Armas e suicídio no Brasil
Em 2018, escrevi meu primeiro artigo para o Medscape, no qual abordei a relação entre a flexibilização da posse de armas e o aumento do número de casos de suicídio, e no qual expressei a minha preocupação, como médico psiquiatra, a respeito do tema.
Naquela época iniciava-se a discussão sobre a flexibilização da posse de armas no Brasil, mas já havia dados suficientes, de outros países, de que essa medida traria consequências preocupantes para a saúde pública. O governo federal vem facilitando o acesso a armas de fogo por meio de decretos, como o que aumenta o limite de número de armas para colecionadores, atiradores e caçadores, além de ampliar o acesso a munições. Há ainda outro decreto, que liberou aulas de tiro esportivo para adolescentes a partir de 14 anos, medida extremante preocupante, tendo em vista o alto índice de suicídios entre adolescentes e jovens adultos.
Esta flexibilização passa pela possibilidade de se ter um número elevado de armas e licença para se ter calibres restritos. Entre janeiro e abril foram registradas 48,3 mil novas armas no país, o maior número para este período nos últimos anos. [2] Existe uma preocupação em relação a como a checagem dos pedidos de posse destas armas está sendo realizada, pois a cada 100 pedidos de registro feitos este ano, apenas um foi negado.
A região Sul é a que mais se arma, o que é um fato bastante importante, pois esta é a região com risco de suicídio mais elevado do Brasil. Atualmente, o método mais utilizado para suicídios no país é enforcamento, seguido por uso de arma de fogo. Já nos Estados Unidos, onde a posse de armas é liberada, o método mais utilizado é a arma de fogo.
Segundo os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos EUA, suicídio é a sétima maior causa de morte entre homens norte-americanos, e o país concentra a maior taxa de suicídio por armas de fogo no mundo.
Alguns estudos sugerem que ao dificultar ou retirar o acesso a meios letais é possível reduzir o número de casos de suicídio. Podemos tomar como exemplo as mudanças que ocorreram na Inglaterra em relação aos suicídios por intoxicação de monóxido de carbono quando os fornos a carvão foram substituídos por gás natural. Apenas esta mudança representou uma diminuição de 34% dos casos entre homens e 32% entre mulheres. Outro exemplo é o banimento de herbicidas na Coreia do Sul, o que reduziu em 10% os casos de suicídio.
Cerca de um terço dos casos de suicídio consistem em um ato impulsivo; em aproximadamente 24% dos casos a pessoa leva menos de cinco minutos entre a decisão de se matar e a tentativa de suicídio, em 70% dos casos, leva menos de uma hora. As crises envolvendo ideação suicida normalmente são autolimitadas, podendo estar relacionadas com términos de relacionamento, perda de emprego ou problemas com a polícia. Quando as crises passam, a urgência da tentativa de suicídio também passa.
Um estudo na Califórnia demonstrou, diante do acesso a armas de fogo, as mulheres têm mais chances de se suicidar do que os homens (homens: hazard ratio, HR, = 7,82; intervalo de confiança, IC, de 95% de 7,26 a 8,43 e mulheres: HR = 35,15; IC 95% de 29,56 a -41,79). Este é um dado preocupante, já que historicamente as mulheres apresentam mais tentativas de suicídio. Com acesso a armas, a tentativa pode ser letal, e o número de suicídios entre mulheres pode crescer drasticamente.
Estudos em diversos países demonstram que o número de armas per capita é um forte e independente preditor de morte por arma de fogo. Este mesmo estudo mostra que ter doença mental não é um preditor tão forte.
Estudos em diversos países, além dos Estados Unidos, mostram a força da associação entre a disponibilidade de armas de fogo e o suicídio. Um estudo em Israel, feito com soldados das forças armadas, restringiu o acesso a armas de fogo durante as folgas de final de semana. Esta medida diminui a taxa de suicídio em 40%. Na Finlândia um estudo ecológico comparou os suicídios entre o Norte e Sul do país. As taxas de suicídio, por arma de fogo no Norte da Finlândia é quase três vezes maior que no Sul. Não existe diferença entre taxa de suicídio sem arma de fogo, a grande diferença é que a posse de arma no Norte é o dobro que no Sul da Finlândia.
Segundo um estudo comparativo, se os Estados Unidos tivessem a mesma política restritiva de porte e posse de armas de fogo que o Canadá, haveria uma redução de cerca de 26% no número de suicídios no país.
Alguns países têm mudado e tornado suas legislações mais rígidas em relação ao acesso a armas. A Suíça, um dos países com maior número de armas per capita no mundo, decidiu por meio de um referendo realizado em 2019 endurecer as leis de acesso a armas. Na Nova Zelândia é necessária uma entrevista com a polícia e a realização de uma prova sobre regulamentação, uso, segurança e armazenamento das armas. Além disso, há ainda uma vistoria doméstica para checar as condições de armazenamento. Estas medidas diminuíram 66% dos casos de suicídio entre adolescentes e 39% entre adultos.
Na Austrália, a venda de armas para uso privado e semiautomáticas foi banida. Além disso, autodefesa foi excluída dos motivos genuínos para solicitação da posse de armas. Diante destas medidas, a taxa de suicídio diminuiu 4,4%, além da diminuição dos tiroteios em massa. No Canadá, é exigido um curso de segurança, além da verificação de antecedentes e um período de espera mandatório de 28 dias. Com isto, a taxa de suicídio diminuiu de 31,2% para 24,5%.
A dificuldade de acesso a meios letais, como as armas de fogo, é um dos poucos meios de políticas efetivas de prevenção ao suicídio. Com a flexibilização ao acesso existe uma grande possibilidade de as taxas de suicídio aumentarem no Brasil, tendo em vista que o suicídio é um ato impulsivo na grande maioria dos casos. Em breve o uso de armas de fogo deve ultrapassar o enforcamento como método mais letal no nosso país. Infelizmente, estamos indo na contramão da grande maioria dos países desenvolvidos e, como consequência, em pouco tempo teremos um novo problema de saúde pública além da covid-19: o suicídio.
Artigo publicado no Medscape em 18 de agosto de 2020
Consequências do uso de Cannabis na adolescência
Uso de Cannabis durante a adolescência e a ocorrência de depressão, comportamento suicida e transtornos de ansiedade na idade adulta: achados de um estudo de coorte longitudinal de 30 anos
Um número significativo de evidências sugere que o uso de Cannabis durante a adolescência aumenta o risco de transtornos psicóticos na vida adulta. Baseada em estudos mendelianos randomizados, esta associação parece ser, no mínimo, parcialmente causal. No entanto não está totalmente claro se o uso de Cannabis na adolescência prediz transtornos afetivos.
Um estudo de coorte longitudinal de 35 anos, com participantes do sexo masculino, relatou uma fraca associação entre uso de Cannabis e aumento do risco de depressão. Esta associação acabou desaparecendo após ajuste para outras covariantes.
Outro estudo prospectivo populacional – com duração de três anos e que incluiu homens e mulheres adultos – concluiu que o uso de Cannabis no início do estudo apresentou uma associação fraca com depressão e ansiedade. Esta associação também desapareceu depois do controle para covariantes.
Um estudo de coorte longitudinal feito com estudantes entre 14 e 15 anos, que teve acompanhamento de sete anos, reportou uma forte associação entre o uso precoce de Cannabis e o surgimento de depressão e ansiedade na vida adulta. Neste caso a associação persistiu mesmo após o ajuste para covariantes.
Uma metanálise composta de estudos longitudinais concluiu que o uso de Cannabis por adolescentes predispõe ao desenvolvimento de depressão, ideação suicida e tentativa de suicídio em adultos jovens, mas não predispõe a ansiedade.
O objetivo deste estudo foi reavaliar a associação entre o uso de Cannabis por adolescentes e transtornos afetivos e de ansiedade na idade adulta. Os pesquisadores foram além e focaram separadamente em transtornos afetivos, de ansiedade e comportamento suicida. Além disso, foi realizado controle não apenas para covariantes da linha de base, como ambiente familiar e situação socioeconômica, mas também para uso concomitante de álcool e outras drogas. O estudo observou os participantes por 30 anos, sendo o estudo longitudinal com maior duração até o momento.
