Eletroconvulsoterapia, não eletrochoque!

A decisão do Ministério da Saúde de financiar a compra de aparelhos de eletroconvulsoterapia (ECT) abriu uma grande discussão na sociedade sobre os benefícios ou não desta técnica, utilizada há muito tempo.

Este procedimento já foi utilizado como método de tortura no passado, porém hoje para sua realização é necessário um centro cirúrgico e anestesia geral. Até mesmo o termo eletrochoque se tornou pejorativo. Não apenas a grande maioria do público leigo desconhece o procedimento, mas a classe médica também padece de muita falta de informação sobre o assunto.

A ECT é um tratamento bastante seguro e com muitas evidências científicas sobre o seu uso, tanto em transtornos psicóticos como em transtornos do humor. Duas revisões recentes trazem informações importantes. A primeira aborda o uso na esquizofrenia. Esta revisão de 2018 incluiu apenas estudos feitos em 2017 e concluiu, por meio de múltiplos estudos de diferentes países e de metanálises, que existem fortes evidências da potencialização dos antipsicóticos pela ECT. Os estudos analisados nesta revisão mostraram que os efeitos cognitivos da ECT são moderados e passageiros. Alguns estudos demonstraram melhora da cognição após o procedimento. A ECT bilateral foi o mais utilizado nesta revisão e a diferença do local do eletrodo parece ser algo menor.

A outra revisão mencionada apresenta evidências importantes sobre o uso de ECT em transtornos do humor. Para pacientes com transtornos do humor, a ECT tem sido utilizada desde 1938, sendo um tratamento efetivo, com respostas girando entre 70% e 80%, ou seja, mais altas do que as respostas com antidepressivos. A ECT é um tratamento agudo, e não de manutenção. As indicações da ECT em pacientes com transtornos do humor estão normalmente relacionadas a questões de urgência, como pacientes com necessidade de resposta rápida ao tratamento, com risco de suicídio e com catatonia.

A ECT é considerada hoje um tratamento seguro e eficiente, utilizado em muitos países, como Estados Unidos, França e Alemanha. O procedimento precisa transpor o preconceito da população leiga e médica para ser colocado em prática. Campanhas informativas sobre este tratamento devem ser realizadas para que a população entenda como ele é realizado e quais são os seus benefícios, assim como os seus efeitos colaterais. O que sabemos é que tanto a ECT quanto a psiquiatria em geral hoje não são mais bichos de sete cabeças.

Artigo publicado no Medscape em 27 de fevereiro de 2019


Desafio dos 10 anos: o que mudou na psiquiatria?

Tratamento: a redenção do lítio

Há 10 anos o uso do carbonato de lítio tinha evidências praticamente restritas ao uso como estabilizador do humor, e principalmente à prevenção dos quadros maníacos.

Neste período as pesquisas se desenvolveram muito. Passada uma década, as evidências de outras utilidades deste medicamento são cada vez mais robustas:

  • O lítio, mesmo em doses mínimas, diminui a incidência de casos de suicídio, mesmo em pacientes que não sofrem de transtorno bipolar. Em uma das revisões mais recentes houve uma diminuição de quase 60% do risco de suicídio em pacientes usuários de lítio (odds ratio, OR = 0,36; intervalo de confiança, IC, de 95% de 0,13 a 0,98).
  • Os usuários de lítio têm uma incidência menor de casos de automutilação. Uma revisão de 32 estudos mostra uma diminuição de quase 80% do risco de automutilação em pacientes em uso de lítio em relação aos que não usam (OR = 0,21; IC 95% de 0,08 a 0,50).
  • Também vêm se acumulando evidências de que usuários de lítio têm um risco menor de desenvolver quadros demenciais. Os efeitos neuroprotores do lítio têm aparecido em pesquisas, mesmo em doses pequenas, como 150 mg/dia. Transtornos do humor são fator de risco para demência. Pacientes que usam lítio têm um risco de demência igual ao da população em geral.

Hoje se sabe que o lítio não só previne novos episódios de mania, mas também episódios de depressão recorrentes. O que nos faz, cada vez mais, pensar que depressão e transtorno bipolar fariam parte da mesma doença, como se entendia antes de 1980 e da chegada da 3ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III, sigla do inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) da American Psychiatric Association (APA).

Diagnóstico

Novos conceitos...

Uma década atrás a síndrome de Asperger era entendida como uma doença relacionada, porém distinta do autismo. O DSM-5, incluiu em 2013 a síndrome de Asperger como parte do transtorno do espectro autista. [5]

Novas abordagens...

A associação psiquiátrica norte-americana deu um passo muito importante ao reconhecer a existência das características de quadros mistos em pacientes com diagnóstico de depressão. Incluindo os especificadores de características mistas. O que nada mais é do que a aceitação dos sintomas maníacos misturados a episódios depressivos. Isto muda totalmente a abordagem terapêutica deste tipo de paciente. [5]

E mais questionamentos...

A última década viveu um aumento no diagnóstico do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) em adultos. Uma doença que há anos era mais restrita às crianças passou a ser diagnosticada com muita frequência em adultos, trazendo muita discussão para o meio psiquiátrico em relação à validade deste diagnóstico.

Artigo publicado no Medscape em 14 de fevereiro de 2019


Síndrome neuroléptica maligna: efeito colateral dos antipsicóticos

A síndrome neuroléptica maligna foi primeiramente reconhecida nos anos 60, sendo um efeito colateral raro, mas potencialmente fatal, podendo ocorrer com todos os medicamentos com efeitos antagonistas aos receptores D2. Os sintomas mais frequentes são hipertermia, rigidez muscular, alteração do estado mental e instabilidade autonômica. O achado laboratorial mais importante é a elevação da creatino quinase (CK, sigla do inglês Creatine Kinase), normalmente acima de 1.000 mg/L2.

Um grande desafio é o diagnóstico diferencial, que engloba doenças como: hipertermia maligna, síndrome serotoninérgica, raiva, tétano, delirium, feocromocitoma e tireotoxicose. Sua incidência nos dias atuais com o uso dos novos antipsicóticos gira entre 0,02% e 0,03%. Já a mortalidade gira em torno de 5,6%. A idade é um fator de risco independente de mortalidade, sendo que a cada 10 anos existe aumento de 40% desse risco. A complicação mais frequente é a rabdomiólise, sendo que 30% destes pacientes apresentam alterações renais.

O diagnóstico precoce da síndrome neuroléptica maligna é essencial para evitar a progressão da doença, as sequelas e a morte. Até hoje não existem critérios fixos para o seu diagnóstico e a causa precisa não é conhecida. O mecanismo proposto que tem maior aceitação é o bloqueio excessivo da dopamina, principalmente dos receptores D2. Este mecanismo é o mais aceito, pois muitas vezes, a síndrome neuroléptica maligna se resolve apenas com a suspensão do antipsicótico. Os antipsicóticos atípicos também podem causar síndrome neuroléptica maligna, o que pode sugerir que o antagonismo de D2 não seja a única causa do quadro. O aumento das catecolaminas na urina sugere a hipótese de hiperatividade simpaticoadrenal.

