Automutilação entre adolescentes: o papel da dissociação e do abuso
Automutilação entre adolescentes: o papel da dissociação e do abuso físico e sexual
A automutilação é comum entre adolescentes. Uma pesquisa em escolas inglesas mostrou uma prevalência de 7% nesta população, sendo que, destes, apenas 12,6% procuraram ajuda em serviços de saúde.
É necessário um melhor entendimento sobre a automutilação de adolescentes para podermos traçar melhores estratégias de tratamento.
Foram identificados alguns fatores de risco associados a automutilação, como: exposição à negligência, e abuso físico e sexual. O abuso sexual, em especial, é um preditor de automutilação; cerca de 79% dos pacientes que praticaram automutilação relatam história de abuso sexual.
O abuso sexual está mais associado à gravidade e à cronicidade do quadro do que o abuso físico. No entanto, um estudo demostrou que 67% das vítimas de abuso sexual na infância não passaram a praticar automutilação. Pensa-se que trajetória do abuso sexual até automutilação seria mediada por outro fator.
Dissociação é um fator postulado que poderia elevar o risco de automutilação em vítimas de abuso sexual. De fato, em adultos, a dissociação está implicada como mediador parcial entre a ocorrência de abuso sexual na infância e a automutilação. Um estudo com adolescentes apresentou a dissociação como mediador entre o abuso sexual, os sintomas psiquiátricos e o comportamento de risco (incluindo tentativa de suicídio e automutilação). Em outras palavras, a exposição ao abuso sexual não leva a automutilação deterministicamente.
A 5ª edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) não leva em conta a dissociação para critérios de automutilação não suicida e transtorno de comportamento suicida. Dissociação é definida como um fenômeno psicológico envolvendo alterações da consciência, percepção, memória, identidade e afeto.
Para este estudo foi recrutada uma amostra de adolescentes de serviços de atendimento a crianças em momento agudo. Foi analisada a relação entre experiências dissociativas e a automutilação, testando se havia relação entre história de abuso e automutilação.
O estudo testou quatro hipóteses: (1) se dissociação, abuso e automutilação estão significativamente associados; (2) se a dissociação medeia a relação entre abuso e automutilação; (3) se os diferentes subtipos de dissociação contribuem para mediar a relação entre abuso e automutilação; (4) se os sintomas de dissociação seriam mais importantes entre os pacientes com padrão crônico de automutilação (definido como mais de três episódios de automutilação).
Todos os participantes que praticaram automutilação foram recrutados no momento que deram entrada no serviço de emergência. Foram incluídos 72 adolescentes entre 11 e 17 anos. Além disso, 42 pacientes sem doenças psiquiátricas foram usados como controles.
Os pacientes que praticaram automutilação apresentaram níveis significantemente mais elevados de abuso e dissociação quando comparados ao grupo de controle. A dissociação mediou significativamente a associação entre abuso e automutilação. Dos subtipos de dissociação, a despersonalização foi o principal mediador.
Para lembrar:
Abordar a questão da automutilação durante o exame físico de crianças e adolescentes é muito importante. Cada vez mais evidências robustas relacionam a automutilação com o abuso sexual. Esse tipo de questionamento é decisivo para um bom diagnóstico diferencial, neste caso, entre transtorno de personalidade borderline e transtorno afetivo bipolar. Sabendo que a prevalência de casos de abuso e de automutilação é muito maior no primeiro.
Desfechos longitudinais de pacientes com TAB de início na infância e no adulto comparados a controles com esquizofrenia e sem doença mental
Transtorno afetivo bipolar (TAB) é uma doença grave que afeta crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos. A prevalência em adultos é de aproximadamente 1% e em adolescentes, de 1,8%. Um recente estudo dinamarquês sugere aumento da incidência de diagnósticos de TAB entre crianças e adolescentes nos últimos vinte anos, o que corresponde aos dados de estudos norte-americanos.
O aumento na identificação e no reconhecimento do transtorno afetivo bipolar em crianças e jovens nas duas últimas décadas pode ser parte da justificativa para o aumento da prevalência da doença nesta população. Esta hipótese é embasada por vários estudos feitos com adultos com TAB que mostram que a doença inicia na adolescência, mas costuma ser diagnosticada apenas na idade adulta.
O transtorno afetivo bipolar diagnosticado na infância está associado a um desfecho mais reservado, ou seja, os pacientes apresentam quadros de mania e depressão mais graves e episódios mais longos em comparação com os de pacientes com TAB de início mais tardio.
O TAB está associado a aumento da morbidade e da mortalidade. Em comparação com a população em geral, os pacientes com TAB apresentam risco de suicídio mais de 10 vezes maior e expectativa de vida de 9 a 20 anos menor. A taxa de tentativas de suicídio é maior entre pacientes com TAB diagnosticado na infância. Além disso, tem sido observada uma forte associação entre o transtorno afetivo bipolar e atividades criminosas, com o abuso de substâncias sendo um mediador.
Os autores deste estudo buscaram investigar as taxas de automutilação, de atos criminosos e o uso de serviços de saúde para o tratamento de fraturas por pessoas com transtorno afetivo bipolar em comparação com pessoas com esquizofrenia e pessoas sem diagnóstico de doença mental.