Para isso, foram avaliados 591 sujeitos retrospectivamente, entre 19 e 20 anos de idade, para uso de Cannabis na adolescência. Os pacientes são provenientes de Zurich, na Suíça. A ocorrência de depressão, comportamento suicida e transtorno de ansiedade foi avaliada repetidamente por meio de uma entrevista semiestruturada clínica (SPIKE) quando os participantes tinham de 20 a 21 anos, de 22 a 23 anos, de 27 a 28 anos, de 29 a 30 anos, de 34 a 35 anos, de 40 a 41 anos e de 49 a 50 anos.
As associações foram controladas para diversas covariantes, incluindo privação econômica na adolescência e também para diversas medidas para abuso de substância durante a idade adulta.
Em torno de 25% dos participantes relataram uso de Cannabis na adolescência. Destes, 11% iniciaram o uso entre 15 e 16 anos ou mais jovens; 13% iniciaram o uso entre 16 e 17 anos e entre 19 e 20 anos. No modelo multivariado, o uso de Cannabis na adolescência foi associado a depressão na vida adulta (razão de chances ou odds ratio, OR, = 1,70; intervalo de confiança, IC, de 95% de 1,24 a 2,32) e comportamento suicida (OR = 1,65; IC 95% de 1,11 a 2,47). Porém, os pesquisadores constataram que não há associação significativa com transtornos de ansiedade (OR = 1,10; IC 95% de 0,82 a 1,48).
Para lembrar:
Este estudo longitudinal com duração de mais de 30 anos nos mostra que o uso precoce de Cannabis na adolescência pode trazer graves consequências para os pacientes.
Um adulto, por exemplo, que iniciou o uso de Cannabis na adolescência, tem 65% mais chances de cometer suicídio em comparação com aqueles que não fizeram uso desta substância. Este dado é bastante preocupante, mais uma vez, no contexto da legalização da maconha em um país como o Brasil, onde a fiscalização é deficitária, como em relação ao tabaco e ao álcool.
Transtorno por uso de álcool e risco de suicídio: uma coorte sueca
Suicídio é um problema de saúde pública responsável por milhares de mortes no mundo, com riscos multifatoriais como genética, estressores ambientais e comorbidades. O transtorno por uso de álcool é muito comum e está relacionado com diversos desfechos. Este tipo de transtorno está associado a mais de 5% das mortes em todo o mundo, podendo ocorrer junto com outras doenças psiquiátricas.
Muitas vezes transtornos afetivos e psicóticos, associados a transtornos por uso de álcool têm como desfecho o suicídio. Quando isso ocorre é difícil estabelecer a natureza da associação. A associação observada pode ser devido ao direto efeito causal e/ou a fatores de confusão que afetam o risco de suicídio e de transtorno por uso de álcool. A resposta para essa pergunta não é simples, tendo em vista a necessidade de uma amostra grande para estimar uma relação entre transtorno e suicídio.
Tanto transtorno por uso de álcool como suicídio têm agregação familiar – e m parte por mecanismos genéticos. Usando um ensaio com gêmeos, a inferência causal é melhorada, levando em conta fatores familiares, genéticos e ambientais que podem agir como fatores de confusão.
Neste estudo foram usados dados da população sueca para responder a duas questões. Primeiramente foi testado se transtorno por uso de álcool e suicídio têm associação, antes e depois de se levar em conta outras doenças psiquiátricas. Segundo, foi avaliado se esta associação é atribuída a fatores de confusão como: fatores familiares, potencial processo causal ou uma combinação de mecanismos através do uso de modelos de controle familiar.
Para isso foi utilizada uma coorte prospectiva e análise familiar (co-relative design) incluindo dados de 2.229,880 sujeitos nascidos entre 1950 e 1970, e observados dos seus 15 anos até o ano de 2012. As taxas de suicídio durante o período de observação foram de 3,54% para mulheres e de 3,94% para homens com transtorno por uso de álcool, comparando com 0,29% para mulheres e 0,76% para homes sem o transtorno.
Nos modelos ajustados, o transtorno por uso de álcool continua robustamente associado ao suicídio (razão de risco ou hazard ratio, HR, variou de 2,61 a 128,0 para mulheres e de 2,44 a 28,0 para homens). A análise familiar mostrou uma potencial relação causal, mesmo com história de outros diagnósticos psiquiátricos.
Para lembrar:
Como observado em relação a Cannabis, o uso de álcool é um outro fator de risco que deve sempre ser avaliado na rotina dos pacientes, seja no consultório ou no pronto-socorro. O estudo nos traz dados bastante robustos, tanto para homens como para mulheres. Políticas públicas, principalmente neste momento de quarentena em que há relatos do aumento do uso de álcool são fundamentais, pois é possível que o número de suicídios também aumente após a pandemia.
Associação entre luz artificial externa à noite com transtornos mentais e padrões de sono em adolescentes americanos
Distúrbios dos ritmos diários de sono e atividade têm sido observados em indivíduos com transtornos mentais, especialmente os diagnosticados com transtornos do humor. Esta associação é possivelmente bidirecional e não simplesmente por causa do efeito da doença mental no ritmo diário. Alguns estudos prospectivos têm identificado alterações do sono como antecedentes ao desenvolvimento de transtorno bipolar. Além disso, as alterações do ritmo comportamental normalmente precedem episódios do humor em sujeitos com transtorno bipolar.
Ritmos diários são dirigidos pelo ciclo luz-escuridão, que é a maior fonte de informação do corpo sobre a hora do dia. A secreção de melatonina começa no escuro e é fortemente inibida pela exposição à luz. A luz é também o principal guia natural do ciclo circadiano do processo celular e genético. A informação da luz é transmitida pela retina até o núcleo supraquiasmático, que age como um relógio central e ajuda a sincronizar outros relógios periféricos com o ambiente. Entende-se que a exposição à luz durante a noite aumenta o risco de doenças por contribuir para a desregulação e dessincronização do ritmo biológico e comportamental diário.
Em 2012 a associação médica emitiu uma declaração citando preocupações sobre os desfechos de saúde associados à exposição à luz durante a noite, inclusive transtornos do humor. Múltiplas linhas de pesquisa suportam a ideia de que a exposição à luz pode afetar negativamente o humor. Estudos com modelos animais mostraram que a exposição à luz durante a noite induz depressão e ansiedade, além de elucidar mecanismos neurais para estes desfechos.
Estudos avaliando a exposição à luz artificial noturna (LAN) interna à noite têm sido associados à saúde mental. Além disso, a terapia com luz tem sido utilizada no tratamento dos transtornos do humor há bastante tempo.
Alguns estudos comunitários e populacionais demonstraram associação entre luz artificial noturna externa e padrões de sono. Apenas um estudo foi conduzido associando luz artificial noturna externa e saúde mental em nível populacional. Este estudo, com participantes adultos coreanos, mostrou que sujeitos que vivem em distritos como maior luz artificial noturna externa relataram mais sintomas depressivos e ideação suicida. Neste estudo transversal conduzido entre 2001 e 2004, os autores usaram dados de uma amostra representativa de adolescentes americanos, para estimar a associação entre luz artificial noturna externa e padrões de sono e doenças mentais. Como segundo objetivo foi avaliado se as associações diferem entre sexo e idade.
No total, 10.123 adolescentes, entre 13 e 18 anos, participaram do estudo. Destes, 51,3% eram meninos com média de idade de 15,2 anos. Os níveis de luz artificial noturna externa foram medidos via satélite, com valores transformados em unidade de luminosidade. Durante as entrevistas os adolescentes foram questionados sobre doenças mentais, além de padrões de sono (hora de dormir, horários em que acordam durante semana e no final de semana). Os níveis de luz artificial noturna são positivamente associados a indicadores sociais piores, como minorias raciais étnicas (negros e hispânicos) e menor renda.
Após ajuste para várias características sociodemográficas, densidade populacional e status socioeconômico, associou-se maior luz artificial noturna externa a um horário mais tardio de dormir. A luz artificial noturna está associada transtorno bipolar (razão de chances ou odds ratio, OR, = 1,19; intervalo de confiança, IC, de 95% de 1,05 a 1,35) e depressão maior (OR = 1,07; IC 95% de 1,00 a 1,15).