É importante frisar que qualquer antipsicótico, em qualquer dose, pode ser uma potencial causa de síndrome neuroléptica maligna. O rápido aumento da dose, as doses altas e o uso de antipsicóticos de depósito são outros fatores de risco. O uso da via intravenosa também parece ser um fator que contribui para a síndrome neuroléptica maligna. A história de síndrome neuroléptica maligna é um fator de risco de novos episódios, além da história familiar.

A conduta inicial na síndrome neuroléptica maligna é a suspensão do antipsicótico. O tratamento de suporte deve ser estabelecido usando cobertores que diminuam a temperatura do paciente, e antipiréticos para reduzir a febre. A hidratação venosa e a correção dos eletrólitos podem ser necessárias, pois os pacientes com síndrome neuroléptica maligna tendem a desidratar.

Muitos medicamentos foram e têm sido utilizados para o tratamento da doença. Os medicamentos com melhores respostas são: dantroleno sódico, bromocriptina e benzodiazepínicos. A maior parte da literatura sobre estes medicamentos se baseia em amostras pequenas, e faltam estudos prospectivos. A dose, a via de administração e a duração do tratamento também têm sido descritas de maneira heterogênea.

Quando os medicamentos não respondem adequadamente na síndrome neuroléptica maligna, há evidências de que o uso da eletroconvulsoterapia pode ser uma opção terapêutica. Após a solução do problema, se for necessário (e normalmente será), o paciente precisa ser muito bem reavaliado na reintrodução dos antipsicóticos. A melhor opção é usar medicamentos com baixa afinidade pelo D2, iniciar muito lentamente após um período de ao menos duas semanas de "descanso".

Artigo publicado no Medscape em 1º de fevereiro de 2019


Transtorno bipolar: medicamentos que representam risco de internação psiquiátrica

Comparação entre monoterapias em termos de risco de internação psiquiátrica de pacientes com transtorno afetivo bipolar

A internação de pacientes com transtorno afetivo bipolar (TAB) é muito frequente e tem consequências socioeconômicas e clínicas relevantes. A internação hospitalar por episódios graves de transtorno do humor ocorre em 79% dos pacientes nos 15 anos subsequentes ao diagnóstico. As evidências que relacionam o risco de hospitalização com os medicamentos são contraditórias e incompletas.

A maioria dos estudos publicados compara a eficácia dos medicamentos para o transtorno afetivo bipolar em termos de redução dos sintomas, remissão, recaídas e recorrências, mas não em relação à internação psiquiátrica. Além disso, esta comparação é realizada apenas com alguns medicamentos, como lítio, valproato, lamotrigina, quetiapina, imipramina e olanzapina. Os estudos normalmente são restritos aos pacientes ambulatoriais e aos casos de transtorno afetivo bipolar tipo I.

Este estudo sobre o uso de monoterapia para os pacientes com transtorno afetivo bipolar comparou 29 medicamentos de diferentes classes em uma amostra de 190.894 pacientes. Os participantes foram pacientes ambulatoriais e hospitalizados com diagnóstico de TAB tipo I, tipo II e de transtorno esquizoafetivo. Foi utilizada a regressão de sobrevivência para a análise de comparação do risco de hospitalização psiquiátrica ajustado por idade, sexo e comorbidades.

Três substâncias foram significativamente associadas a menor risco de hospitalização quando comparadas ao lítio : aripiprazol (razão de risco, RR = 0 ,80; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 0 ,70 a 0 ,90), valproato de sódio (RR = 0 ,80; IC 95%, de 0 ,71 a 0 ,91) e bupropiona (RR = 0 ,80; IC 95%, de 0 ,71 a 0 ,91).

Oito fármacos foram associados a aumento do risco de internação hospitalar:

  • Haloperidol (RR = 1,57; IC 95%, de 1,19 a 2,06);
  • Clozapina (RR = 1,52; IC 95%, de 1,07 a 2,16 );
  • Fluoxetina (RR = 1,17; IC 95%, de 1,05 a 1,31 );
  • Sertralina (RR = 1,17; IC 95%, de 1,05 a 1,30 );
  • Citalopram (RR = 1,14; IC 95%, de 1,03 a 1,27 );
  • Duloxetina (RR = 1,24; IC 95%, de 1,09 a 1,40 );
  • Venlafaxina (RR = 1,33; IC 95%, de 1,18 a 1,49);
  • Ziprasidona (RR = 1,25; IC 95%, de 1,06 a 1,46).

PARA LEMBRAR:

É importante observar nos resultados deste estudo que alguns medicamentos, principalmente os antidepressivos, são fatores de risco de desestabilização e possível internação de pacientes com transtorno afetivo bipolar, mesmo quando utilizados em associação com estabilizadores do humor. Os antidepressivos, mesmo que não sejam utilizados em monoterapia, devem ser prescritos com muita cautela para pacientes com transtorno bipolar.

Indicadores de novas tentativas de suicídio: uma análise de sobrevivência

O suicídio é um problema de saúde pública mundial ; cerca de 800.000 pessoas tiram as próprias vidas todos os anos. Acredita-se que o número de pessoas com ideação suicida chegue a ser 20 vezes maior. Entre os adultos jovens esse número é alarmante, sendo esta a segunda causa de morte mais comum nessa faixa etária. A grande maioria dos casos de suicídio está associada à doença mental.

Apesar de todos os esforços, a prevenção do suicídio nos últimos anos tem sido difícil, muito pela falta de indicadores de comportamento suicida. Até o momento nenhum modelo conseguiu explicar e prever o comportamento suicida. Individualmente, a tentativa pré via de suicídio é o fator de risco mais importante.

Sem nenhuma meta específica para o tratamento dos pacientes suicidas, o objetivo maior reside no tratamento da doença de base. Considerando as intervenções psicofarmacológicas, o uso de antidepressivos é o método mais usado. No entanto sua relação tem sido controversa, especialmente desde 2003, quando a Food and Drug Administration (FDA) norte-americana determinou que uma nota de alerta fosse colocada na bula desses medicamentos após o aumento do número de mortes por suicídio entre adolescentes tomando antidepressivos.

Alguns outros estudos exploraram outros tipos de medicamentos . No grupo dos estabilizadores do humor o lítio exibe as evidências mais robustas em relação à redução do comportamento suicida. Entre os antipsicóticos, a clozapina é o medicamento que mais reduz o comportamento suicida. Os benzodiazepínicos são pouco estudados em relação à ideação suicida.

