Depressão pós-parto: da prevenção ao tratamento
Depressão pós-parto é a complicação psiquiátrica não psicótica mais comum no puerpério, afetando até 75% das mulheres, se incluirmos o baby blues. Essa alta prevalência é um problema de saúde pública de difícil acesso por diversos motivos, mas principalmente porque envolve a gravidez e o parto. A gestação é vista, na grande maioria das vezes, como um momento de extrema felicidade e regozijo para a mulher e para a família.
É difícil para a maioria das pessoas entender que este é um período de alta vulnerabilidade para o desenvolvimento de episódios de transtornos afetivos como depressão e, numa prevalência menos comum, psicose ou mania (em torno de 13%). Os índices de tratamento e diagnósticos ainda são baixos, e as consequências mais graves são o infanticídio e/ou o suicídio da mãe. Nos transtornos afetivos puerperais os sintomas e o tempo de início são muito importantes para a definição e o tratamento deles.
No baby blues os sintomas são leves e caracterizados como irritabilidade, ansiedade e alterações no humor, no apetite e no sono, que iniciam de dois a três dias após o parto. Já a depressão pós-parto normalmente começa dentro dos seis primeiros meses posteriores ao parto, e a maioria dos casos necessita de tratamento médico. Em muitos casos a depressão pós-parto se apresenta como a extensão do baby blues. A depressão pós-parto tem como sintomas sentimento de culpa, alteração de apetite e sono, incapacidade de lidar com e cuidar do bebê, dificuldade de concentração, fadiga, irritabilidade e labilidade de humor. Um estudo mostrou que os episódios realmente começam com mais frequência no pós-parto (40,1%) e não antes da gravidez (26,5%).
Estas doenças não são homogêneas, podendo fazer parte de outros quadros de humor como o transtorno afetivo bipolar (TAB). Existem vários fatores de risco para a depressão pós-parto. O maior deles é história prévia de transtornos do humor e ansiedade.
A patogênese da depressão pós-parto é desconhecida. Alguns estudos sugerem que a rápida diminuição do nível de hormônios de reprodução, como estrogênio, progesterona, gonadotrofina coriônica humana e cortisol, após o parto, contribui para o desenvolvimento de episódios depressivos em mulheres suscetíveis.
Outra hipótese é de que a interação entre o sistema hipotálamo-pituitária-gonadal e o sistema hipotálamo-pituitário-adrenal, e a alteração nos níveis dos hormônios gonadais, possam funcionar como gatilhos para a doença. Também a existência de fatores sociais como dificuldades conjugais e violência doméstica, aumentam o risco para desenvolvimento da depressão pós-parto. Um estudo mostra que violência sexual triplica o risco de depressão pós-parto.
Mulheres com fatores de risco deveriam ser avaliadas por meio da escala de depressão pós-natal de Edinburgh.
Uma questão bastante controversa em relação à depressão pós-parto é a relação dela com o diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Alguns estudos mostram que a depressão pós-parto é três vezes mais frequente no TAB do que na depressão maior (odds ratio, OR = 3,33; IC de 95%, 1,84 - 6,04).
Um estudo multicêntrico retrospectivo comparou mulheres diagnosticadas com diferentes tipos de transtornos de humor. Num total de 576 mulheres, 444 foram diagnosticadas com depressão maior, 96 com TAB tipo II, e 36 com TAB tipo I. Destas, 24% apresentaram o diagnóstico de depressão pós-parto. Estas pacientes eram mais jovens e tinham mais história familiar de TAB, quando comparadas as mulheres que não apresentaram o diagnóstico de depressão pós-parto.
Metade das mulheres com diagnóstico de TAB tipo II relataram depressão pós-parto versus 21,6% das mulheres com diagnóstico de depressão maior. Algumas características são sugestivas de bipolaridade em mulheres com depressão pós-parto e devem ser pesquisadas com muito cuidado como: primeiro episódio depressivo no pós-parto, primeiro episódio manifestando-se em idade mais jovem, episódios mais curtos, episódios com sintomas atípicos (aumento do sono, aumento do apetite), agitação, e sintomas psicóticos.
Também deve-se observar a existência de depressão mista, ou seja, episódio de depressão maior e ao menos mais três dos seguintes sintomas: agitação, aumento da velocidade do pensamento, irritabilidade, humor lábil e insônia inicial. Além disto, avaliar a história familiar de transtorno bipolar é de extrema importância. A resposta ao tratamento também é uma questão relevante, devendo-se levar em consideração a história do uso de antidepressivos causando mania, hipomania ou sintomas mistos.