Para lembrar:
A higiene do sono é fundamental para todos manterem uma saúde mental equilibrada, principalmente crianças e adolescentes. É importante que os pais façam controle do uso de celulares, televisão e tabletes no período anterior ao sono. Também é de extrema importância controlar a entrada de luz externa com cortinas e persianas, principalmente no verão, quando a incidência de luz é maior e pode desencadear episódios, principalmente em pacientes com transtorno bipolar.
Artigo publicado no Medscape em 17 de agosto de 2020
Depressão pós-parto durante a pandemia: atenção aos sinais de alerta
O parto geralmente é um momento muito feliz e esperado pela maioria das mulheres. Entretanto, algumas desenvolvem sintomas depressivos no puerpério, que podem ser leves e autolimitados – o “blues puerperal” ou “baby blues”.
Cerca de 50% ou mais das mulheres apresentam estes sintomas, mas alguns casos podem ser mais graves, caracterizando uma síndrome depressiva. Existem alguns fatores que podem chamar a atenção como o histórico prévio de alteração do humor no período pré-menstrual, síndrome depressiva anterior à gravidez, estresse em relação aos cuidados com a criança, histórico familiar de depressão, o parto cesáreo e até não amamentar.
“A fisiopatologia é desconhecida, mas pode estar associada a mudanças hormonais, que levam a alterações nos níveis de neurotransmissores. Nesse momento de quarentena isso fica mais evidente e os fatores de risco aumentam, porque as alterações do humor são maiores”, explica a ginecologista Dra. Maria Gabriela Kuster Uyeda, professora da Escola Paulista de Medicina.
O “blues puerperal” gera sintomas depressivos leves, como tristeza, choro, irritabilidade e ansiedade. As mães também podem apresentar quadros de insônia, exaustão, diminuição da concentração e alternância de humor. Tudo isso pode surgir após o parto, e atinge o pico nos dias seguintes, sumindo em duas semanas. É importante que os obstetras sejam capazes de distinguir o que é uma depressão maior, do cansaço habitual em uma mulher que acabou de ter um bebê.
O tratamento normalmente é conservador, mas pede a observação constante dessas mães, que precisam de apoio e de uma boa rede de segurança. Entretanto, com a pandemia do novo coronavírus muitas puérperas não estão recebendo esta atenção fundamental. Além disso, o isolamento dentro de casa contribui para agravar o quadro, não só pela solidão, mas também porque o corpo passa a receber menos luz solar, que faz o corpo produzir vitamina D.
A pandemia também transformou um momento festivo em estresse e temor. As visitas foram suspensas na maternidade e na volta para casa o trabalho é dobrado, pois a rede de apoio não pode estar presente.
“Não poder compartilhar a alegria da gestação, do parto, e ainda enfrentar a tristeza do puerpério é muito difícil”, desabafa a Dra. Gabriela, que foi mãe durante este período de isolamento e não pôde contar com a rede de apoio, tão importante num momento assim.
Com relação aos tratamentos para depressão pós-parto, o Supremo Tribunal Federal aprovou, no ano passado, uma medicação para o problema.
“A grande maioria das mulheres que têm depressão pós-parto, que é diferente dos ‘blues’, normalmente são pacientes que já vêm com quadros recorrentes há bastante tempo. Nesses casos, a melhor terapia é o retorno à medicação que já estava sendo usada”, diz o psiquiatra Dr. Sivan Mauer, reforçando que “é importante que essas mulheres tenham mais exposição à luz solar. Uma boa dica é não fechar as cortinas, quando for dormir e acordar com a luz do ambiente externo. Pequenas atitudes comportamentais essenciais”.
Tanto para o ginecologista, quanto para o obstetra é um desafio acompanhar a gestação de uma paciente e conseguir identificar quando a mulher tem depressão. Talvez valha a pena uma interação com psiquiatra entre a 32ª, 34ª semanas, sugere a ginecologista.
“Peço aos maridos para irem às consultas de pré-natal, porque eles serão os maiores parceiros nesse período. É importante que saibam que existe uma grande possibilidade de as esposas ficarem muito tristes, quietas. E também converso com as pacientes e reforço que elas devem se permitir chorar, que a ansiedade é normal, que não devem se culpar. E uso uma frase muito importante que alguém me disse: você é a melhor mãe que seu filho pode ter”.
É importante que o médico identifique quem pode estar caminhando para depressão. E há dicas claras. Por exemplo: quando alguém está há mais de duas semanas com insônia, apesar de estar extremamente cansada. Ou uma paciente que começa a ter claustrofobia, medos que não existiam antes, como entrar em elevador, sair de casa, dirigir. É a hora de avaliar os critérios de depressão, e são necessários pelo menos cinco sintomas para se estabelecer o diagnóstico.
Para o Dr. Sivan, o que pode realmente ajudar a entender o que estas mães estão sentindo é, principalmente, a história de doenças psiquiátricas da família.
“A questão da insônia merece atenção especial, pois possivelmente essa paciente já não está mais tendo o ‘blues puerperal’ e sim começando a apresentar um episódio de depressão mista, associada à ansiedade. O recado que eu deixaria é que antes de prescrever antidepressivo é avaliar se aquela mãe realmente precisa de medicação naquele momento”, diz o psiquiatra.
Doenças psiquiátricas e risco de suicídio
Risco de suicídio em 12 doenças psiquiátricas descritas no DSM-5
No que se refere ao comportamento suicida, as doenças psiquiátricas apresentam uma variação em relação ao risco associado. Entretanto, os transtornos do humor apresentam as maiores de taxas de suicídio. Poucos estudos recentes consideraram taxas de comportamento suicida em uma ampla amostra de sujeitos diagnosticados com doenças psiquiátricas através de conceitos modernos. A maioria dos estudos reporta apenas suicídio, considerando alguns diagnósticos ou grupos como transtornos do humor. Alguns estudos consideram diagnósticos entre suicídios cometidos em vez de risco de suicídio entre sujeitos com particular diagnóstico psiquiátrico. Pacientes com transtorno bipolar ou depressão maior apresentam as maiores taxas de tentativa e suicídio em comparação com as demais doenças psiquiátricas. Entre os transtornos do humor, a taxa de mortalidade padronizada para suicídio pode ser 20 vezes maior do que na população em geral. Alguns estudos relacionam o risco de transtornos do humor com a gravidade da doença. As tentativas de suicídio nos pacientes diagnosticados com transtorno bipolar ocorrem em sujeitos mais jovens, em comparação com pacientes com depressão maior. O risco de suicídio entre pacientes com transtornos do humor é maior em pacientes não tratados.
As mortes por suicídio, inclusive as por métodos violentos, são mais prevalentes entre homens, na maioria das culturas, e associadas a sintomas psicóticos. O estado mórbido é um importante fator de risco de suicídio e tentativa, mais comumente depressão, especialmente com características mistas (agitação), tanto no transtorno bipolar como na depressão maior.
O estudo em questão buscou comparar as taxas de suicídio, ideação suicida, tentativa de suicídio, tentativa de suicídio violenta e letalidade das tentativas em uma coorte europeia de homens e mulheres com diagnóstico de 12 doenças psiquiátricas descritas na 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Participaram deste estudo 6.050 pacientes adultos.
A incidência de ideação suicida variou de 53,9% em pacientes com transtorno bipolar com características mistas a 8,7% em pacientes com transtorno de ansiedade. Entre pacientes que cometeram ao menos uma tentativa de suicídio, foram mais prevalentes os sujeitos com transtorno bipolar com sintomas mistos ou psicóticos. As maiores taxas de suicídio foram respectivamente em pacientes que abusavam de substância, seguidos de pacientes bipolares com sintomas psicóticos, transtornos psicóticos, pacientes bipolares do tipo 1 e depressão maior. A letalidade das tentativas foi respectivamente maior em pacientes com abuso de substância, transtornos psicóticos e pacientes bipolares com sintomas psicóticos. As mulheres apresentaram mais risco de ideação suicida e tentativas de suicídio, porém, os homens apresentaram mais tentativas de suicídio mais violentas e mais suicídios.