Este estudo explora, com especial atenção voltada para o tratamento psicofarmacológico, diferentes fatores que podem modificar o risco de novas tentativas de suicídio entre os pacientes que já tentaram o suicídio anteriormente. Participaram deste estudo 371 pacientes, que foram acompanhados desde a inclusão no estudo até: próxima tentativa de suicídio; morte por outras causas; perda de acompanhamento; ou dois anos depois d o ingresso no estudo. Foi conduzida uma análise de sobrevivência Kaplan-Meier e regressão multivariável de Cox com algumas das variáveis.

Durante o período do estudo, 18 ,9% dos participantes tentaram novamente o suicídio. Dentre estas tentativas, 60% ocorreram nos seis primeiros meses. Destes pacientes 100% estavam usando antidepressivos. Três fatores são independentemente associados ao suicídio: adesão ao tratamento (razão de risco ou hazard ratio, HR = 0 ,32; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 0 ,13 a 0 ,80), que é um fator de proteção; tentativa prévia de suicídio (HR = 1 ,28; IC 95%, de 1 ,01 a 1 ,61); transtorno de personalidade do grupo B (HR = 2 ,22; IC 95% de, 1 ,22 a 4 ,04).

PARA LEMBRAR:

É importante notar que todos os pacientes que fizeram uma nova tentativa de suicídio estavam usando antidepressivos. Este dado não foi destacado pelos autores, apesar da sua relevância. Outro dado pouco apontado pelos autores é a quantidade de evidências em relação ao uso de lítio como prevenção de novas tentativas de suicídio para os pacientes com ou sem transtorno bipolar.

Impactos psicológicos diretos e indiretos das mordidas de tubarões

Ha alguns meses acompanhamos a notícia da morte de um brasileiro nos Estados Unidos vítima de um ataque de tubarão. Com a chegada do verão no Brasil, as mordidas de tubarões aparecem mais nos noticiários, principalmente entre os surfistas da região nordeste. As mordidas de tubarões são consideradas um incidente raro, girando em torno de 766 ocorrências (não provocadas) ao redor do mundo entre 2006 e 2016, sendo 61 ataques fatais.

Eventos provocados são considerados se o tubarão for atraído para o contato humano por meio da alimentação ou da pesca. Os eventos provocados são mais comuns do que os não provocados. Na Austrália ocorreram 569 eventos não provocados nos últimos 100 anos, incluindo 134 fatalidades (em média menos de uma pessoa por ano).

Existem algumas evidências que indicam que as mortes estão diminuindo tanto na Austrália como no resto do mundo, mas a interação entre o homem e o tubarão tem aumentado, muito por causa dos esportes aquáticos e por atividades econômicas em regiões mais vulneráveis.

O índice de morbidade e mortalidade nos ataques de tubarões é alto. A literatura sugere que o tipo de trauma possa ser um fator de risco de consequências psicológicas. Nunca houve estudos sistemáticos sobre o impacto psicológico das mordidas de tubarão. A literatura atual se concentra na medicina de emergência, nos casos forenses e na segurança no oceano.

Sendo este o primeiro estudo sobre o assunto, o objetivo primário foi descrever a população da Austrália atacada por tubarões, que fazia parte de um grupo de apoio, e determinar a prevalência do transtorno de estresse pós-traumático ( TEPT). Além diss o, foi analisado se existe maior risco de TEPT pela exposição do evento na mídia e se algum trauma anterior seria um fator de risco.

O estudo foi feito com 124 membros do grupo de apoio australiano para vítimas de mordidas de tubarão. Os participantes preencheram um questionário on-line avaliando a demografia, o evento traumático e os fatores psicológicos. Responderam 48% dos membros (N = 60, 63% homens, com média de idade de 44 ± 14 anos). O transtorno de estresse pós-traumático e a ideação suicida foram mensurados retrospectivamente, por meio de uma lista de controle .

A prevalência do TEPT nesta amostra foi maior após o evento (27, 1%; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 15 ,4 a 38 ,8) do que no momento atual (3 ,6% IC 95% de 0 ,0 a 8 ,7). Não houve relação com gênero ou trauma anterior. Dois participantes tinham risco de suicídio. Houve casos de transtorno de estresse pós-traumático mais comumente entre os participantes solteiros (razão de chances ou odds ratio, OR = 5 ,91; IC 95%, de 1 ,52 a 22 ,99) e entre os participantes expostos a uma cobertura negativa da mídia (OR = 11 ,9; IC 95% de, 1 ,42 a 100 ,42). A exposição pela mídia apresentou uma relação independente com o transtorno de estresse pós-traumático após regressão multivariável.

PARA LEMBRAR:

Mesmo sendo um evento raro, as mordidas de tubarão normalmente causam lesões que podem matar a vítima, tornando-se ameaças reais à vida. Sendo assim podemos, na maioria das vezes, considera-lo um trauma que pode vir a desencadear quadros de transtorno de estresse pós-traumático. Isto nos obriga a pensar que estes pacientes, além de tratamento cirúrgico, precisam o quanto antes de avaliação psiquiátrica.

Artigo publicado no Medscape em 31 de janeiro de 2019


Efeitos colaterais dos antipsicóticos: distonia aguda

A classe dos antipsicóticos pode causar uma série de efeitos colaterais, alguns agudos e outros após o uso crônico do medicamento. Um dos efeitos agudos mais comuns dos antipsicóticos é a distonia aguda. Este efeito colateral tem diminuído com os antipsicóticos mais modernos, mas mesmo com eles o risco ainda existe. Todo médico que prescreve bloqueadores da dopamina deve estar atento e saber tratar este efeito colateral. Este efeito colateral pode ser ocasionado também por antieméticos e antidepressivos. Distonia é uma postura anormal ou espasmos musculares que se desenvolvem após o início do medicamento ou o rápido aumento de dose. Estudos mostram que existem fatores de risco como: jovens do sexo masculino, uso de cocaína e história de distonia aguda. Efeitos anticolinérgicos podem reduzir o risco de distonia aguda.

Em 95% dos casos a distonia aguda aparece, em média, nas primeiras 96 horas do início do uso do medicamento ou após um aumento grande da dose. O quadro normalmente aparece na cabeça ou no pescoço, como por exemplo crise oculógira, trismo, disartria, blefaroespasmos e dificuldades de engolir. Outra forma relativamente comum é o opistótono. O diagnóstico diferencial deve levar em conta os quadros de conversão, catatonia, distonia tardia, epilepsia temporal e hipopotassemia.

O tratamento da distonia aguda costuma ser muito eficaz. Frequentemente se dá com o uso de anticolinérgicos. A opção mais usada e que reúne mais dados científicos é o biperideno 5 mg injetável. Uma alternativa a este medicamento é o uso dos anti-histamínicos como a prometazina 25 mg injetável. Estes medicamentos são normalmente efetivos em 20 minutos quando usados por via intramuscular.