Ademais, rápida resposta aos antidepressivos e/ou perda de resposta a eles, também podem ser um indicativo importante de TAB. O tratamento da depressão pós-parto deve ser administrado com muito cuidado e a escolha da medicação deve levar em conta as questões expostas acima, e principalmente a questão do custo/benefício, especialmente em relação ao uso de antidepressivos em mulheres que apresentem características de bipolaridade e ideação suicida ou homicida em relação ao bebê.
A principal preocupação neste momento é a questão da amamentação, e ela deve ser um dos fatores em relação à escolha da medicação, uma vez que quase todas as medicações são transmitidas para o leite. Uma boa estratégia para pacientes que fazem uso de medicação durante o período de amamentação é coletar leite após a dose da noite e guardá-lo para uso no dia seguinte.
Em relação ao lítio a maioria dos trabalhos mostra que os bebês não tiveram efeitos adversos quando as mães usaram doses entre 500-1200mg ao dia e a litemia máxima do bebê foi de 0,25 mEq/l. Com relação ao valproato, ao contrário de sua proibição durante a gravidez, se mostrou seguro nos estudos abertos e em relatos de casos. Em relação a carbamazepina, estudos também mostram que não há efeitos nocivos para o bebê quando a mãe os amamenta usando a droga.
Com relação a lamotrigina, alguns estudos mostram a presença de apneia e cianose em alguns recém-nascidos. Com relação aos antipsicóticos atípicos, a grande maioria deles tem apenas mínima concentração do princípio ativo excretado com o leite materno. Dentre eles os mais seguros, por terem sido mais estudados, são: olanzapina e quetiapina.
Artigo publicado no Medscape em 19 de outubro de 2017
Precisamos sempre falar sobre suicídio
Desde 2003, o dia 10 de setembro é conhecido como o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. Porém, desde 1994 já existia a campanha Setembro Amarelo, que se iniciou nos EUA com os pais e amigos de Mike Emme, um jovem de 17 anos que tirou a própria vida. Mike tinha grandes habilidades para lidar com mecânica automotiva, e recuperou e pintou de amarelo um Mustang ano 1968. Estas habilidades levaram Mike a ficar conhecido como "Mustang Mike".
Já a fita amarela virou tradição quando os jovens amigos de Mike as prenderam na lapela, no cabelo ou no chapéu no dia do funeral do jovem, onde também distribuíram cartões com a inscrição "It's ok to Ask4help", que basicamente significa "não tem problema pedir ajuda". A fita amarela lembrava a cor do Mustang de Mike, e o formato da fita em coração era para lembrar as pessoas que ele deixou. Impressionantemente, em cerca de três semanas o primeiro cartão distribuído no funeral chegou às mãos de um professor, com um pedido de socorro de uma aluna.
A história de Mike é comovente e tenho de certeza que sensibiliza a muitos, mas infelizmente no dia a dia a realidade não é bem esta, pois, o suicídio muitas vezes é alvo de preconceito e mitos, tanto por parte da população leiga quanto da comunidade médica. É preciso entender que o suicídio não é uma doença. Entretanto, na maioria das vezes, ele é o resultado de algumas doenças como o transtorno bipolar e a esquizofrenia.
Entre 80% e 90% das pessoas que cometem suicídio estão sofrendo de algum tipo de transtorno do humor, ou seja, estão tão doentes como aquele paciente que teve um infarto ou um acidente vascular cerebral (AVC). Muitas vezes, o paciente psiquiátrico sofre preconceito até mesmo por médicos de outras áreas e outros profissionais da saúde, em hospitais gerais. Ironicamente os médicos fazem parte de uma das profissões que mais cometem suicídio no mundo.
Entre a população leiga o preconceito em relação ao suicídio se amplifica. A falta de empatia pelo paciente pode ser exemplificada por meio de um artigo publicado no site de uma revista semanal. Neste artigo um motorista de aplicativo descreve um resgate de uma pessoa que estava tentando tirar a própria vida saltando de uma ponte entre Vila Velha e Vitória, no Espírito Santo. O resgate levou algumas horas, e neste intervalo as pessoas se expressavam de todas as maneiras, sendo a mais frequente o pedido para que o suicida se jogasse de uma vez por todas. Algumas, inclusive, afirmaram que se dispunham a empurrá-lo. Em um certo momento iniciou-se um buzinaço, e assim por diante.