Para lembrar:
Pacientes com diagnóstico de transtorno do humor apresentam mais risco de tentativa de suicídio e suicídio. Este quadro pode ser ainda mais grave com o abuso de substância, que é muito frequente entre pacientes com transtornos do humor. É determinante que se averigue o abuso de substância entre os pacientes com transtorno bipolar e depressão maior. Além disso, a indagação sobre a ideação suicida e a ocorrência de tentativas prévias é fundamental a redução do risco destes pacientes.
Relação entre lítio sérico e danos renais em um modelo pré-clínico
O lítio permanece sendo o padrão-ouro no tratamento profilático do transtorno bipolar. Um efeito colateral relacionado com o uso prolongado do lítio é o desenvolvimento de doença renal crônica, que é menos frequente do que se pensava anteriormente. O estágio 3 da doença renal crônica pôde ser observado entre 20% a 40% dos pacientes em tratamento de longo prazo com lítio. Esta porcentagem pode ser ainda maior entre idosos. Apenas entre 1% e 2% dos pacientes progridem para insuficiência renal, necessitando de diálise ou transplante. Neste contexto, saber quais são os fatores de risco de doença renal crônica pode contribuir para um uso mais racional deste medicamento. Existem algumas evidências de aumento do risco de doença renal crônica em pacientes com uso de lítio em longa data, idosos, pessoas com história de toxicidade por lítio, comorbidades clínicas e uso concomitante de outros medicamentos nefrotóxicos. A relação com o lítio sérico sanguíneo é controversa. Alguns estudos demonstram que não há diminuição da filtração glomerular relacionada com o lítio sérico. No entanto, análises retrospectivas mostram que níveis séricos de lítio > 0,6 mmol/L estão associados a diminuição da filtração glomerular. Alguns estudos pré-clínicos demostram que dano renal é dose-dependente.
O objetivo deste estudo foi avaliar se existe relação entre o lítio sérico e a magnitude do dano renal em modelo pré-clínico. Para isto, foram randomizados 30 ratos machos Wistar em três grupos: baixas doses de lítio, altas doses de lítio e sem lítio (controle). Os parâmetros laboratoriais foram avaliados depois de um e três meses, e as alterações histopatológicas foram avaliadas após três meses. Os ratos que apresentaram níveis mais baixos de lítio demonstraram dilatação dos túbulos corticais com igual clearence de creatinina. Já os ratos com níveis mais elevados de lítio apresentaram mais danos histopatológicos, além de um menor clearence de creatinina, quando comparados com os outros dois grupos.
Para lembrar:
O entendimento de se usar níveis séricos altos próximos de 1 mmol/L para obter uma resposta adequada pelos pacientes que utilizam lítio é uma ideia obsoleta. A melhor maneira de administrar o uso de lítio em pacientes é iniciar com doses mais baixas e observar a resposta clínica. O uso do lítio sérico é importante para prevenir intoxicações, principalmente em idosos, nos quais os níveis séricos utilizados como referência devem ser menores (em torno de 0,4 mmol/L a 0,7 mmol/L).
Posse de arma e suicídio na Califórnia
Suicídios normalmente são atos impulsivos, ocasionados por crises transitórias da vida. A maioria das tentativas não é fatal e a maioria das pessoas que tentam suicídio não irá morrer em tentativas futuras. A gravidade de um suicídio depende da letalidade do método e as armas de fogo são extremamente letais.
Estes fatos focam no acesso a armas de fogo como fator de risco de suicídio, especialmente nos Estados Unidos, que apresentam uma alta prevalência de porte de armas e uma alta taxa de suicídio por armas de fogo. Em 2018 ocorreram 24.432 suicídios por armas de fogo nos Estados Unidos. Estudos ecológicos e caso-controle demonstraram uma associação positiva entre disponibilidade de armas de fogo e suicídio. O risco seria três vezes maior quando existe acesso a armas de fogo.
No entanto existem as evidências têm limitações, como, por exemplo, os estudos caso-controle foram relativamente pequenos. Neste estudo os autores acompanharam proprietários de armas de fogo durante 12,2 anos, por meio de uma coorte de 26,3 milhões de adultos residentes na Califórnia que previamente não haviam adquirido armas de fogo. Destes, 676.425 membros da coorte adquiriram sua primeira arma durante o período do estudo. O objetivo do estudo foi estimar o risco da posse de arma no suicídio. No total, 1.457,981 pessoas morreram ─ por diversas causas. Destas, 17.894 morreram por suicídio, das quais, 6.691 por arma de fogo. A taxa de suicídio por qualquer método foi maior entre aqueles que tinham posse de arma (homens HR = 3,34; IC 95%, de 3,13 a 3,56 e mulheres HR = 7,16; IC 95%, de 6,22 a 8,24).
Entre os suicídios por arma de fogo, os homens apresentaram HR = 7,82 (IC 95%, de 7,26 a 8,43). Já as mulheres apresentaram HR = 35,15 (IC 95%, de 26,56 a 41,79). O aumento do risco de suicídio entre portadores de arma de fogo ocorreu logo após a aquisição da primeira arma.
Para lembrar:
Este estudo demonstra que a legalização do porte de armas é uma combinação muito temerária do ponto de vista de saúde pública. O estudo apresenta também uma grave constatação: mulheres apresentam maior risco de suicídio quando têm a posse de uma arma de fogo. A maioria dos estudos já havia demonstrado que mulheres fazem mais tentativas, muito possivelmente por usarem métodos menos letais; no entanto, armas de fogo são mais letais, e podem acabar tornando tentativas em suicídios.
Artigo publicado no Medscape em 07 de julho de 2020
Estudo indica aumento de casos de suicídio em função da Covid-19
Covid-19, desemprego e suicídio
A pandemia de Covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019) introduziu medidas restritivas que ocasionaram efeitos na economia global, incluindo aumento da taxa de desemprego mundial.
Um estudo anterior buscou compreender a relação entre o desemprego e o suicídio. Os autores deste trabalho utilizaram dados provenientes de 63 países coletados entre 2000 e 2011, o que inclui o ano de 2008, quando houve uma crise econômica mundial. A pesquisa indicou um aumento do risco de suicídio de aproximadamente 20% a 30% neste período. O modelo utilizado para o cálculo do risco nesta ocasião foi agora adaptado para tentar prever o efeito do desemprego nos índices de suicídio durante a pandemia.
Cerca de 800.000 pessoas se suicidam todos os anos no mundo. Foi utilizado o modelo com sexo, idade e taxa de desemprego para descrever uma relação não linear entre desemprego e suicídio. As estimativas foram aplicadas aos dados do Banco Mundial. O número estimado de empregos perdidos em função da pandemia de Covid-19 foi fornecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência multilateral da Organização das Nações Unidas (ONU).
O cenário mais conservador estima 24,7 milhões de empregos perdidos e o mais otimista calcula 5,3 milhões de empregos perdidos, representando, portanto, um aumento de 4.936% a 5.644% de desempregados no pior cenário, o que poderia levar a um aumento de 9.570 suicídios por ano. No cenário mais otimista o aumento seria de 2.135 suicídios.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), para cada pessoa que comete suicídio, existem outras 20 pessoas que realizam tentativas de suicídio. Então, o número de pessoas com sofrimento psíquico que irão procurar ajuda em serviços de saúde psiquiátrica durante a pandemia deve aumentar. Dados da crise econômica de 2008 revelam um aumento no número de suicídios precedendo o aumento da taxa de desemprego. É esperado um aumento da sobrecarga dos serviços de saúde psiquiátrica. A comunidade médica deve estar preparada para este desafio. É importante que hotlines e serviços psiquiátricos estejam prontos para esta fase da pandemia.
Para lembrar:
Os efeitos da pandemia, que todos esperam que passe o quanto antes, não terminaram com a simples extinção do vírus. É importante lembrar que esta é uma crise sanitária com efeitos na economia dos países. Como o texto nos alerta, existe a possibilidade de um aumento na taxa de suicídio nos próximos meses. Precisaremos lidar com os preconceitos que rondam o tema, mas definitivamente, o Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde devem preparar um plano para atender esses pacientes.