Ocasionalmente, quando a distonia persiste, uma segunda e terceira doses devem ser usadas – com intervalos de meia hora. O uso destes medicamentos intravenosos só deve ocorrer quando o caso for muito grave e ameaçar a vida do paciente. Em alguns casos de crise oculógira que não respondam aos anticolinérgicos, o uso de clonazepam (0,5 mg a 4 mg) pode ser benéfico. Após a distonia ser resolvida, o anticolinérgico deve ser mantido por 24 a 48 horas, para prevenir recorrência.

O uso destes medicamentos como profilaxia da distonia aguda deve ser feito para os pacientes com história de distonia de uso de antipsicóticos de alta potência (como o haloperidol) ou que não possam usar, ou não respondam a, outros antipsicóticos, com riscos menores de causar este tipo de efeito colateral. Uma alternativa aos anticolinérgicos seria a amantadina 100 mg, de uma a três vezes ao dia.

A distonia aguda é um efeito colateral comum, mas que tem diminuído devido ao uso dos novos antipsicóticos com menor capacidade de bloqueio da dopamina. Ainda assim, deve-se compreender o diagnóstico e o tratamento deste efeito colateral

Artigo publicado no Medscape em 07 de janeiro de 2019


Cannabis associada a hipomania em jovens

Uso de Cannabis e hipomania em jovens: uma análise prospectiva

A Cannabis é uma das substâncias ilícitas mais usadas no mundo ocidental e seu uso é comum entre jovens. Um estudo recente demonstrou que 31% dos jovens usou Cannabis três vezes ou mais até os 18 anos. O uso de Cannabis está relacionado com diversos tipos de problemas, como doenças cardiovasculares e acidentes automobilísticos, mas está especialmente relacionado com os sintomas psicóticos nos jovens.

A relação entre a Cannabis e os sintomas maníacos ou do transtorno afetivo bipolar (TAB) é pouco investigada, mesmo tendo uma grande importância, visto que existe uma grande ocorrência de abuso da substância entre jovens com a doença. Sabe-se que pacientes usuários de Cannabis aderem mal ao tratamento do TAB, além de terem maior número de hospitalizações.

Outra questão relevante é que no adulto, o transtorno afetivo bipolar está bastante associado ao uso de Cannabis. Em uma revisão sistemática com adultos, foram identificados seis estudos prospectivos e concluiu-se que a Cannabis piorava os sintomas maníacos nos pacientes com TAB. Em um estudo com pacientes com até 21 anos de idade, o uso de Cannabis aumentou em quatro vezes o risco de sintomas subsindrômicos. No entanto, a especificidade da relação se mantém pouco clara. Os poucos estudos que existem são mais focados em adultos e normalmente não são controlados para sintomas psicóticos, uma limitação bastante grave, dada a significativa evidência da relação entre os sintomas psicóticos e a Cannabis.

O grande objetivo do estudo foi testar a hipótese de que o uso de Cannabis por adolescentes está relacionado com a hipomania em adultos jovens. Para isto, foi usado o The Avon Longitudinal Study of Parents and Children (Avon), uma coorte britânica que examinou determinantes de desenvolvimento, saúde e doença no Reino Unido. Foi usada a relação de uso de Cannabis aos 17 anos e hipomania dos 22 aos 23 anos, usando uma análise regressiva ajustada por gênero, abuso de álcool e de drogas, depressão e sintomas psicóticos aos 18 anos. Foram analisados 3.370 participantes.

Os participantes que usaram a substância de duas a três vezes por semana apresentaram aumento do risco de hipomania maior do que o dobro (odds ratio = 2,21, intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,49 a 3,28) após ajustamento. A relação Cannabis-hipomania não foi mediada por depressão ou sintomas psicóticos.

Para lembrar:

A Cannabis na adolescência pode ser um fator de risco independente de hipomania, podendo ser um fator causal. Sendo assim, este é mais um motivo para que se regule ainda mais o acesso a Cannabis entre os adolescentes.

Mortalidade na esquizofrenia: um estudo de 30 anos de acompanhamento

Recentes relatórios têm sugerido que a diferença na lacuna de mortalidade entre pessoas com esquizofrenia e a população em geral está aumentando. Algo inesperado, tendo em vista a introdução de antipsicóticos novos e mais bem tolerados, além do avanço da medicina e do conhecimento da doença.

Uma recente metanálise demonstrou que a esquizofrenia foi associada à perda de ao menos 15 anos de vida. As causas de óbito nestes pacientes são variadas, desde suicídio até questões cardiovasculares causadas pelo alto índice de tabagismo e sedentarismo, além dos efeitos colaterais dos antipsicóticos. O objetivo deste estudo foi investigar a mortalidade, a idade no momento do óbito e a causa da morte em pessoas diagnosticadas com esquizofrenia, e comparar com a população geral da Finlândia.

Para isso, todas as pessoas diagnosticas com esquizofrenia no país, após alta hospitalar foram identificadas e comparadas com a população em geral acima dos 16 anos, durante o período de 1984 a 2014. Os dados foram obtidos do banco de dados finlandês. A idade no momento do óbito e a taxa de mortalidade padronizada foram calculadas anualmente.

A média de idade de morte de pessoas com esquizofrenia aumentou de 57,6 anos em 1984, para 70,1 anos em 2014. Na população em geral, o aumento foi de 70,9 para 77,5. Todas as causas de mortalidade se mantiveram estáveis, com exceção do suicídio, que diminuiu de 11,0 em 1984 para 6,6 em 2014 – uma redução de 40%.

Para lembrar:

A longevidade dos pacientes com esquizofrenia está melhorando praticamente na mesma proporção que a da população em geral. O suicídio nesta população teve uma diminuição considerável. Entretanto ainda existe uma grande disparidade na mortalidade dos pacientes esquizofrênicos, quando comparados à população em geral. Com diagnósticos mais precisos e tratamentos mais acessíveis essa disparidade poderia diminuir ainda mais.

Eficácia e tolerabilidade do uso de lítio para o tratamento da mania aguda em crianças com transtorno afetivo bipolar: uma revisão sistemática

O lítio é tido como o padrão ouro para o tratamento da mania aguda, mas a maioria dos estudos até hoje não inclui crianças e adolescentes. Mesmo sendo incomum, alguns estudos têm mostrado sintomas maníacos em crianças. Muitas vezes estas crianças apresentam quadros com curso de ciclagem ultrarrápida e com alto índice de sintomas psicóticos. Tudo isso acaba predizendo uma baixa resposta ao lítio em adultos. Não se deve generalizar achados de adultos para crianças.

Recentes estudos mostram evidências neuroprotetoras do lítio e, além disso, outros estudos mostram que postergar o tratamento das crianças traria consequências ruins.

Este estudo teve como objetivo avaliar a eficácia e tolerabilidade do uso de lítio para o tratamento do quadro agudo em crianças e adolescentes. Para isso, foi usada uma busca sistemática da literatura até agosto de 2017, incluindo estudos clínicos com pacientes de até 18 anos de idade com diagnostico de transtorno bipolar ou episódio misto.