Empatia é um fator importante para que exista o acolhimento do paciente psiquiátrico, e isso pode ser decisivo em momentos emergenciais como este. Segundo o relato do motorista, a equipe dos bombeiros demonstrou empatia e cuidado com o paciente, evitando o suicídio.
Podemos observar, também, o preconceito em relação a algumas populações no Brasil, como as indígenas, que chegam a ter uma prevalência de suicídio triplicada quando comparada à da população em geral. Isso demostra um descaso da sociedade em geral, do governo e das entidades responsáveis por esta população, que demonstra negligência diante de um número tão expressivo de suicídios.
As campanhas de prevenção são de extrema importância para pessoas que consideram a possibilidade do suicídio, pois cada vez mais a medicina entende que isso pode ser prevenido. Entretanto, os profissionais da área da saúde precisam se atualizar e entender os novos fatores de risco para doenças mentais. Alguns estudos, por exemplo, demonstram que cyberbullyng e o tempo que se passa na internet estão relacionados a suicídio.
Algumas formas de prevenção passam por abordagens psicoterápicas e outras pelo uso de psicofármacos. Entre as abordagens psioterápicas se destaca o CVV (Centro de Valorização da Vida), que desde 1962 exerce um grande papel na sociedade, trabalhando na prevenção do suicídio. O CVV atende 24 horas por telefone ou site, além de realizar atendimento pessoal. Quanto à questão psicofarmacológica, a maneira mais efetiva e importante de prevenção ao suicídio é o uso do lítio.
Hoje, esta abordagem já é fato. Mas ela precisa ser disseminada entre médicos clínicos que atendem pacientes, principalmente nos prontos-socorros. Precisamos ter em mente a questão da recidiva das tentativas de suicídio. Ao menos um estudo detectou que quase 10% dos pacientes que fazem uma tentativa de suicídio irão fazer uma segunda.
Muitas vezes o sofrimento psíquico não é levado com a seriedade devida. Apenas com medidas preventivas e educacionais, episódos como o que ocorreu na ponte poderão deixar de existir. E as pessoas, em vez de torcerem para que o suicida se jogue da ponte ou do alto de um edifício, terão o mínimo de empatia em relação ao sofrimento humano.
Artigo publicado no Medscape em 5 de outubro de 2017
Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é um diagnóstico válido para adultos?
Nos últimos anos observa-se um aumento significativo no número de pacientes diagnosticados com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), e consequentemente um aumento de prescrições e do uso de anfetaminas, drogas que são consideradas de primeira linha para o tratamento do transtorno.
Um estudo mostra que de 2002 a 2007 a incidência do diagnóstico triplicou, principalmente entre indivíduos com idades entre 18 e 24 anos. O maior aumento de prescrição deste tipo de droga foi no grupo de adultos jovens (de 2,3% para 4%), sendo que 65% das prescrições são de metilfenidato.
Existe, porém, uma grande controvérsia sobre a validade desse diagnóstico em adultos. Para entender o porquê do aumento na incidência deste diagnóstico e do questionamento da validade dele, é preciso relembrar ao menos dois conceitos: os validadores diagnósticos de Robins e Guze, e o conceito de temperamento.
Os validadores do diagnóstico de Robins e Guze foram descritos nos anos 1970 em relação à esquizofrenia e são: sintomas, curso da doença, resposta ao tratamento e genética/história familiar. Infelizmente estes conceitos se perderam com o lançamento do DSM-III, em 1980.
Os sintomas centrais do TDAH em adulto são hiperatividade ou agitação psicomotora, falta de atenção e impulsividade, como no TDAH na criança.
Algumas mudanças foram feitas no DSM-V, além de oficialmente aceitar o diagnóstico de TDAH em adultos, o que não ocorria até o DSM-IV. Anteriormente eram necessários seis dos nove sintomas de falta de atenção e/ou hiperatividade/impulsividade. Hoje são necessários apenas cinco para adultos e adolescentes acima dos 17 anos.
Alguns críticos sugerem que o diagnóstico de TDAH em adultos seria um conceito equivocado por vários motivos, entre eles a presença de temperamentos afetivos.
