Transtorno da personalidade borderline e transtorno afetivo bipolar: como fazer o diagnóstico diferencial

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O interesse no transtorno da personalidade borderline (TPB) vem crescendo com o passar do tempo, tanto entre a classe médica como entre os pacientes. Um exemplo disso é quando observamos no Google Trends o gráfico de termos mais procurados no Google. Entretanto, o interesse da população em uma determinada doença e consequentemente o aumento do número de diagnósticos da mesma não necessariamente valida um diagnóstico médico.

Primeiramente, para se estabelecer a validade científica de um diagnóstico em uma especialidade como a psiquiatria, cujas doenças não apresentam sinais e/ou sintomas patognomônicos, é necessário usar os validadores diagnósticos de Robins e Guze (sintomas, curso da doença, resposta ao tratamento, genética/história familiar). O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) usa apenas sintomas como critério diagnóstico, principalmente desde sua terceira edição. Isto pode gerar o que se chama na medicina de comorbidade. No entanto, esse conceito não é bem utilizado na psiquiatria. Em 1970, Feinstein cunhou o termo, no qual duas doenças diferentes ocorrem ao mesmo tempo por acaso, e não dois nomes diferentes para um conjunto de sintomas que se sobrepõem. O exemplo mais claro seria o paciente que sofre de diabetes e hipertensão.

Com relação ao transtorno de personalidade borderline, a doença que acaba fazendo a maior sobreposição seria o transtorno afetivo bipolar (TAB). Esta sobreposição pode causar uma série de erros diagnósticos e dificuldades no tratamento. A conferência de cada validador pode ajudar a diminuir esta confusão. A ideia do conceito borderline, ou seja, limítrofe, tem suas raízes nos conceitos psicanalíticos, de acordo com os quais o paciente estaria entre a neurose e a psicose. Este conceito data dos anos 30, quando a síndrome foi descrita pela primeira vez.

O diagnóstico diferencial entre TPB e TAB é controverso e difícil. Os principais sintomas que se sobrepõem são: labilidade do humor, impulsividade e síndrome maníaca. Labilidade do humor é definida como flutuações do humor durante minutos ou horas. Este sintoma consta como um dos critérios para transtorno da personalidade borderline na 5ª edição do DSM, mas não para o transtorno afetivo bipolar. No entanto, um estudo conseguiu diferenciar a labilidade do humor entre os dois transtornos baseado no tipo e intensidade. Em suma, existem poucas evidências de que a labilidade do humor seja um diferencial entre TAB e TPB.

Com relação aos sintomas maníacos, um estudo com 260 participantes concluiu que humor eufórico esteve bem mais associado ao TAB, e possibilitou a diferenciação das doenças (razão de chances ou odds ratio, OR, de 4,02; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,80 a 9,15).

Os sintomas de impulsividade estão muito próximos da labilidade do humor, e normalmente se manifestam como impulsividade sexual nestes dois transtornos. No entanto, pode se apresentar como descontrole financeiro ou agressividade. Existem alguns estudos demostrando uma prevalência em ambas as condições. Assim como a labilidade do humor, a impulsividade parece ser comum em ambas as doenças.

Um importante sintoma de diferenciação entre as duas doenças é a presença de automutilação. Uma recente metanálise concluiu que a automutilação é comum no TPB, girando entre 51% e 80%. Um estudo sobre automutilação em TAB chegou a uma frequência de 0,9%. Outro estudo recente demonstrou um aumento > 10 vezes do risco de automutilação em pacientes com história de abuso sexual. Outro estudo mostrou risco de automutilação duas vezes maior em pacientes com TPB versus TAB. A diferença de frequência deste sintoma entre as duas condições é grande, portanto, a automutilação é um sintoma muito mais relacionado com o TPB – não que seja patognomônico.

A maior revisão sistemática de estudos em gêmeos comparando transtorno afetivo bipolar e outras doenças concluiu que o TAB e a esquizofrenia são as duas doenças hereditárias mais comuns (80%). A hereditariedade do TPB foi de aproximadamente 40%. Podemos entender por estes números que o TAB tem um grande componente genético, maior que o transtorno de personalidade borderline, que tem uma grande influência ambiental (associado a circunstâncias, como, por exemplo, abuso sexual).

Uma questão no curso da doença que pode diferenciar as duas condições é a história de abuso sexual. Um estudo recente avaliou pacientes com diagnóstico de TAB e TPB de acordo com os critérios do DSM. Neste estudo, 12% dos pacientes com TAB tinham história de abuso sexual na infância contra 42,3% dos com TPB, produzindo um risco relativo de 3,47 (IC 95%, de 1,79 a 6,72). Pode-se entender que o abuso sexual é um fator fundamental para o quadro de TPB, tanto quanto o trauma para fratura óssea na ortopedia.

A resposta ao tratamento costuma ser vista como o validador mais inespecífico, pois as medicações podem estar relacionadas com vários diagnósticos, no entanto, alguns efeitos de certos tratamentos podem ser específicos. Em relação ao TAB existem muitas evidências de que a psicoterapia isolada não é totalmente efetiva no tratamento, podendo ser usada como adjuvante com a medicação. Quanto ao tratamento do TPB, existe um certo consenso de que o mais efetivo é a psicoterapia, pois a farmacoterapia isolada tem demostrado ser pouco efetiva, no máximo trazendo efeitos colaterais sintomatológicos.

Muitas vezes o conceito de temperamento é negligenciado quando se pensa no diagnóstico diferencial de TPB. A questão mais importante do conceito de temperamento é a noção de que sintomas maníacos e depressivos podem ser crônicos e leves, presentes e ativos o tempo todo, fazendo parte da personalidade do indivíduo e não apenas como episódios com sintomas graves. Posto isto, temperamentos podem ser definidos como versões leves de estados de humor, incluindo alterações do nível de energia, do padrão de sono e de comportamentos como sexual, social ou relacionados com o trabalho.

Existem três principais temperamentos: hipertimia, ciclotimia e distimia. Os temperamentos hipertímico e ciclotímico podem ser confundidos com o diagnóstico de TPB, já que apresentam características clínicas parecidas como labilidade do humor e impulsividade. Neste caso, é muito importante que se pesquise a história familiar de transtornos do humor, e também a possível história de abuso sexual e automutilação. A partir destes dados pode-se realmente fazer a diferenciação entre os temperamentos e o TPB.

A diferenciação entre TAB e TPB é de extrema importância, tanto para que se trate corretamente o paciente como para se entender o prognóstico. Os validadores nos mostram que nem sempre os diagnósticos mais pesquisados são os mais corretos. Será o transtorno da personalidade borderline um diagnóstico cientificamente válido após estas evidências ou seria um subtipo de transtorno do estresse pós-traumático?

Artigo publicado no Medscape em 26 de dezembro de 2019