Foram encontrados quatro estudos que preencheram os critérios de inclusão, e os de exclusão, que eram amostras com doenças graves, doenças neurológicas, deficiência intelectual ou traumatismo craniano. A mania deveria ser confirmada em uma entrevista presencial com a criança.

No total, 176 crianças foram tratadas com lítio como monoterapia ou como tratamento adjuvante à risperidona.

Os resultados sugerem que o lítio seja superior ao placebo (diferença média padrão, DMP, - 0,42; IC 95%, de - 0,88 a - 0,04), comparado ao ácido valproico (DMP - 0,07; IC 95%, de 0,31 a 0,18), mas significativamente menos efetivo do que a risperidona (DMP 0,85; IC 95%, de 0,54 a 1,15). No entanto, o lítio não foi associado a efeitos colaterais graves e, no geral, foi bem tolerado, com efeitos colaterais parecidos com os dos adultos.

Para lembrar:

Ainda existem poucos dados sugerindo que o lítio seja efetivo e bem tolerado para o tratamento da mania em crianças. Novos estudos randomizados são necessários para esclarecer esta dúvida que ainda paira sobre este quadro. No entanto, precisamos entender em primeiro lugar que o diagnóstico de transtorno bipolar na infância é um diagnóstico legítimo.

Artigo publicado no Medscape em 25 de dezembro de 2018


Conceito, conduta médica e compreensão sobre a disforia de gênero

Um número crescente de adolescentes tem procurado atendimento em serviços especializados em identidade de gênero nos países ocidentais, devido ao aumento da aceitação do modelo de tratamento, que inclui supressão da puberdade. Estes tratamentos podem ser realizados por meio do uso de hormônios análogos da gonadotrofina em estágios iniciais da puberdade, além do uso de hormônios sexuais cruzados, a partir de cerca de 16 anos de idade. Para adultos, além do tratamento hormonal, existe um aumento na busca por tratamento cirúrgico. Entretanto, pouco se sabe sobre o início, a progressão e os fatores que influenciam o desenvolvimento de disforia de gênero e/ou identidade transgênero em adolescentes.

A consolidação do gênero é central na adolescência, mas ainda não se sabe o suficiente sobre como a identidade de gênero e a variação de gênero se desenvolvem. Sabe-se que muitos pacientes com disforia de gênero apresentam comorbidades psiquiátricas. Tendo em vista a complexidade do tema, esta é uma revisão para esclarecer diversos conceitos e auxiliar médicos para que possam entender melhor seus pacientes.

Disforia de gênero e conceitos relacionados:

A quinta edição do Manual de Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) define disforia de gênero como uma condição em que a pessoa tem uma evidente incongruência entre o gênero que é expressado e o experimentado, além do sexo biológico ao nascer. Isto causa ao paciente extrema angústia e prejuízo do ponto de vista social e ocupacional. Pessoas com disforia de gênero têm um forte desejo de serem tratadas de acordo com um outro gênero e de se livrarem das características do gênero atual. Além disto, esses pacientes têm convicção de terem reações típicas de um outro gênero. O termo anteriormente utilizado, Transtorno de Identidade de Gênero, foi rejeitado pelo DSM-5 para evitar a patologização da questão de gênero.

De acordo com a CID-10, transexualismo é definido como o desejo de viver e de ser aceito como um membro do sexo oposto. Normalmente é acompanhado de um senso de desconforto ou de inadequação do sexo anatômico e do desejo de passar por uma cirurgia e um tratamento hormonal para fazer seu gênero o mais congruente possível com o sexo de sua preferência. O CID-11 mudou a designação para Incongruência de Gênero.

A não conformidade de gênero se refere a comportamentos e aparências consideradas atípicas em indivíduos com o sexo designado. A variância de gênero se refere ao espectro de experiências de gênero, em contraste com a dicotomização conceitual do gênero. O termo transgênero é usado como um guarda-chuva de termos que se referem a uma variedade de identidades de gênero. Nem todas as pessoas que se identificam como transgêneros ou que apresentam não conformidade de gênero sofrem de disforia de gênero. Neste texto o termo disforia de gênero será usado para as pessoas que apresentam sintomas clínicos.

O quão comum é a disforia de gênero e transgênero entre adultos e adolescentes?

Na população adulta, o número de pessoas que procura tratamento sugere que o transexualismo masculino-feminino tem uma prevalência de 6,8/100.000 e o transexualismo feminino-masculino tem uma prevalência de 2,6/100.000. Algumas pesquisas sugerem que 0,5% da população se identifica como transgênero.

O número de adolescentes que procura serviços especializados tem crescido consideravelmente durante esta década na Europa e na América do Norte. Não há uma conclusão em relação a prevalência de disforia de gênero ou disforia de gênero/transexualismo. Alguns pequenos estudos sugerem variação de 0,17% a 1,3% de adolescentes e adultos jovens que se identificam como trangênero. Uma pesquisa baseada em uma população escolar sugere que 1,3% dos jovens entre 16 e 19 anos têm potencialmente disforia de gênero.

Identidade de gênero

Identidade é como cada um entende, descreve e expressa a si mesmo, e como essa identidade é refletida para os outros. Identidade consiste em vários aspectos como gênero, nacionalidade, linguagem, convicções políticas e religiosas. Ela é afetada por relações interpessoais, sociedade e diferentes eventos durante a vida. A adolescência é um importante período de formação de identidade e integração.

Identidade de gênero diz respeito ao senso dos indivíduos em ser feminino, masculino ou de outro gênero. O desenvolvimento da identidade de gênero é um processo complexo, influenciado por múltiplos fatores. Geralmente, na pesquisa da identidade de gênero o foco tem sido amplo em relação às diferenças de sexo. Dois outros tópicos vêm recebendo atenção: a descrição das diferenças de sexo e a etiologia destas diferenças. Existem algumas diferenças estruturais e funcionais com relação à diferença dos sexos do ponto de vista cerebral, algumas delas observadas durante a vida e outras durante fases específicas do desenvolvimento. As diferenças sexuais são fortemente determinadas pela exposição de hormônios esteroides durante a fase perinatal, que altera respostas hormonais e não hormonais subsequentes durante a vida. Entretanto, é importante ressaltar, as diferenças sexuais dependem da interação genética ou epigenética.

Tratamento da disforia de gênero

A maioria das diretrizes usadas no tratamento da disforia de gênero em crianças e adolescentes são da Sociedade de Endocrinologia e da Associação de Saúde dos Transgêneros, baseadas em protocolos holandeses.