Frequentemente pessoas com temperamentos hipertímicos e ciclotímicos irão ter dificuldades atencionais, devido a constantes ou frequentes estados maníacos e depressivos. TDAH pode refletir o subdiagnóstico destas condições. A distração, por exemplo, é um dos sete critérios para mania do DSM.
Um estudo com 1380 sujeitos identificou que distração é o sintoma mais associado a mania ou mania subsindrômica.
Agitação psicomotora ou hiperatividade, que é central para os transtornos afetivos desde Kraepelin, é também outro sintoma que se sobrepõe ao diagnóstico de TDAH.
A inabilidade de adiar gratificação, ou impulsividade, é também um dos critérios para o diagnóstico do TDAH, mas impulsividade é muito comum no curso dos transtornos afetivos em episódios maníacos e depressivos. Em suma, todos os sintomas do TDAH no adulto se sobrepõem com sintomas de transtornos afetivos.
Previamente no DSM-IV, para o diagnóstico de TDAH era necessário que alguns sintomas se manifestassem até os sete anos de idade. Hoje, no DSM-5, essa idade passou para 12 anos, o que significa que o TDAH pode iniciar na adolescência.
Existem alguns estudos sobre a persistência do diagnóstico até a idade adulta, mas a maioria deles não corrige para "comorbidades", isto é, outros diagnósticos poderiam causar os mesmos sintomas do TDAH.
Entretanto, a maioria dos pesquisadores concorda que os sintomas diminuem na idade adulta.
Uma explicação possível é que pacientes com TDAH têm atraso na maturação cortical. Dois estudos do mesmo grupo observaram um atraso principalmente na região pré-frontal, que é importante para o controle cognitivo, incluindo atenção e planejamento motor.
Outra hipótese, sustentada por diversos estudos retrospectivos, seria de que as crianças com TDAH na idade adulta irão mudar o diagnóstico para transtornos afetivos.
Artigo publicado no Medscape em 29 de agosto de 2017
Transtornos de humor na infância e na adolescência
Quando a recusa aos tratamentos torna-se negligência parental
Um artigo na edição de junho do jornal da American Academy of Child and Adolescent Psychiatry (AACAP) levantou uma questão bastante importante: a negligência dos pais na recusa ao tratamento psiquiátrico dos filhos, quando se trata de transtornos de humor.
A questão relativa aos transtornos do humor tem uma seriedade ainda maior, pois aqui cabem todos os preconceitos e "mitos", como por exemplo a ideia de que tristeza e ideação suicida na adolescência fazem parte desta fase da vida. Isto não é real, e foi comprovando cientificamente que por volta de 15% dos adolescentes até os 18 anos, vão apresentar sintomas depressivos. Muitos pais não acreditam ou não querem aceitar, por diversos motivos, que seus filhos possam ter doenças psiquiátricas.
Muitas vezes os pais creem que os problemas apresentados por crianças podem ser apenas uma alteração comportamental passageira, ou comportamentos típicos da idade, como "birra", e que podem ser passíveis de controle. O exemplo mais comum é quando os pais acreditam que os filhos possam controlar a agitação psicomotora.
A negligência infantil é uma forma de mau-trato, e refere-se a situações em que os pais ou cuidadores acabam não satisfazendo as necessidades básicas da criança ou do adolescente, como prover saúde e educação. Para o autor do artigo, negligência médica é uma forma de negligência infantil, e pode ser definida como uma falha dos pais ou cuidadores em observar sinais de doença grave em menores de 18 anos, ou deixar de seguir conselho médico.
Um exemplo muito comum é quando pacientes que apresentam algum tipo de transtorno de humor chegam ao consultório medico com episódio misto, o que é muito comum na infância, e os pais se recusam a seguir o conselho de usar medicação. A recusa ao tratamento pode ter uma série de consequências negativas para os pacientes.
Uma questão muito peculiar e característica dos transtornos do humor nas crianças mais velhas e nos adolescentes é a automutilação, que pode se apresentar por meio de cortes, queimaduras e até mesmo fraturas. As meninas se automutilam mais que os garotos.
Um estudo com 440 alunos de duas escolas observou que 64% das garotas cometeram automutilação, em comparação a 36% dos meninos. Um dado importante deste estudo é que os adolescentes que se automutilaram reportaram mais sintomas de ansiedade e depressão, algo que pode ser interpretado como um episódio misto. A automutilação, muitas vezes, leva a uma confusão diagnóstica com o transtorno de personalidade borderline.
