Conceito, conduta médica e compreensão sobre a disforia de gênero
Um número crescente de adolescentes tem procurado atendimento em serviços especializados em identidade de gênero nos países ocidentais, devido ao aumento da aceitação do modelo de tratamento, que inclui supressão da puberdade. Estes tratamentos podem ser realizados por meio do uso de hormônios análogos da gonadotrofina em estágios iniciais da puberdade, além do uso de hormônios sexuais cruzados, a partir de cerca de 16 anos de idade. Para adultos, além do tratamento hormonal, existe um aumento na busca por tratamento cirúrgico. Entretanto, pouco se sabe sobre o início, a progressão e os fatores que influenciam o desenvolvimento de disforia de gênero e/ou identidade transgênero em adolescentes.
A consolidação do gênero é central na adolescência, mas ainda não se sabe o suficiente sobre como a identidade de gênero e a variação de gênero se desenvolvem. Sabe-se que muitos pacientes com disforia de gênero apresentam comorbidades psiquiátricas. Tendo em vista a complexidade do tema, esta é uma revisão para esclarecer diversos conceitos e auxiliar médicos para que possam entender melhor seus pacientes.
Disforia de gênero e conceitos relacionados:
A quinta edição do Manual de Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) define disforia de gênero como uma condição em que a pessoa tem uma evidente incongruência entre o gênero que é expressado e o experimentado, além do sexo biológico ao nascer. Isto causa ao paciente extrema angústia e prejuízo do ponto de vista social e ocupacional. Pessoas com disforia de gênero têm um forte desejo de serem tratadas de acordo com um outro gênero e de se livrarem das características do gênero atual. Além disto, esses pacientes têm convicção de terem reações típicas de um outro gênero. O termo anteriormente utilizado, Transtorno de Identidade de Gênero, foi rejeitado pelo DSM-5 para evitar a patologização da questão de gênero.
De acordo com a CID-10, transexualismo é definido como o desejo de viver e de ser aceito como um membro do sexo oposto. Normalmente é acompanhado de um senso de desconforto ou de inadequação do sexo anatômico e do desejo de passar por uma cirurgia e um tratamento hormonal para fazer seu gênero o mais congruente possível com o sexo de sua preferência. O CID-11 mudou a designação para Incongruência de Gênero.
A não conformidade de gênero se refere a comportamentos e aparências consideradas atípicas em indivíduos com o sexo designado. A variância de gênero se refere ao espectro de experiências de gênero, em contraste com a dicotomização conceitual do gênero. O termo transgênero é usado como um guarda-chuva de termos que se referem a uma variedade de identidades de gênero. Nem todas as pessoas que se identificam como transgêneros ou que apresentam não conformidade de gênero sofrem de disforia de gênero. Neste texto o termo disforia de gênero será usado para as pessoas que apresentam sintomas clínicos.
O quão comum é a disforia de gênero e transgênero entre adultos e adolescentes?
Na população adulta, o número de pessoas que procura tratamento sugere que o transexualismo masculino-feminino tem uma prevalência de 6,8/100.000 e o transexualismo feminino-masculino tem uma prevalência de 2,6/100.000. Algumas pesquisas sugerem que 0,5% da população se identifica como transgênero.
O número de adolescentes que procura serviços especializados tem crescido consideravelmente durante esta década na Europa e na América do Norte. Não há uma conclusão em relação a prevalência de disforia de gênero ou disforia de gênero/transexualismo. Alguns pequenos estudos sugerem variação de 0,17% a 1,3% de adolescentes e adultos jovens que se identificam como trangênero. Uma pesquisa baseada em uma população escolar sugere que 1,3% dos jovens entre 16 e 19 anos têm potencialmente disforia de gênero.
Identidade de gênero
Identidade é como cada um entende, descreve e expressa a si mesmo, e como essa identidade é refletida para os outros. Identidade consiste em vários aspectos como gênero, nacionalidade, linguagem, convicções políticas e religiosas. Ela é afetada por relações interpessoais, sociedade e diferentes eventos durante a vida. A adolescência é um importante período de formação de identidade e integração.
Identidade de gênero diz respeito ao senso dos indivíduos em ser feminino, masculino ou de outro gênero. O desenvolvimento da identidade de gênero é um processo complexo, influenciado por múltiplos fatores. Geralmente, na pesquisa da identidade de gênero o foco tem sido amplo em relação às diferenças de sexo. Dois outros tópicos vêm recebendo atenção: a descrição das diferenças de sexo e a etiologia destas diferenças. Existem algumas diferenças estruturais e funcionais com relação à diferença dos sexos do ponto de vista cerebral, algumas delas observadas durante a vida e outras durante fases específicas do desenvolvimento. As diferenças sexuais são fortemente determinadas pela exposição de hormônios esteroides durante a fase perinatal, que altera respostas hormonais e não hormonais subsequentes durante a vida. Entretanto, é importante ressaltar, as diferenças sexuais dependem da interação genética ou epigenética.
Tratamento da disforia de gênero
A maioria das diretrizes usadas no tratamento da disforia de gênero em crianças e adolescentes são da Sociedade de Endocrinologia e da Associação de Saúde dos Transgêneros, baseadas em protocolos holandeses.
O protocolo holandês recomenda tratamento médico caso a disforia de gênero se intensifique na puberdade, levando informação e suporte para as famílias. Nos adolescentes, o tratamento médico é recomendado a partir dos 12 anos. A supressão da puberdade, usando hormônios análogos das gonadotrofinas, faz parte do protocolo para os adolescentes. O propósito da supressão é aliviar o sofrimento psicológico causado pelas características secundárias do sexo de nascença, dando ao adolescente tempo para balancear as próprias decisões de passar para o próximo estágio: o tratamento médico para confirmação de gênero. Pacientes com mais de 16 anos que mantenham disforia de gênero passarão pelo uso de hormônios de sexo cruzado, ou seja, masculino – feminino ou feminino – masculino. Os pacientes acima dos 18 anos têm indicação cirúrgica.
Existem muitas discussões éticas com relação a este protocolo, principalmente pela falta de dados de longo prazo destes tratamentos. Existem algumas contraindicações, como comorbidades psiquiátricas graves, instabilidade do suporte psicossocial, ou início da disforia de gênero após a puberdade.
Estudos descritivos sobre adolescentes que procuram serviços especializados em identidade de gênero têm sugerido que aproximadamente 45% destes jovens apresentam alguma psicopatologia clínica. As doenças mais reportadas foram depressão e ansiedade. Automutilação e ideação suicida também são comuns. Estes pacientes apresentam um risco 4 a 6 vezes maior de transtorno do humor e 3 a 4 vezes maior de automutilação/ideação suicida.
Pesquisadores têm observado que a procura por serviços especializados em identidade de gênero por adolescentes aumentou desde os anos 2000. Crianças que nasceram com o sexo feminino representam de 50% a 90% da amostra de adolescentes que buscam atendimento nesses serviços.
São necessários muito mais estudos e atenção dos pesquisadores para o tema, tão importante e atual. Todos temos conhecimento da grande vulnerabilidade da população LGBTQ que não conta com o suporte da família e de serviços de apoio adequados. É importante que a classe médica entenda os conceitos que envolvem estes pacientes e possa oferecer um atendimento de melhor qualidade.
Artigo publicado no Medscape em 23 de dezembro de 2018