O protocolo holandês recomenda tratamento médico caso a disforia de gênero se intensifique na puberdade, levando informação e suporte para as famílias. Nos adolescentes, o tratamento médico é recomendado a partir dos 12 anos. A supressão da puberdade, usando hormônios análogos das gonadotrofinas, faz parte do protocolo para os adolescentes. O propósito da supressão é aliviar o sofrimento psicológico causado pelas características secundárias do sexo de nascença, dando ao adolescente tempo para balancear as próprias decisões de passar para o próximo estágio: o tratamento médico para confirmação de gênero. Pacientes com mais de 16 anos que mantenham disforia de gênero passarão pelo uso de hormônios de sexo cruzado, ou seja, masculino – feminino ou feminino – masculino. Os pacientes acima dos 18 anos têm indicação cirúrgica.

Existem muitas discussões éticas com relação a este protocolo, principalmente pela falta de dados de longo prazo destes tratamentos. Existem algumas contraindicações, como comorbidades psiquiátricas graves, instabilidade do suporte psicossocial, ou início da disforia de gênero após a puberdade.

Estudos descritivos sobre adolescentes que procuram serviços especializados em identidade de gênero têm sugerido que aproximadamente 45% destes jovens apresentam alguma psicopatologia clínica. As doenças mais reportadas foram depressão e ansiedade. Automutilação e ideação suicida também são comuns. Estes pacientes apresentam um risco 4 a 6 vezes maior de transtorno do humor e 3 a 4 vezes maior de automutilação/ideação suicida.

Pesquisadores têm observado que a procura por serviços especializados em identidade de gênero por adolescentes aumentou desde os anos 2000. Crianças que nasceram com o sexo feminino representam de 50% a 90% da amostra de adolescentes que buscam atendimento nesses serviços.

São necessários muito mais estudos e atenção dos pesquisadores para o tema, tão importante e atual. Todos temos conhecimento da grande vulnerabilidade da população LGBTQ que não conta com o suporte da família e de serviços de apoio adequados. É importante que a classe médica entenda os conceitos que envolvem estes pacientes e possa oferecer um atendimento de melhor qualidade.

Artigo publicado no Medscape em 23 de dezembro de 2018


Suicídio e posse de armas de fogo: uma questão de saúde pública

O novo governo eleito no Brasil tem como uma de suas propostas a flexibilização da posse de armas de fogo para a população. É um tema polêmico, que merece profunda discussão e análise em diversos setores. Sobretudo, é importante discutir essa questão no que se refere à saúde pública. Para isso, um bom começo é analisar o artigo Suicide, Guns, and Public Policy, publicado em 2012 pelo periódico American Journal of Public Health sobre suicídio, armas e políticas públicas.

O suicídio é um comportamento complexo e extremo, em que o paciente tem como objetivo a morte. A Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou o suicídio como um problema de saúde pública, responsável por mais mortes, em todo o mundo, do que homicídios e guerras combinados. De acordo com a publicação no periódico norte-americano, os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) registraram em 2007 34.598 suicídios apenas nos Estados Unidos, número muito maior do que os 18.361 assassinatos no mesmo período.

As doenças psiquiátricas estavam presentes em 80% a 90% dos pacientes que cometeram suicídio. Tratar, principalmente, os transtornos do humor é uma forma de prevenção. Outros fatores associados ao comportamento suicida são: abuso de bebidas alcoólicas e de drogas, e acesso a meios letais, como armas de fogo. A impulsividade também é um fator bastante importante neste cenário. Diversas organizações determinam que a restrição aos meios letais, ou seja, dificultar o acesso dos pacientes a esses meios, sejam incluídas nas estratégias de prevenção ao suicídio. Nos Estados Unidos, a arma de fogo é o meio mais comum para o suicídio, além de ser o mais letal, chegando a quase 91% de efetividade, seguido de afogamento (84%) e enforcamento (82%).

Um estudo fez uma análise retrospectiva em todos os 6.196 suicídios no estado de Maryland, nos EUA, entre 2003 e 2015, e concluiu que a prevalência do suicídio em áreas rurais foi maior onde as armas são ainda mais acessíveis (IRR = 1,66; IC de 95%, de 1,20 a 2,31). Na região rural, os suicídios por outros meios não foram mais prevalentes do que na urbana.

A restrição do acesso aos meios letais é extremamente importante para esses pacientes, pois a ideação suicida muitas vezes passa e não é concretizada se não houver um meio letal à disposição. Muitos países utilizam políticas de restrição a meios leitais; em alguns países asiáticos o acesso a pesticidas é dificultado, e na Austrália dificulta-se o acesso a barbitúricos. Em vários países são instaladas cercas de proteção em lugares altos com índice elevado de quedas, como no edifício Empire State, em Nova York, e na Torre Eiffel, em Paris. E, diversos países restringem o acesso às armas de fogo.

A substituição do método usado para o suicídio sempre pode ocorrer, mas em relação às armas de fogo, essa substituição será sempre por um meio menos letal, o que aumenta a chance de sobrevivência. Pacientes com doenças psiquiátricas deveriam ter o acesso às armas ainda mais dificultado. Um dos modelos que vem sendo utilizado para dificultar o acesso de pessoas com ideação suicida é justamente o do Brasil, além do Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Mesmo nos EUA, as taxas de suicídio nos estados com políticas de acesso mais restritivas (idade mínima de 21 anos) são menores.

Entre 36 países desenvolvidos, apenas os EUA apresentam alta mortalidade por armas de fogo, além da maior proporção de suicídios, também por armas de fogo. Nos EUA, as armas de fogo são mais utilizadas para suicídios do que para homicídios. O risco de suicídio é maior nos estados com mais proprietários de armas do que nos estados com menos proprietários de armas de fogo.

O suicídio deve ser tratado como um problema de saúde pública. Hoje, o Brasil tem uma política em relação à posse de armas que está entre as mais protetivas que existem. Devemos discutir com seriedade, no meio médico, a proposta de flexibilização da posse de armas de fogo. A legislação dos EUA é a mais flexível do mundo e seus índices de suicídio são bastante altos, sem contar com os atiradores que causam centenas de mortes em locais públicos. Um país como o Brasil terá condições de controlar todo esse comércio?

Artigo publicado no Medscape em 04 de dezembro de 2018


Benzodiazepínicos: uso inadequado e doenças relacionadas entre adultos nos EUA

Prevalência e correlação do uso, uso inadequado e doenças relacionadas aos benzodiazepínicos entre adultos nos Estados Unidos da América

Benzodiazepínicos normalmente são utilizados por um curto período no tratamento de ansiedade e insônia. No entanto, seu manuseio é complicado pois há o risco de o paciente fazer uso inadequado da medicação. O uso inadequado de benzodiazepínico é normalmente definido como uso do psicotrópico sem prescrição, em maiores quantidades, com mais frequência, ou por um período mais longo do que o prescrito. Além disto, existe o risco do desenvolvimento de transtornos relacionados com o uso desses medicamentos. O uso inadequado de benzodiazepínicos e os transtornos relacionados estão associados a várias consequências, como diminuição da coordenação motora, acidentes de trânsito e morte prematura.