Devemos entender que automutilação não é sintoma patognomônico de transtorno de personalidade borderline, assim como alucinação não é sintoma exclusivo de esquizofrenia. Um recente estudo detectou que abuso sexual quase triplica o risco de automutilação. Mais um motivo para que médicos e profissionais da saúde atentem para possível história de abuso e maus-tratos nesses pacientes. Entretanto, em alguns casos, esse tipo de comportamento pode acarretar culpa aos pais, que por diversas vezes minimizam ou ignoram a questão, o que acaba levando-os a não procurar ajuda médica.
A negligência parental com relação ao tratamento de transtornos de humor nos filhos pode ter consequências ainda mais graves, como ideações suicidas e tentativas de suicídio. Um estudo calculou a prevalência em uma população, com idade média de 14 anos, e concluiu que 57,4% dos adolescentes apresentaram ideação suicida, e 21,3% tentaram o suicídio. Muitas vezes os pais nem chegam a saber destes sintomas, ou não os levam a sério, dependendo do meio com o qual o paciente tenta o suicídio.
Alguns pais acreditam que os filhos "apenas querem chamar a atenção", uma atitude negligente. Pacientes com sintomas depressivos ou sintomas de agitação são muito mais propensos a ter dificuldades escolares. Estes pacientes muitas vezes apresentam velocidade de pensamento alterada, o que torna a atenção prejudicada. Estes sintomas podem ser confundidos com distúrbios do aprendizado, fazendo com que os pais e escola não compreendam a necessidade do tratamento adequado.
A diminuição de atitudes de negligência parental em relação ao tratamento dos transtornos de humor na criança e no adolescente passa pela diminuição do estigma e do preconceito, tanto das famílias quanto da classe médica. Uma atitude importante é a psicoeducação de famílias, professores e pedagogos.
É importante salientar que a psiquiatria da infância e da adolescência não se resume apenas ao diagnóstico de transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (que é questionável, de acordo com diversos pesquisadores), mas também a quadros de transtornos de humor que podem ser muito graves, levando crianças ou adolescentes ao suicídio, como foi noticiado há pouco em um escola de São Paulo. Neste caminho tortuoso da desinformação, e muitas vezes estigmatizado, é de extrema importância o papel, não apenas dos psiquiatras mas também dos pediatras, de educar, informar e desmistificar para as famílias, a doença mental na criança e no adolescente.
Artigo publicado no Medscape em 3 de agosto de 2017
Antidepressivos causam dependência?
Muitas vezes os pacientes questionam seus médicos a respeito das medicações prescritas, e uma pergunta que ouvimos frequentemente no consultório é se medicações como antidepressivos causam dependência.
Essa é uma questão complexa, e para respondê-la devemos primeiramente analisar alguns conceitos. Primeiramente, para se diagnosticar a síndrome de dependência de grande parte das medicações ou drogas, os seguintes critérios devem ser observados:
- Tolerância, que consiste em aumentar a dose da droga para se obter o mesmo efeito que se tinha com a dose anterior.
- A síndrome de retirada ou abstinência, que é manifestada por sinais e sintomas físicos e psíquicos após interrupção ou diminuição da droga.
- O paciente utiliza a maior parte do seu tempo na busca e na obtenção da medicação, e na recuperação dos efeitos dela, normalmente prazerosos, e muitas vezes desiste de suas atividades cotidianas para usar a droga.
- O paciente usa doses maiores do que a prescrita pelo médico, e por mais tempo (o exemplo clássico são os benzodiazepínicos).
- Histórico de repetidas tentativas de interrupção do tratamento, sem sucesso.
Segundo o DSM-5, é necessário que o paciente apresente ao menos dois desses critérios para o diagnóstico da síndrome de dependência. Porém, em relação, especificamente, ao uso de antidepressivos, isso não é tão simples assim.
Primeiramente devemos entender que algumas medicações estão incluídas erroneamente na classificação de “antidepressivos”, nomenclatura que há muito tempo vem sendo criticada por não atuar em todas as “depressões”, e atuar em outras afecções como, por exemplo, o transtorno obsessivo compulsivo (TOC).
O principal exemplo de um “antidepressivo” que foi mal classificado é a bupropiona, que na verdade é uma anfetamina. O sinônimo para bupropiona é 3-Chloro-N-tert-butyl-β-keto-α-methylphenethylamine ou amfebutamone. A bupropiona tem uma estrutura química parecida com a das anfetaminas. Esta é uma diferença enorme, pois sabemos que, neste caso, as anfetaminas causam dependência e abuso, preenchendo os critérios anteriores. Outro fator importante de se entender é a tolerância.