Transtorno bipolar parental, ambiente familiar e doenças psiquiátricas dos filhos: Uma revisão sistemática
Filhos de pais com transtorno bipolar têm mais risco de apresentar transtorno bipolar e outras doenças psiquiátricas do que filhos de pais sem doenças psiquiátricas. De fato, existem vários estudos que mostram que a doença tem um forte componente hereditário. No entanto, o transtorno bipolar é uma doença complexa, com a etiologia atribuída a uma combinação genética e do meio.
O hiato entre entender a transmissão intergeracional do transtorno bipolar e o impacto do meio dentro de um contexto de alto risco limita as oportunidades para o tratamento efetivo ou a prevenção. É imperativo que sejam identificados fatores modificáveis associados ao aumento do risco de doenças psiquiátricas entre filhos de pais com transtorno bipolar, assim como fatores protetores associados ao desenvolvimento de doenças psiquiátricas em contextos de alto risco de transtorno bipolar.
O ambiente familiar é um domínio de particular interesse com relação ao alto risco de transtorno bipolar, devido à grande importância no desenvolvimento da criança, além da hipótese de que estressores ambientais relacionados com o transtorno bipolar dos pais aumentam o risco, além da possibilidade da questão genética.
A importância do ambiente familiar para o desenvolvimento físico, psicológico e sócio emocional é bem estabelecida. Teorias familiares tendem a enfatizar a relação entre pais e filhos, a relação interparental e a natureza transacional da interação familiar. Neste estudo, os pesquisadores focaram mais na relação entre pais e filhos e na natureza dinâmica transacional, como oposto da relação interparental.
Uma fonte chave de conhecimento sobre o transtorno bipolar tem sido os estudos com amostras de alto risco, que focam em subgrupos com aumento de risco de apresentar a doença, devido a uma ou mais causas, como história familiar. Estes estudos são realizados por comparação entre famílias com ou sem risco familiar de determinada doença. Para aumentar o entendimento do processo de risco de transmissão intergeracional do transtorno bipolar, seria importante identificar características próprias do ambiente familiar com pais diagnosticados com transtorno bipolar e relacionar tais características aos desfechos dos filhos.
Recentemente, diversos grupos de pesquisadores revisaram as características do ambiente familiar de pessoas com transtorno bipolar, mas não usaram procedimento sistemáticos para avaliar a literatura. O objetivo deste estudo foi realizar uma revisão sistemática dos estudos não experimentais de pais com transtorno bipolar, ambiente familiar e doença psiquiátrica dos filhos em famílias com ou sem pais com transtorno bipolar.
Foram incluídos 13 estudos. O achado mais consistente foi uma baixa coesão entre pais com transtorno bipolar. O ambiente familiar não se diferenciou entre famílias com pais com ou sem transtorno bipolar. Não houve diferença no ambiente familiar entre famílias com pais com transtorno bipolar e outras doenças psiquiátricas. Filhos de pais com transtorno bipolar têm maior prevalência de doenças psiquiátricas, quando comparados com filhos de pais sem doenças psiquiátricas. Já famílias com crianças com transtorno bipolar apresentam maior nível de conflito que famílias com crianças sem transtorno bipolar.
Para lembrar:
O transtorno bipolar é uma doença complexa que muitas vezes atinge não apenas o paciente, mas também as pessoas próximas a ele, podendo alterar principalmente as relações familiares. A terapia de casal e de família se apresenta como um instrumento essencial em casos de alta complexidade.
Testes diagnósticos e procedimentos terapêuticos anteriores a morte por doença cardiovascular em pacientes com doença psiquiátrica grave
Indivíduos com esquizofrenia ou transtorno bipolar, consideradas como doenças psiquiátricas graves, apresentam maior prevalência de fatores de risco de doença cardiovascular, uma morbidade cardiovascular maior e uma mortalidade aumentada por doenças cardiovasculares em comparação com a população em geral.
Metanálises reportam um monitoramento metabólico menor em indivíduos com doenças psiquiátricas graves e menor índice de tratamento da hipertensão arterial. Estes dados também foram achados em países com acesso universal a saúde. Recentes estudos mostram que pacientes, com ou sem doença psiquiátrica grave, têm o mesmo acesso a tratamento após infarto agudo do miocárdio (IAM). Com relação a indivíduos jovens, verifica-se uma taxa maior de prescrição de estatinas e revascularização para pacientes com doença psiquiátrica grave, quando comparados a controles.
Estudos anteriores mostraram uso menor, igual e maior de testes relacionados com doença cardiovascular em atendimento primário entre indivíduos com doença psiquiátrica grave. Com a exceção de tratamentos após IAM, poucos estudos avaliaram exames e tratamentos para doença cardiovascular realizados em centros especializados por pacientes com doença psiquiátrica grave. Este é o primeiro estudo que avalia a prevalência de testes diagnósticos e tratamento invasivo para doença cardiovascular em pacientes com esquizofrenia e transtorno bipolar.
Participaram do estudo 72.385 indivíduos os quais faleceram por doenças cardiovasculares, dos quais 1.487 foram diagnosticados com doença psiquiátrica grave. Foi aplicada a regressão log-binomial para estudar o impacto da doença psiquiátrica grave na captação de testes diagnósticos cardiovasculares.
Pacientes com ou sem doença psiquiátrica grave apresentaram prevalências similares de testes diagnósticos em serviços primários, mas pacientes esquizofrênicos tiveram prevalências menores de exames cardiovasculares (RP = 0,78; intervalo de confiança, IC, de 95% de 0,73 a 0,85). Pacientes com doença psiquiátrica grave tiveram menor prevalência de tratamento invasivo cardiovascular (esquizofrenia: RP = 0,58; IC 95% de 0,49 a 0,70). Já os pacientes com transtorno bipolar apresentaram RP = 0,78; IC 95% de 0,66 a 0,92.
Para lembrar:
Este estudo mostra a importância de orientar pacientes com doença psiquiátrica grave mais atentamente sobre o diagnóstico e o tratamento de doenças cardiovasculares. Pacientes com doenças psiquiátricas graves, como esquizofrenia, podem ser mais negligentes com a própria saúde em geral. É dever do médico assistente, seja ele psiquiatra ou não, conduzir estes pacientes para exames de rotina para que seja possível detectar outras doenças graves.
Artigo publicado no Medscape em 01 de junho de 2020
Neurobiologia dos transtornos psiquiátricos
Entender como os medicamentos psiquiátricos agem e em quais proteínas e receptores eles atuam pode ser o diferencial no tratamento do paciente. Por exemplo, quando dizemos a um paciente que determinado fármaco vai começar a agir dentro de um certo prazo, enquanto outros apresentarão resposta quase imediata, existe uma explicação neurofisiológica e neuroanatômica por trás disso. Assim, a psicofarmacologia é central no raciocínio para a prescrição de psicofármacos.
Como todos sabem, existem dois grandes grupos de neurotransmissores: as monoaminas (como são conhecidas a serotonina, a norepinefrina e a dopamina), que estão distribuídas majoritariamente no mesencéfalo; e os agentes inibitórios, como o ácido gama-aminobutírico (GABA, sigla do inglês, Gamma-AminoButyric Acid) e os excitatórios, como o glutamato, que estão distribuídos pelo neocórtex.
Neuroanatomia do sistema monoaminase
A dopamina, a serotonina e a norepinefrina são originadas nos núcleos do mesencéfalo e transmitidas tanto para o sistema límbico como para o lobo frontal. A dopamina é produzida em células nos núcleos da substância negra e da área tegmental ventral (ATV). As projeções nigroestriatais são limitadas até os gânglios da base e, portanto, afetam os movimentos involuntários, que estão envolvidos com os sintomas extrapiramidais. A ATV se junta ao feixe mediano do prosencéfalo e é distribuída para estruturas do sistema límbico – amigdala, lobo temporal e lobo frontal. A norepinefrina é produzida em células que os núcleos estão localizados no locus cœruleus (LC), na parte superior do mesencéfalo. As projeções do LC se juntam ao feixe mediano do prosencéfalo e são distribuídas para o sistema límbico.
A serotonina é produzida em células cujos núcleos estão na parte mediana do núcleo da rafe da parte inferior do mesencéfalo. As projeções da rafe vão em duas direções: as superiores juntam-se ao feixe mediano do prosencéfalo e são distribuídas para estruturas do sistema límbico e as projeções inferiores se estendem para a substância gelatinosa da espinha dorsal, onde há uma mediação de resposta a dor.
