis sessões em 61,1% dos pacientes, e em 80,9% após o fim do tratamento. Estes dados mostram o quanto importante é o tratamento com ECT para pacientes com ideação suicida, sendo que muitos, sem esta intervenção, podem não sobreviver à doença.
Com relação aos efeitos adversos da ECT, com o uso da técnica “modificada” a questão mais importante é em relação aos efeitos cognitivos. Uma revisão recente sugere que 60% dos pacientes relatam problemas de memória. Os efeitos cognitivos são determinados pelos parâmetros da ECT como: colocação dos eletrodos, dose da eletricidade, amplitude do pulso, frequência do tratamento e fatores individuais do paciente. Considerando a cognição não relacionada à memória, as pesquisas relatam alteração na velocidade de processamento apenas nos primeiros três dias. No entanto, com relação à função atencional não se verificou alteração neste período.
Com relação à memória anterógrada, estudos mostram alteração deste domínio desde o início das sessões de ECT, mas retornando aos parâmetros basais entre 4 e 14 dias após o término das aplicações. Os pacientes podem relatar queixas com relação à memória retrógrada, e normalmente está relacionada a perda da memória autobiográfica, ou seja, perda de memória relacionada a experiências do indivíduo. Este tipo de perda de memória depende dos parâmetros usados no tratamento com ECT. Estudos sugerem que há dois fatores de risco para se aumentar a chance deste tipo de efeito colateral: pacientes de sexo feminino e uso da técnica bilateral (independente do sexo).
Considerando a frequência do tratamento, a mais utilizada é a aplicação de ECT três vezes na semana. Esta escolha pode trazer uma resposta mais rápida para o paciente, porém pode acarretar mais efeitos colaterais cognitivos. Na maioria dos estudos apresentados, o número de sessões fica entre 8 e 10. Caso seja necessário um número maior de sessões, os efeitos cognitivos devem ser monitorados, usando o mini exame do estado mental ou outra ferramenta breve. A frequência ideal para avaliação seria após cada 2 a 3 sessões. A avaliação também deve ser realizada no período de 3 a 4 dias após o término do tratamento, para planejar o retorno do paciente a suas atividades. A ECT só é superior ao tratamento medicamentoso nos episódios agudos. Até o momento não está comprovada a superioridade da ECT em tratamentos de manutenção, baseados em estudos clínicos randomizados.
Os dois tratamentos mais antigos e com as evidências mais robustas são os que mais sofrem estigma nos dias de hoje: ECT e lítio. Este estigma levou ambos a serem menos prescritos com o passar do tempo. Com relação à ECT, que é o foco desta discussão, o estigma teve início durante a Segunda Guerra Mundial. Setenta e sete dias antes do início do conflito um importante jornal de psiquiatria alemão publicou um artigo sobre um método revolucionário para tratamento da esquizofrenia vindo de Roma. Infelizmente em 1944 um médico membro do partido nazista chamado Dr. Gelny, que recebeu seu título de psiquiatra após apenas três meses de treinamento na clinica Po¨tzl, iniciou o uso de ECT para executar prisioneiros vítimas de guerra, e para isso modificou a estrutura da máquina. [16] Este tipo de conduta foi utilizada apenas pelos nazistas e é algo sem precedentes nos mais de 80 anos de história da ECT.
O estigma em relação à ECT ganhou bastante força por meio da mídia, principalmente da televisão e do cinema. O historiador Edward Shorter escreveu no seu livro Shock Therapy que a ECT é perfeita para a dramatização cinematográfica. Uma revisão relata que a ECT, na maioria dos filmes, é usada como meio de tortura e controle comportamental. Nos programas de TV, a principal indicação seria para apagar a memória do personagem. Em 72% das cenas o uso da ECT é realizado sem consentimento e sem anestesia. A grande maioria dos filmes mostrou uma imagem errônea do processo da ECT (80,7%).
Algumas atitudes são necessárias para reduzir o estigma ao redor desta importante ferramenta para muitos pacientes. A primeira seria a mídia, englobando TV e cinema, começar a mostrar a técnica de forma honesta e não de maneira caricaturada. Além disto, uma pesquisa mostra que com a participação da família na sala de ECT o medo diminui em relação ao procedimento em 71% dos familiares. Destes, 86% consideraram ECT um tratamento benéfico.
Novas atitudes são muito importantes para que o estigma diminua em relação à ECT. A técnica é, possivelmente, a maior representação do preconceito com relação à psiquiatria e à doença mental, pois muitos médicos e psiquiatras preferem continuar com sua visão distorcida vinda da mídia a abraçar a robustez cientifica que existe por trás deste tratamento. É curioso que um tratamento também revolucionário usando a eletricidade para tratar a fibrilação atrial foi pela primeira vez relatado em 1959 na antiga União Soviética. Trata-se de um procedimento bem aceito e que nunca foi alvo de estigma. No Brasil é importante lembrar que a ECT é um ato médico chancelado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) por meio da resolução 1.640/2002. A pergunta mais importante é se o estigma está dificultando o uso e a pesquisa para o aprimoramento da técnica de ECT. É urgente que a classe médica e as autoridades de saúde façam esta reflexão.
Artigo publicado no Medscape em 13 de janeiro de 2021