Alguns estudos examinaram a prevalência e a correlação do uso inadequado e dos transtornos relacionados com os benzodiazepínicos. Entretanto, nenhum estimou a prevalência norte-americana e examinou sua correlação com o uso inadequado e as doenças relacionadas com essas substâncias. Um recente estudo descreveu a primeira estimativa de uso de benzodiazepínicos por idade e pelo sexo. Por ser um estudo feito com dados de farmácia, não se pode examinar outras características sociodemográficas, avaliar informações diagnósticas dos pacientes, ou estimar a prevalência e a correlação do uso inadequado às doenças relacionadas com os benzodiazepínicos.

Neste estudo, se aproveitou uma amostra nacional bastante representativa de adultos norte-americanos para examinar: 1) a prevalência e a correlação do uso de benzodiazepínicos; 2) a prevalência e a correlação do uso inadequado e das doenças relacionadas com os benzodiazepínicos; 3) motivações para o uso inadequado e a fonte dos benzodiazepínicos para o uso inadequado.

Foram incluídos 102.000 adultos com mais de 18 anos que participaram da pesquisa nacional sobre uso de drogas e saúde (NSDUH, do inglês National Survey on Drug Use and Health) entre 2015 e 2016. Para isto, foram usadas análise descritiva e regressão logística multinomial.

NSDUH definiu como uso inadequado: 1) uso sem prescrição; 2) uso de quantidades maiores, mais frequentes ou durante um período maior do que o prescrito; 3) uso de qualquer maneira diferente da que o médico tenha orientado.

No período de 2015 a 2016, 12,5% adultos norte-americanos usaram benzodiazepínicos. Uma amostra de 2,1% fez uso inadequado do medicamento ao menos uma vez, e 0,2% apresentou alguma doença relacionada com os benzodiazepínicos. Entre os pacientes que usam benzodiazepínicos, 17,1% fizeram uso inadequado do medicamento e 1,5% apresentaram alguma doença relacionada com os medicamentos, como abuso ou dependência. O uso de benzodiazepínicos está mais associado a prescrição no pronto-socorro, no tratamento da ideação suicida e nas doenças mentais. O uso inadequado está associado a jovens, sexo masculino, negros e baixa escolaridade. As correlações com dependência e abuso são parecidas com as do uso inadequado.]

Para lembrar:

Por mais que os uso de benzodiazepínicos seja relativamente alto entre os adultos, o abuso e a dependência não são frequentes entre os pacientes que tomam esses medicamentos, como demonstrado na pesquisa. Muitas vezes, esta classe de medicamentos pode salvar vidas nos casos graves de ideação suicida.

Consequências adversas dos diferentes padrões de consumo de bebidas alcoólicas por adolescentes: uma análise integrativa dos dados de coortes da Oceania de pacientes até os 30 anos

Estudos têm associado o consumo de bebidas alcoólicas pelos adolescentes a efeitos adversos na fase adulta. Até hoje não está claro qual é a força desta associação e a dimensão das consequências de fatores confundidores. O uso de bebidas alcoólicas por adolescentes com idade entre 15 e 19 anos é muito comum. Destes, 34% consomem álcool regularmente e 12% têm episódios de consumo exagerado. O consumo de bebidas alcoólicas pode comprometer o desenvolvimento cerebral, aumentar o risco do uso de outras substâncias entorpecentes, e aumentar o comportamento sexual de risco e de violência. Apesar do conhecimento das consequências de longo prazo do consumo de álcool por adolescentes, as conclusões da últimas revisões sistemáticas são esparsas e de baixa qualidade, por não haver controle dos vieses e pelo baixo poder estatístico.

Este estudo aborda temas com relação ao padrão de consumo de bebidas alcoólicas por adolescentes, integrando dados de quatro estudos longitudinais australianos e da Nova Zelândia, por meio de "participant level data",em vez de metanálises de dados agregados. Este método aumenta o tamanho da amostra e a precisão estatística, além de ampliar o escopo de generalização dos achados. O estudo teve como objetivo estimar as consequências psicossociais a longo prazo de três níveis de consumo de bebidas alcoólicas, denominados: frequente, episódios excessivos e problemas ao consumir bebidas alcoólicas. Os participantes foram avaliados várias vezes, entre os 13 e 30 anos de vida. O número de participantes variou, chegando a 9.453 jovens. Os três níveis de consumo de bebidas alcoólicas foram avaliados antes dos 17 anos. Aos 30 anos, foram avaliados 30 desfechos em relação ao uso de substâncias entorpecentes, acidentes, comportamentos sexuais de risco, saúde mental e relacionamentos.

Após os ajustes por covariáveis, consumir bebidas alcoólicas semanalmente antes dos 17 anos foi associado a compulsão por beber (odds ratio = 2,14; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,57 a 2,90). Aumento de mais de duas vezes do risco de beber e dirigir (odds ratio = 2,78; IC 95%, de 1,84 a 4,19). Dependência de bebidas alcoólicas teve seu risco aumentado mais de três vezes (odds ratio = 3,30; IC 95%, de 1,69 a 6,47) na idade adulta.

Para lembrar:

O consumo de bebidas alcoólicas por crianças e adolescentes é extremamente perigoso para o desenvolvimento cerebral, além de trazer riscos futuros significativos na idade adulta. A prevenção e o controle da venda de bebidas para menores é uma política de saúde pública de extrema importância.

Associação entre religiosidade dos pais e filhos e ideação suicida com ou sem tentativa de suicídio dos filhos.

O suicídio é a principal causa de morte de adolescentes do sexo feminino entre 15 e 19 anos. Aproximadamente 12% dos adolescentes relatam ideação suicida. Estudos anteriores examinaram fatores de risco de suicídio entre crianças e adolescentes. Um fator de risco que tem recebido pouca atenção é a religiosidade. Isto é interessante, pois as práticas religiosas têm sido associadas a menores índices de suicídio desde o trabalho seminal de Durkheim, há mais de 100 anos. Os poucos estudos que examinaram a associação entre a religiosidade das crianças e/ou adolescentes e o suicídio têm demonstrado que a religiosidade está associada à diminuição da taxa de ideação suicida e de tentativas de suicídio. Esta associação tem sido mais observada entre as meninas.

Os objetivos deste estudo foram: replicar a associação da religiosidade dos filhos e o comportamento suicida; examinar a associação entre a religiosidade dos pais e o comportamento suicida dos filhos; e observar a associação simultânea da religiosidade de pais e filhos e o comportamento suicida dos filhos.