Uma importante observação é que o feixe mediano do prosencéfalo leva os três principais neurotransmissores do sistema monoaminase até as regiões límbicas e frontais. As monoaminas se conectam no feixe mediano do prosencéfalo antes de chegar ao seu destino, que é o sistema límbico. Consequentemente, é impossível afetar uma das monoaminas sem atingir as outras. Se o LC for estimulado, os neurônios noradrenérgicos vão se comunicar com os neurônios serotoninérgicos no feixe mediano do prosencéfalo, causando alterações na atividade serotoninérgica, e vice-versa.
Assim, podemos entender que não existe um verdadeiro inibidor "seletivo" da recaptação da serotonina, mas sim inibidores que atuam também na recaptação da serotonina.
Neuroanatomia do neocórtex: GABA e glutamato
O GABA e o glutamato são produzidos em pequenos núcleos por todo o neocórtex em todas as regiões (frontal, temporal, parietal e occipital), e afetam funções cognitivas, assim como atividades motoras e sensoriais. Onde existe GABA, existe glutamato e vice-versa. O GABA inibe a neurotransmissão, o glutamato a eleva. Ambos se contrabalançam e se mantêm em homeostase. Uma grande atividade de glutamato leva a morte neuronal. Um aumento da atividade GABA leva a dormência e falta de funcionalidade. O GABA e o glutamato são, de longe, os neurotransmissores mais comuns no cérebro, sendo muito mais prevalentes que as monoaminases. O GABA atua por meio de seus próprios receptores, os quais estão conectados aos canais de cloro, e quando estimulado ocorre a abertura desses canais. O glutamato é mediado pelo receptores N-metil D-aspartato (NMDA), sem o mecanismo de canal de íon. Os canais de íons produzem efeitos imediatos, enquanto receptores proteicos têm efeitos retardados.
Por isso, os receptores GABA, como os benzodiazepínicos, produzem efeito ansiolítico imediato, enquanto medicamentos que afetam o glutamato tendem a precisar de dias para que os efeitos iniciais sejam percebidos.
Outros neurotransmissores
Existem outros neurotransmissores no cérebro além da dopamina, da serotonina, da norepinefrina, do glutamato e do GABA, no entanto, atualmente não existem drogas que os afetem, mas, ainda assim, eles são relevantes para o entendimento da neurobiologia relacionada com a prática clínica. Os neurotransmissores que serão discutidos são a acetilcolina, a histamina, os esteroides, os opiáceos e o oxido nítrico.
A acetilcolina é produzida em células no núcleo accumbens, na base do prosencéfalo, e se projetam em duas direções: superior para os lobos temporais e inferior para os gânglios da base. A projeção inferior está envolvida com movimentos involuntários, interagindo com as projeções dopaminérgicas nigroestriatais para influenciar as funções extrapiramidais. Em geral, a estimulação da acetilcolina diminui efeitos clínicos extrapiramidais. A projeção superior parece afetar a função cognitiva, sendo que o bloqueio da acetilcolina está associado a prejuízo da memória e confusão.
A histamina é difusamente produzida no neocórtex, e suas ações são mediadas pelos receptores H1. A estimulação histaminérgica parece produzir efeitos cognitivos na redução da ansiedade clínica. Os receptores histaminérgicos não estão ligados aos canais de íon, portanto, seus efeitos são demorados, em vez de apresentar efeitos imediatos, como os benzodiazepínicos. Existem algumas evidências de que os receptores H1 aumentam o apetite.
Esteroides são produzidos por glândulas, principalmente a tireoide e a adrenal, e chegam ao cérebro pela corrente sanguínea periférica. Os esteroides são pequenas moléculas que se difundem diretamente para os neurônios e entram em seus núcleos para produzir mudanças genéticas na transcrição, sem nenhuma mediação por receptores ou segundo mensageiro. No entanto, seus efeitos não são imediatos, via canais de íon, mas são bastante extensos e rápidos.
Os opiáceos são produzidos por neurônios e estimulam receptores opiáceos específicos, especialmente na medula espinhal e no sistema límbico, que reduz a sensibilidade à dor.
O óxido nítrico é um novo e único neurotransmissor, porque, diferentemente dos neurotransmissores mencionados, o óxido nítrico não é uma proteína e sim um gás. Ele se difunde entre as células sem nenhuma mediação de receptores afetando diretamente os segundos mensageiros. Seus efeitos ainda não são bem compreendidos, mas pesquisas mostram que o óxido nitroso pode trazer benefícios para pacientes com sintomas depressivos. Alguns inibidores da receptação da serotonina são potentes inibidores a síntese do óxido nítrico.
Estrutura farmacológica e biossíntese dos neurotransmissores
A biossíntese dos neurotransmissores ocorre dos aminoácidos provenientes da alimentação. É por isto que alguns profissionais naturalísticos recomendam o uso de aminoácidos como o triptofano, que é o precursor da serotonina, para o tratamento da depressão. Pesquisas mostram que a depleção de triptofano em curto prazo pode aumentar depressão. Estes efeitos parecem ser transitórios e possivelmente têm pouca repercussão em pacientes que têm a genética para a doença maníaco-depressiva. A doença, que é marcada pela recorrência de episódios, não seria detida por dietas com alto índice de triptofano.
Transmissão sináptica versus pós-sináptica
A questão mais importante – e que poucas vezes é abordada – é: O que ocorre dentro do neurônio? Os efeitos dos segundos mensageiros provavelmente são mais importantes para a resposta dos psicotrópicos em longo prazo. A neurotransmissão sináptica ocorre entre minutos e dias, para segundos mensageiros podem demorar de meses a anos. A neurotransmissão ocorre no seguinte transcurso: o axônio tem vesícula sináptica carregando neurotransmissores e estes são liberados dentro da sinapse. O axônio também contém mitocôndrias com monoamino oxidase presente para degradar os neurotransmissores em excesso. A bomba de recaptação do axônio também leva os neurotransmissores liberados para dentro da sinapse e, quando liberados, esses neurotransmissores podem estimular os autorreceptores no axônio, que têm um feedback negativo, reduzindo a produção e a liberação das vesículas na sinapse. Os dendritos têm receptores pós-sinápticos, os quais são os estágios finais do neurotransmissor.
Os receptores pós-sinápticos são tipicamente ligados às proteínas G. Quando os neurotransmissores estimulam os receptores pós-sinápticos, estes são afetados, podendo ser estimulados ou inibidos. Estes efeitos afetam outras proteínas nos dendritos, mandando mensagens secundárias e gerando assim um efeito cascata, trazendo mudanças no interior dos dendritos levando ao núcleo do neurônio pós-sináptico, onde ocorre alteração da transcrição genética.
Estas alterações genéticas produzem efeitos de longo prazo, desejados na neurotransmissão. A transcrição genética pode produzir novos brotos de axônios dentro de outros neurônios, produzindo sinapses que não existiam antes. Estes efeitos vão mudar a anatomia do cérebro em um nível microscópico. Isto é o que se entende por neuroplasticidade de longo prazo com agentes psicotrópicos, como por exemplo o lítio.
Farmacocinética
A farmacocinética trata de como os fármacos entram no corpo, são metabolizados, se movimentam e chegam ao sistema nervoso central, além de como são excretados e eliminados do corpo. A farmacocinética também trata das interações farmacológicas.
Os dois principais órgãos envolvidos são o fígado e o rim. O primeiro metaboliza e o segundo excreta as substâncias. No fígado a maioria do metabolismo é feito pelo sistema chamado P450.
Alguns psicotrópicos, como a fluoxetina e a paroxetina, bloqueiam parte do sistema P450 e outros induzem este sistema, como a carbamazepina e a fenitoína. Ao bloquear as enzimas P450 evita-se o metabolismo de algumas substâncias, aumentando o nível sérico no corpo. Induzir as enzimas P450 potencializa o metabolismo de alguns medicamentos, diminuindo o nível sérico sanguíneo. Quando o fármaco é metabolizado no fígado, ele passa para a corrente sanguínea, chegando aos órgãos-alvo, e finaliza seu trajeto no rim, onde é excretado na urina. A função do rim é afetada pela idade, diminuindo a sua capacidade de excreção em aproximadamente 1% por ano.