Como desfecho secundário, os autores investigaram as internações em hospitais psiquiátricos e contato ambulatorial. Como desfecho terciário, a taxa anual de dias de hospitalização em serviços de psiquiatria.
Foi utilizada uma coorte dinamarquesa com pacientes diagnosticados com transtorno afetivo bipolar, esquizofrenia e pessoas em diagnóstico de doença mental. Os desfechos foram: tempo de internação hospitalar, internação psiquiátrica, atendimento em ambulatório de psiquiatria, fratura relacionada com atendimento em algum serviço de saúde, automutilação (incluindo tentativa de suicídio) e acusação criminal. Taxa de incidência ajustada para idade de primeiro contato psiquiátrico, abuso de substância e doença parental foram calculados, comparando início na infância (de 5 a 17 anos) e início em idade adulta (de 18 a 39 anos).
Os pacientes com TAB diagnosticado na infância (N = 349) foram melhores que os controles emparelhados esquizofrênicos em todos os seis desfechos. Desfechos similares foram observados em pacientes com TAB diagnosticado na idade adulta (N = 5.515) comparados com pacientes com esquizofrenia.
Ao comparar os pacientes com TAB diagnosticado na infância (N = 365) com os controles saudáveis (N = 1.095), apenas a automutilação se diferenciou significativamente. Inversamente comparando TAB diagnosticado na idade adulta (N = 6.005) com os controles saudáveis (N = 18.015), automutilação, fraturas e atos criminosos foram mais comuns entre pacientes com transtorno afetivo bipolar. Os pacientes com TAB foram mais associados a desfechos piores do que os controles saudáveis, mas a desfecho melhores do que os pacientes com esquizofrenia.
Para lembrar:
Desde o século XIX entende-se que o curso dos pacientes com transtornos afetivos é mais benigno que em pacientes com esquizofrenia. É crucial ter o entendimento sobre o curso destas doenças, porque o tratamento precoce melhora o prognostico. É importante ressaltar que o lítio é um medicamento claramente modificador dos transtornos afetivos, ou seja, altera o curso e o prognóstico da doença, e não apenas trata os sintomas.
Prejuízo cognitivo em idosos com transtorno afetivo bipolar: fatores de risco e desfechos clínicos
O transtorno afetivo bipolar (TAB) em idosos é frequentemente associado a prejuízos cognitivos, no entanto, pouco se sabe sobre os fatores de risco e as correlações clínicas. Estudos recentes mostram que pacientes idosos com TAB têm pior função cognitiva em comparação com os seus pares sem a doença, e apresentam déficits em múltiplos domínios, com tamanhos de efeitos médios/grandes, levemente maiores do que os observados em coortes de pacientes mais jovens.
Estudos populacionais sugerem que o TAB está associado a um risco de demência duas vezes maior. Para esclarecer este processo é necessário entender os prejuízos neurocognitivos existentes antes do declínio. É sabido que pacientes com TAB apresentam vários graus de prejuízos quando comparados com pessoas sem o diagnóstico. Estes prejuízos envolvem: memória de trabalho, funções executivas, memória verbal, inibição de resposta e outros domínios, e são evidentes desde a idade adulta.
Prejuízos cognitivos são um dos mais importantes preditores de bom funcionamento no mundo real para pacientes com TAB. Apesar disso, eles ainda são pouco estudados. Os autores buscaram explorar fatores de risco relacionados com a doença, além de outros, entre pacientes com TAB. Foi usado um desenho caso-controle comparando pessoas com TAB com e sem prejuízo cognitivo.
Foram incluídos pacientes acima de 60 anos, dos quais 48 tinham diagnóstico de TAB sem prejuízo cognitivo e 38 tinham TAB com prejuízo cognitivo. Os participantes foram recrutados de ambulatórios e internações psiquiátricas, e foram avaliados por meio de vários instrumentos, entre eles, a Clinical Dementia Rating Scale e a avaliação cognitiva de Montreal. Foram usados modelos bivariáveis e modelos multivariáveis.
O prejuízo cognitivo em idosos com TAB foi associado ao diagnóstico de TAB tipo 1 (odds ratio, OR, = 6,4; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,84 a 22,31), à gravidade de doenças físicas (OR = 26,54; IC 95%, de 2,07 a 340,37) e ao baixo nível de instrução (OR = 0,79; IC 95% de 0,69 a 0,91)
Para lembrar:
Alterações cognitivas são muito frequentes em pacientes idosos com TAB. O diagnóstico precoce junto com o tratamento correto possivelmente são as duas medidas mais eficazes. Deve-se sempre lembrar que o lítio ainda é o único medicamento comprovadamente eficaz para a prevenção da demência, tanto em pacientes bipolares como em pacientes sem o diagnóstico. Além disso, pode-se e deve-se administrar doses mais baixas nesta população. Mais uma vez, é importante lembrar que o nível sérico de lítio destes pacientes não deve passar de 0,7 mEq/l.
Artigo publicado no Medscape em 11 de novembro de 2019