O estudo foi feito com três gerações de filhos, com dados do New York State Psychiatric Institute e da Columbia University. Importante ressaltar que a segunda e a terceira geração foram definidas como tendo alto ou baixo risco de depressão maior, de acordo com a existência ou ausência de depressão maior na primeira geração. A idade dos participantes variou de 6 a 18 anos. Foram incluídos 214 participantes, sendo 52,3% meninas. A religiosidade teve uma associação mais importante em relação ao risco de comportamento suicida entre as meninas (odds ratio = 0,48; IC 95%, de 0,33 a 0,70). A religiosidade dos pais esteve mais associada a menor risco de comportamento suicida (odds ratio = 0,61; IC 95%, de 0,41 a 0,91).

Para lembrar:

A religiosidade ainda é um fator pouco estudado pela ciência. Entretanto, sabemos que nos países mais religiosos os índices de suicídio podem ser menores. Mais estudos para compreender como funciona esse fator de proteção são de extrema importância.

Artigo publicado no Medscape em 30 de outubro de 2018


Os Javalis Selvagens e o diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático.

O time de futebol juvenil conhecido como Wild Boars (Javalis Selvagens) virou notícia mundial, mas infelizmente não pela qualidade dos jogadores ou pelos feitos em campo, e sim pela aventura dramática e quase cinematográfica da qual fizeram parte em um parque na Tailândia. O grupo composto de 12 meninos, com idades de 11 a 17 anos, além do jovem treinador de apenas 25 anos, ficaram presos durante 18 dias em uma caverna úmida e escura, há quilômetros de distância da saída mais próxima.

Após ser encontrado (todos com vida e relativamente saudáveis), o grupo foi resgatado, numa grande operação que contou com profissionais de diversas partes do mundo, e levado ao hospital local o mais rápido possível. Os profissionais de saúde que participaram do resgate tinham uma grande preocupação inicial em relação às consequências pneumológicas, oftalmológicas e nutricionais dos sobreviventes. Após algumas horas do resgate, começou-se a discutir se haveria consequências psiquiátricas de maior relevância, que poderiam ter impacto em alguns ou em todos os integrantes do grupo, como o transtorno de estresse pós-traumático (TEPT).

O diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático ainda é pouco discutido no nosso país. O conceito de trauma sempre foi central na psiquiatria e na psicologia. Este conceito se fortaleceu ainda mais com a psicanálise, pois Freud observou que a maioria das suas jovens pacientes diagnosticadas com histeria tinham história de abuso sexual na infância. Este conceito logo foi estendido aos adultos, na grande maioria soldados. A aceitação da teoria psicanalítica do trauma veio com a Primeira Guerra Mundial e o conceito do "Shell Shock" ou trauma pós-guerra.

É importante frisar que o conceito de trauma veio antes do conceito de estresse. Freud formulou a teoria do trauma como a neurose de guerra.

Após a guerra do Vietnã, e com a publicação da terceira edição do manual de psiquiatria Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-III), em 1980, as designações histeria, trauma-pós-guerra e neurose de guerra transformaram-se em transtorno de estresse pós-traumático.

Na primeira edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-I) havia uma classe relacionada ao estresse de guerra, chamada "reação ao estresse bruto". O período que se seguiu ao DSM-III foi de certa calmaria em relação a guerras no mundo, por isto o transtorno de estresse pós-traumático foi basicamente usado em relação a traumas domésticos, principalmente o abuso sexual na infância. Existem pesquisas demonstrando que a prevalência de trauma sexual ocorre em cerca de 10% a 20% da população.

É importante para o diagnóstico de TEPT saber distinguir o que é trauma e o que é um evento cotidiano. Pelo sistema DSM, trauma consiste em uma situação na qual a pessoa tem a vida colocada em risco ou sofre violência sexual, sendo esta pessoa vítima ou testemunha. Esta definição abre portas para uma interpretação mais ampla da que se tinha antigamente, como na época da histeria e do "shell shock", quando os traumas estavam ligados apenas à morte e à violência sexual.

Hoje, muitos médicos ampliaram o conceito de trauma para problemas cotidianos, como perda de um trabalho ou de um animal de estimação, divórcio e assim por diante. Muitas pessoas podem transformar eventos corriqueiros em eventos traumáticos, mas pesquisas mostram que por volta de 80% das pessoas expostas a traumas não evoluem com transtorno de estresse pós-traumático.

A prevalência do transtorno de estresse pós-traumático nos pacientes com diagnósticos psiquiátricos é de aproximadamente 11,7%, e nos pacientes sem diagnóstico prévio, em torno de 5,1%.

Alguns fatores podem ser considerados protetores, como a resiliência. Pode-se abordar cientificamente o conceito de resiliência por meio da personalidade ou do temperamento do paciente. Sabe-se que alguns temperamentos seriam mais suscetíveis do que outros para ter transtorno de estresse pós-traumático nas pessoas com história de traumas.

Atualmente, a literatura sugere que os pacientes com personalidade do tipo depressiva têm mais predisposição para o transtorno de estresse pós-traumático, ao contrário da personalidade com traços de mania, que acaba se tornando protetora nesses casos.

Alguns estudos mostram uma relação positiva com a religiosidade. No caso específico dos meninos tailandeses, a grande maioria das crianças que ficaram presas nas cavernas é adepta do budismo, o que pode fortalecer a resiliência diante de experiências como a que o grupo viveu.

Como tratar o paciente diagnosticado com transtorno de estresse pós-traumático?

Existe uma extensa literatura, usando estudos randomizados com diversos medicamentos. Na maioria deles o resultado do tratamento do transtorno é modesto. Em grande parte das vezes os efeitos são mais sintomáticos, o que significa que esses medicamentos acabam não tratando a causa. Não devemos ter falsas expectativas em relação ao tratamento medicamentoso nestes quadros. O real tratamento desde Freud é por meio de psicoterapia. Existem vários tipos de psicoterapias que podem ser benéficas nestes casos.

O caso dos meninos da Tailândia nos mostra que temos de tomar certos cuidados ao diferenciar eventos realmente traumáticos de eventos cotidianos difíceis. Neste caso, esses meninos passaram por um evento realmente traumático, no qual tiveram suas vidas colocadas em risco. Sabemos que os meninos parecem ser resilientes, talvez por sua filosofia de vida. Além disto, certas atitudes como a meditação, ensinada pelo treinador dentro da caverna, podem ter ajudado a reforçar a resiliência do grupo. Sabe-se também que o grupo passou um tempo em um retiro espiritual após o resgate, o que pode-se entender como uma psicoterapia de apoio.

Traumas violentos e abuso sexual podem transformar a vida de uma pessoa. Assim, medidas de suporte são extremamente necessárias nesses casos, como diversos tipos de psicoterapia, auxilio de animais de serviço, apoio espiritual ou grupos de apoio. Um bom diagnóstico é fundamental para que o paciente seja tratado de maneira adequada e consiga reestabelecer sua funcionalidade dentro da sociedade.

Artigo publicado no Medscape em 18 de outubro de 2018