Outros dois aspectos importantes da farmacocinética são a barreira hematoencefálica e a ligação dos fármacos com as proteínas plasmáticas. A barreira hematoencefálica consiste em uma série de bombas de proteína na interface da dura-máter do cérebro e da medula espinhal. As bombas de proteína trabalham para manter a química interna do líquido cefalorraquidiano (LCR) estável e consistente. A questão mais relevante a este respeito é que, com o envelhecimento, a barreira hematoencefálica se torna mais porosa. Idosos têm menos bombas de proteína ativas e, com isso, mais droga entra no LCR.
A albumina, que é uma proteína plasmática, está presente na corrente sanguínea e se liga a algumas substâncias. Os níveis de albumina são afetados pela nutrição, e podem interferir na ação dos medicamentos.
Imediatamente após a administração de algum medicamento ocorre um pico de efeito e então começa o processo de degradação, assim que a substância entra na corrente sanguínea, sendo metabolizada, excretada ou chegando aos órgãos-alvo. A meia-vida da droga é definida quando 50% da dose inicial permanece na corrente sanguínea. A estabilidade dos níveis séricos normalmente necessita de 3-5 meias-vidas (ou seja, de dois a quatro dias para a maioria dos psicotrópicos). A estabilidade de uma droga é algo desejado na prática clínica, mas a necessidade ainda é pouco provada para quase todas as condições, com exceção da epilepsia, por exemplo.
Os psicotrópicos exercem a maioria dos seus efeitos em nível pós-sináptico, o que significa efeitos em semanas ou meses (e não sináptico, que seria em horas ou dias). Os efeitos pós-sinápticos são lentos, por causa da cascata de segundos mensageiros, seguida por transcrição genética e mudanças axonais. Assim, flutuações dos níveis sanguíneos não são tão importantes. Uma exceção são os benzodiazepínicos, pois têm ação sináptica e imediata mediadas por canais de íons. Neste caso, alterações do nível sanguíneo podem ser percebidas clinicamente.
Tolerância e sensibilização
O uso recorrente dos fármacos pode alterar seus efeitos. Existem duas alterações possíveis: tolerância ou sensibilização, e ambas podem ser um problema. Com a tolerância, o uso recorrente ocasiona um efeito menor do que o esperado, fazendo com que muitas vezes o paciente precise de doses maiores para atingir o efeito inicial. Com a sensibilização, o efeito do medicamento é potencializado, aumentando a possibilidade de efeitos colaterais.
Um exemplo de tolerância é a redução do efeito dos benzodiazepínicos na ansiedade, e um exemplo de sensibilização é a discinesia tardia com o uso prolongado de antipsicóticos.
É importante fazer a distinção entre a tolerância farmacológica e a tolerância clínica. Um bom exemplo de tolerância clínica é o que ocorre com uso de antidepressivos e depressão recorrente. Os antidepressivos têm efeitos de curto prazo, tratando episódios agudos, mas provavelmente não têm efeitos de longo prazo, não sendo efetivos para a prevenção de futuros episódios. Se o médico trata o episódio agudo e persiste com o uso em logo prazo, observa, muitas vezes, a recorrência. Este episódio é chamado erroneamente de tolerância. O que isto significa é que a droga apenas age agudamente e não é eficaz na manutenção.
Geralmente, a frequência da dose está relacionada com a meia-vida, se a meia-vida for de 12 a 24 horas. Então a medicação pode ser dosada uma vez ao dia (6 a 12 horas), duas vezes, e assim por diante. Na maioria das vezes a ideia é tentar fazer com que os pacientes tomem os medicamentos uma vez ao dia, em benefício da adesão ao tratamento.
Artigo publicado no Medscape em 21 de maio de 2020
Um perfil dos estudantes de medicina que tentam suicídio
Quem seriam os estudantes de medicina que tentam suicídio?
Suicídio é uma das principais causas de morte no mundo e, ao contrário de outras doenças, as taxas de mortalidade por suicídio não diminuíram nas duas últimas décadas. Em 2017, cerca de 800.000 pessoas tiraram a própria vida.
Um recente estudo norte-americano detectou prevalência de 11% entre estudantes de medicina, o dobro da população em geral de 18 a 29 anos. Já um estudo chinês identificou prevalência de 4,3%. Assim, de acordo com um estudo realizado em 17 países, existe um indicativo de que estudantes de medicina de diversas etnias apresentam uma elevada taxa de tentativa de suicídio, em comparação com a população em geral, que é de 2,7%.
Existem vários fatores relacionados com o aumento do risco de doença psiquiátrica entre estudantes de medicina, como ambiente altamente estressante, alta competitividade, privação de sono, entre outros, que podem ser fatores afetivos e/ou acadêmicos. É importante mencionar que o impacto dos problemas psiquiátricos entre estudantes de medicina não apenas afeta a desenvoltura acadêmica, mas também aumenta a desistência e reduz a desenvoltura profissional, além de aumentar as comorbidades, como uso de álcool e abuso de substâncias.
O objetivo deste estudo foi identificar fatores associados a tentativa de suicídio entre estudantes de medicina. Foi usada uma pesquisa transversal on-line com estudantes de medicina brasileiros que incluiu 4.840 participantes no total. Destes, 432 tentaram suicídio, sendo que 80% eram mulheres. A média de idade dos estudantes era de 21,6 anos. Foi usada a regressão Poisson para identificar os fatores de risco.
Os fatores de risco associados a tentativa de suicídio foram os seguintes: estudantes do sexo feminino têm um risco aumentado de 64% (PR = 1,64; intervalo de confiança, IC, de 95% de 1,29 a 2,08), homossexualidade (PR = 2,93; IC 95% de 2,19 a 3,91) e ter baixa renda aumenta em 67% (PR = 1,67; IC 95% de 1,28 a 2,18). Sofrer bullying também foi um fator de risco aumentando em 32% (PR = 1,32; IC 95% de 1,08 a 1,60). Trauma na infância aumentou em quase 40% a chance de tentativa de suicídio (PR = 1,39; IC 95% de 1,14 a 1,72). Já ideação suicida, no mês anterior a aplicação do questionário, aumentou em duas vezes o risco de tentativa de suicídio.
Para lembrar:
Este é um estudo importante, pois apresenta dados relevantes sobre a população de estudantes de medicina no Brasil. Coordenadores de cursos de medicina, diretores de hospitais universitários, professores e colegas devem sempre estar alertas aos sinais de ideação suicida entre os alunos. É imprescindível que as instituições formulem planos estratégicos de prevenção, e forneçam canais de ajuda de fácil acesso aos estudantes, sempre preservando a privacidade e garantindo o anonimato dos alunos.
Associação entre legalização do uso da Cannabis e transtornos relacionados ao uso de Cannabis nos Estados Unidos entre 2008 e 2016
Aproximadamente 183 milhões de pessoas, ou 3,8% da população mundial, fazem uso de Cannabis atualmente. O uso pesado e de longo prazo foi associado a desemprego, aumento dos acidentes automobilísticos e declínio social. Nos Estados Unidos, 33 estados e o distrito federal promulgaram a legalização do uso medicinal de Cannabis. Além disso, 11 estados e o Distrito Federal liberaram o uso recreativo de Cannabis. Estas medidas reduziram a inequidade de raça/etnia entre as prisões relacionadas com a Cannabis. Por outro lado, surgiram questões sobre o impacto que a legalização da Cannabis pode trazer do ponto de vista psiquiátrico. Estudos anteriores não detectaram associação entre a legalização do uso medicinal de Cannabis e a incidência de o uso entre adolescentes. No entanto, verificou-se um aumento no mês anterior ao da liberação do uso de Cannabis para adultos. Achados associados à legalização do uso medicinal possivelmente não se aplicam aos associados à legalização do uso recreativo, que pode apresentar impactos muito mais profundos, em diversos aspectos.
Pouco se sabe sobre o impacto da legalização do uso recreativo da Cannabis e como isto difere da legalização do uso medicinal. Um estudo norte-americano identificou aumento do consumo de Cannabis no mês anterior à legalização do uso recreativo no estado de Washington, mas não no Colorado.