Até 1980, quando se iniciou a terceira edição do DSM-3, não havia a separação entre depressão maior ou unipolar, e transtorno afetivo bipolar (TAB). O que havia era a doença maníaco-depressiva que incluía as duas doenças. Essa era a visão Kraepeliana, que foi substituída pela visão Leonhardiana, que leva em conta os polos, sejam depressivos ou maníacos, em relação aos transtornos do humor. Neste caso não importava se o paciente tivesse três episódios depressivos ou 20 episódios maníacos, o diagnóstico seria o mesmo.
Kraepelin identificou também que os episódios mistos são os mais comuns nos pacientes com doença maníaco-depressiva, e os antidepressivos têm uma tendência a piorar estes quadros. Portanto, TAB não é sinônimo de doença maníaco-depressiva. Pode-se entender que o uso de antidepressivos nestes pacientes pode piorar o curso da doença e causar ciclagem rápida, o que pode ser interpretado erroneamente por muitos clínicos como tolerância.
Para estes casos específicos denomina-se taquifilaxia, que é quando o paciente perde a resposta ao antidepressivo, fazendo com que se aumente a dose para buscar o efeito anterior, o que muitas vezes não ocorre. Sabe-se, desde a década de 60, que os antidepressivos podem causar a síndrome de retirada, que se manifesta através dos seguintes sintomas: agitação, ansiedade, insônia, sensação de “choques elétricos” na cabeça, e náuseas, entre outros. A intensidade destes sintomas pode variar de acordo com o tempo de uso, e eles ocorrem em aproximadamente 20% dos pacientes com depressão unipolar e em 60% dos pacientes bipolares.
A causa principal é desconhecida, mas a incidência maior acontece com antidepressivos de meia-vida curta, principalmente venlafaxina, duloxetina, paroxetina e imipramina. A melhor maneira de se tratar a síndrome de retirada é usando a fluoxetina, pois esta tem a maior meia vida entre os antidepressivos (quase uma semana). Sendo assim, o indicado seria iniciar a fluoxetina lentamente, e diminuir gradualmente o antidepressivo que estava sendo usado.
É difícil enquadrar os antidepressivos em uma classe de medicação que cause dependência. Muitos problemas apresentados por pacientes que usam antidepressivos são reflexo de um diagnóstico equivocado. Quando e como antidepressivos devem ser prescritos é um assunto importante, que será abordado em um próximo texto. Algumas correntes de pensamento defendem que antidepressivos e outros remédios psiquiátricos causam dependência, porém sem o devido embasamento.
Quando se usa informações sem as devidas comprovações, ou quando não se abre as portas para um verdadeiro debate, isso se torna um risco para os pacientes, que se sentem confusos e não sabem a quem recorrer. Além disto, atitudes como estas aumentam o estigma em relação ao paciente psiquiátrico, que acaba tendo suas queixas marginalizadas. A principal atitude que os médicos, sejam eles psiquiatras ou não, podem fazer para diminuir o estigma é exigir debates claros e justos com evidências cientificas confiáveis. Esse é o nosso dever!
Artigo publicado no Medscape em 25 de julho de 2017
A psicopatologia da corrupção
O Brasil nos últimos anos vem expondo um grande problema que sempre existiu no âmago de sua sociedade: a corrupção. O conceito de corrupção está embasado no uso do poder, seja público ou privado, para se ter algum tipo de benefício ou ganho para si. Corrupção é um problema complexo e multifatorial, que inclui questões culturais, morais e religiosas dos indivíduos que participam do processo, seja de forma passiva ou ativa. Nas ultimas décadas a ciência tenta entender quais questões psicopatológicas são mais prevalentes nestes casos.
A corrupção está incluída entre os intitulados "crimes do colarinho branco" designação estabelecida pelo criminalista norte americano Edwin Sutherland, e na maioria das vezes é cometida por uma pessoa que exerce um cargo de alta respeitabilidade e status social elevado no curso de sua ocupação profissional. Diferente do que muitos pensam, os crimes do colarinho branco não são algo exclusivo do Brasil, e os últimos escândalos não nos colocam como o país mais corrupto do mundo. Basta revisitarmos alguns dos últimos escândalos financeiros que abalaram a economia global, como o da Enron Corporation, que era uma das maiores companhias de energia norte americana, que levou seus acionistas e investidores a um prejuízo de mais de 70 bilhões de dólares, sem falar das fraudes do banco Lehman Brothers que afundou o mundo todo na pior crise financeira ocorrida depois da quebra da bolsa de valores de 1929. Além disto, é importante ressaltar que a corrupção ou os crimes do colarinho branco não estão restritos apenas aos políticos ou aos CEOs de multinacionais, de empreiteiras ou do setor agropecuário.
Muitas vezes banalizamos atos de corrupção no dia a dia, como suborno de agentes de trânsito ou outros tipos de fiscalizações. No meio médico isso não é diferente. A corrupção acontece de diversas maneiras, como no pagamento de propina a profissionais por empresas de órteses e próteses, óticas que pagam oftalmologistas para indicá-los, sem falar na relação com a indústria farmacêutica, que oferece vantagens aos médicos em troca de prescrições.
Acompanhamos diversos casos noticiados pela imprensa em relação a médicos que cobraram honorários por procedimentos feitos dentro do sistema único de saúde (SUS). Um fato de extrema importância é de que muitos médicos não prescrevem medicações usando como base pesquisas científicas e sim quais são os mais populares entre os colegas, ou os mais divulgados pelos representantes farmacêuticos.
Um exemplo disto é a diminuição da prescrição de carbonato de lítio para pacientes com transtorno afetivo bipolar nos EUA, além das novas gerações de psiquiatras que infelizmente não sabem como prescrevê-lo, mesmo com todas as evidências de que esta medicação é a mais eficiente em relação a prevenção de novas crises da doença, e a única droga que comprovadamente previne o suicídio. Do ponto de vista sociológico a corrupção não é delimitada por decisões específicas, mas por um processo que envolve uma combinação de fatores como atitudes, planejamento deliberativo, antecedentes históricos, mobilidade social e afiliação a grupos.
A qualidade da burocracia, questões salariais, sistema penal, e transparências das leis também estão relacionadas como fatores de causa da corrupção. Alguns sociólogos destacam também a desigualdade social e a grande distância entre as classes como um fator relevante. É importante entender a complexidade social que envolve a corrupção e os crimes relacionados.
Do ponto de vista psiquiátrico, será possível identificar características comuns nos indivíduos que praticam este tipo de crime?
Para tentar entender esta questão dois conceitos psicopatológicos devem ser entendidos: o temperamento afetivo e a relação dele com o insight (julgamento). Temperamento afetivo é um conceito antigo descrito desde a Grécia Antiga e posteriormente sistematizado por dois importantes psiquiatras alemães, Emil Kraepelin e Ernst Kretschmer. Primeiramente, Kraepelin apresenta conceitos como temperamentos maníacos e depressivos que levaram Kretschmer a desenvolver conceitos como hipertimia e distimia respectivamente.
A questão mais importante do conceito de temperamento é a noção de que sintomas maníacos e depressivos podem ser crônicos e leves, presentes e ativos o tempo todo, fazendo parte da personalidade do indivíduo e não apenas como episódios com sintomas severos. Posto isto, temperamentos podem ser definidos como versões leves de estados de humor, incluindo alterações no nível de energia, alteração no padrão de sono, e comportamentos (como sexual, social ou relacionado ao trabalho).
Existem três temperamentos básicos:
- Hipertimia, que envolve sintomas leves de mania como: aumento da energia, necessidade diminuída de sono, libido aumentada, sociabilidade, extroversão, e bom senso de humor. Esses indivíduos muitas vezes são conhecidos como workaholics, e são mais dispostos a correr mais riscos.
- Distimia, que envolve sintomas depressivos leves como: baixa energia, maior necessidade de sono, diminuição de libido, socialmente ansiosos, introvertidos, menos produtivos no trabalho. Estas pessoas tem uma tendência a evitar comportamentos de riscos e são mais ligadas às próprias rotinas.
- Ciclotimia, que envolve constantes alternâncias entre sintomas leves de depressão e mania, como altos e baixos no humor e nos níveis de atividade. Normalmente extrovertidos e de boa sociabilização, são pessoas que às vezes têm comportamentos de risco, e são imprevisíveis.
O conceito de temperamento foi perdido no século XX, com a ascensão da psicanálise. Desde então, os termos personalidade e temperamento têm sido usados quase como sinônimos. Porém, personalidade era vista como um conceito psicológico, e não biológico, e era relacionado ao desenvolvimento emocional.
Com a "redescoberta" dos temperamentos afetivos, diagnósticos de transtornos de personalidade como narcisista, antissocial e borderline podem ter uma nova abordagem. Insight, ou discernimento em português, é um conceito complexo, que não está apenas relacionado a como o paciente entende a própria doença, mas também a como ele interage com o mundo. Geralmente o insight está preservado na depressão e prejudicado na mania. Metade dos pacientes com mania grave e a maioria dos pacientes com hipomania negam os próprios sintomas. Infelizmente existem poucas pesquisas relacionando a falta de insight a crimes, principalmente os crimes financeiros. Podemos entender que indivíduos hipertímicos e ciclotímicos têm uma tendência a ter o insight prejudicado, enquanto distímicos o mantêm preservado.
Muitas vezes, pessoas com o insight prejudicado não conseguem enxergar as consequências dos próprios atos de maneira realística. Os estudos que relacionam questões psicopatológicas a crimes do colarinho branco também são escassos. Os que existem relacionam traços de personalidade por meio do uso do Inventário de Personalidade NEO (NEO-PI). Esta escala avalia os três principais traços da personalidade: neuroticismo, extroversão e abertura para novas experiências.
Um estudo na Hungria relacionou estes traços de personalidade aos três principais tipos de temperamento. Este estudo concluiu que extroversão está mais relacionada à hipertimia, e a ciclotimia está mais relacionada à abertura para novas experiências e neuroticismo. Já distimia está mais relacionada a neuroticismo.
O principal transtorno de personalidade que se relaciona à corrupção e aos crimes do colarinho branco é o transtorno de personalidade narcisista. Um grande problema com relação a este diagnóstico é a falta de validade, tendo a maioria dos seus sintomas sobrepostos com transtornos de humor e ou temperamentos afetivos. Esta falta de validade ficou bem evidente com a recomendação da retirada deste diagnóstico do DSM-5 pela força-tarefa que trabalhou com diagnósticos de personalidade, mas esta recomendação não foi aceita pelo board da American Psychiatric Association (APA). Uma revisão sistemática mostrou que pessoas que cometem crimes econômicos têm uma autoimagem inflada.
Um estudo de 2003 entrevistou 128 empresários suecos, dentre os quais 55 já haviam cometido algum tipo de crime econômico. Neste estudo os entrevistados responderam a 87 questões. Como resultado obtido a maioria se descreveu como extrovertido e neurótico. Um estudo de caso-controle de 2006 comparou acusados de crimes do colarinho branco com acusados de furtos não violentos, apontando que os acusados de crimes econômicos têm menos risco de abuso de substâncias e transtornos depressivos do que os acusados de outros crimes.
Outros estudos demonstram também que acusados de crimes econômicos são mais hedonistas, impulsivos e sociáveis. Se associarmos os resultados destes estudos à questão do insight e aos conceitos de temperamentos – que, do ponto de vista diagnóstico, têm mais validade que a maioria dos transtornos de personalidade –, podemos concluir que pessoas com temperamentos hipertímicos e ciclotímicos teriam mais risco de se envolver em crimes econômicos.
Os estudos revelam que grande parte dos indivíduos que estão envolvidos neste tipo de crime são do sexo masculino. Porém, deve-se levar em consideração a grande discrepância entre homens e mulheres que exercem cargos de liderança no mundo dos negócios e na política. Um estudo entre 2000 líderes das mais importantes empresas mundiais encontrou apenas 1,2% de mulheres entre eles. No Brasil as mulheres representam apenas 9% dos assentos da Câmara e 13% do Senado.
Questões psiquiátricas relacionadas a este tipo de crime específico são pouco estudadas. A relação entre os diferentes temperamentos e as questões legais podem abrir uma nova via de entendimento das causas e fatores de risco para este tipo de evento. Novos estudos são necessários para se entender melhor essa relação, porém a dificuldade de se conseguir uma amostra ideal para isto e um grande obstáculo. É importante entendermos a complexidade deste assunto em vários sentidos, sejam eles sociais ou psiquiátricos.
O mais importante é evitarmos a generalização de grupos específicos, sejam eles partidários ou profissionais.
Artigo publicado no Medscape em 8 de junho de 2017