Neste estudo foram comparados dados dos meses anterior e posterior à liberação do uso recreativo de Cannabis, relacionando usuários frequentes a pacientes com transtorno psiquiátrico decorrente do uso de Cannabis, além de pacientes esporádicos.
A amostra foi composta de adolescentes (de 12 a 17 anos), jovens adultos (de 18 a 25 anos) e adultos (26 anos ou mais) usando dados de 2008 a 2016. Os pesquisadores usaram dados transversais provenientes da pesquisa nacional sobre drogas e saúde conduzida nos Estados Unidos. O estudo incluiu 505.796 participantes, dentre os quais, 51,51% eram do sexo feminino, 77,24% tinham mais de 26 anos e 66,43% eram caucasianos. Entre os participantes de 12 a 17 anos de idade, no ano anterior o transtorno relacionado ao uso de maconha aumentou de 2,18% para 2,72% após a liberação do uso recreativo de Cannabis; um aumento 25% maior quando comparado aos estados norte-americanos que não legalizaram o uso recreativo da substância. Não houve correlação entre os participantes de 18 a 25 anos. Entre aqueles com 26 anos ou mais, o uso de Cannabis aumentou de 5,65% para 7,10%. Nesta mesma faixa etária, usuários frequentes aumentaram de 2,13% para 2,62% e o aumento de participantes com transtorno psiquiátrico decorrentes do uso de Cannabis foi de 0,90% para 1,23% (razão de chances ou odds ratio, OR, de 1,36; intervalo de confiança, IC, de 95% de 1,08 a 1,71).
Para lembrar:
É importante entender que a legalização da Cannabis nem sempre traz benefícios, principalmente quando se refere a adolescentes e adultos jovens. A Cannabis pode estar relacionada com a precipitação de quadros psicóticos, que muitas vezes podem se tornar crônicos. Entretanto é importante que médicos e a sociedade possam discutir a legalização do uso medicinal de Cannabis, sempre levando em consideração a ciência.
Efeitos sazonais e de temperatura na concentração sérica de lítio
O lítio continua sendo o padrão ouro para o tratamento do transtorno bipolar. O medicamento também é usado para o tratamento do transtorno esquizoafetivo e da depressão recorrente. O lítio apresenta um estreito intervalo de nível sérico, de 0,8 mmol/L a 1,2 mmol/L nos episódios agudos e de 0,5 mmol/L a 0,8 mmol/L na fase de manutenção. O principal fator de toxicidade é a desidratação. Alguns estudos demonstraram uma relação entre altas temperaturas, elevados níveis séricos de lítio e aumento da incidência de intoxicação. Altas temperaturas podem mudar a distribuição sanguínea e hidroeletrolítica, além de alterar a farmacocinética do lítio, incluindo absorção, distribuição e eliminação. A eliminação renal do lítio pode ficar diminuída durante a desidratação pela alteração da homeostasia de fluidos, que pode diminuir o fluxo sanguíneo renal.
Este estudo teve como objetivo determinar a relação entre temperatura do ambiente, meses, estações e concentração sérica de lítio em pacientes de Sydney, na Austrália.
Foram analisados dados retrospectivos de todos os pacientes que tiveram níveis séricos de lítio internados nos hospitais de Prince of Wales e Sutherland Hospitals entre 2008 e 2018. A temperatura foi verificada através do serviço de meteorologia. Foram examinadas a correlação entre as concentrações de lítio, as cinco temperaturas máximas anteriores, meses e estações. Também foi feita uma análise longitudinal do efeito da temperatura e estações entre pacientes que apresentavam níveis séricos repetidos.
No total, foram analisadas 11.912 concentrações séricas de lítio provenientes de 2.493 pacientes. Não houve associação significativa entre as concentrações séricas de lítio e altas temperaturas. Não houve, também, variação sazonal e de meses nos pacientes analisados longitudinalmente.
Para lembrar:
Este estudo mostra que, na maioria das vezes, não é o nível sérico de lítio que é alterado por fatores como clima e temperatura, e o que pode levar à intoxicação é a desidratação. Os médicos devem sempre lembrar que os níveis séricos para pacientes idosos devem ficar entre 0,4 mmol/L e 0,7 mmol/L, e a hidratação deve ser sempre uma das boas maneiras de se manejar lítio, principalmente em idosos.
Artigo publicado no Medscape em 05 de maio de 2020
Mundo em quarentena: como manter a saúde mental?
No quinto episódio da terceira temporada eu converso com o Dr. Sivan Mauer, psiquiatra, advisor do Medscape em português, sobre a saúde da mente em tempos de pandemia de Covid-19 e isolamento social.
O Dr. Sivan ressalta o ineditismo dessa situação para a população, que está tendo de lidar com o medo de se infectar, ou de ter alguém da família infectado, e ao mesmo tempo precisando lidar com os aspectos práticos da rotina, como alimentação, manutenção da casa, e em muitos casos, um grande volume de trabalho – remoto ou essencial, nas ruas.
Quais mecanismos temos para nos protegermos? Como preparar a casa e a vida nesse tempo de quarentena? O Dr. Sivan orienta sobre como lidar com a frustação pela profunda alteração da rotina, e dá dicas de como lidar com a saudade e outras faltas que certamente existirão.
Parte importante da conversa é dedicada ao médico que está na linha de frente, e deixa a família em casa para encarar vários pacientes com uma doença infecciosa grave. Além das medidas de proteção e da informação sobre como proteger os próprios familiares, o Dr. Sivan ressalta a importância de tentar manter momentos de descompressão e de relaxamento, seja por meio de meditação ou de exercícios físicos. O psiquiatra também chama atenção para a necessidade das estruturas de suporte para os profissionais atuando no enfrentamento da pandemia e também para quem sofre mais com a solidão e o isolamento.
Impacto psicológico da quarentena: uma breve revisão das evidências
Foi publicada em fevereiro uma breve revisão das evidências sobre as questões psicológicas e ou psiquiátricas causadas pelo período de quarentena, que muitos países já estão adotando e outros, como o Brasil, ainda terão de adotar.
De 3.166 artigos encontrados, 24 foram incluídos na revisão, sendo que a maioria eram estudos transversais. As pesquisas foram realizadas em 10 países e os pacientes incluídos tinham as seguintes doenças: síndrome respiratória aguda grave (SARS, sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome), Ebola, influenza A (H1N1), síndrome respiratória do oriente médio (MERS, sigla do inglês, Middle East Respiratory Syndrome) e influenza equina. Ainda foi incluído um estudo associando H1N1 e SARS.
A maioria dos estressores foi: duração da quarentena, medo da infecção, frustração, tédio, falta de suprimentos, falta de informação, perdas financeiras e estigma.
Quarentena é a separação e restrição do trânsito de pessoas que possam ter sido expostas a alguma doença contagiosa, a fim de verificar se elas ficam sintomáticas, diminuindo assim o risco de transmissão para outras pessoas. A definição de quarentena é diferente da de isolamento, que consiste na separação de pacientes que foram diagnosticados com alguma doença contagiosa das pessoas que não apresentam a doença, mas, na prática, os dois termos são usados quase como sinônimos.
A palavra quarentena foi usada pela primeira vez em Veneza, em 1.127, para isolar pacientes com hanseníase, e foi amplamente utilizada durante a peste negra. Recentemente o termo voltou a ser utilizado na China em relação à Covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019), quando cidades inteiras foram colocadas nesta condição. Essa não é a primeira vez que vilarejos ou cidades inteiras são colocadas em quarentena; em 2003, algumas áreas na China e no Canadá entraram em quarentena em função da síndrome respiratória aguda grave (SARS, sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome), além de vilarejos inteiros na África durante o surto de Ebola.
A quarentena normalmente é uma experiência desagradável, pois existe separação de parentes, perda da liberdade, incerteza sobre a doença e tédio, que pode causar situações difíceis.
Preditores pré-quarentena de impacto psicológico
Há uma discussão na comunidade científica sobre se características particulares e demográficas poderiam ser preditores de impacto psicológico na quarentena. Um estudo sobre o surto de influenza equina identificou que mulheres jovens (de 16 a 24 anos), com baixo grau de instrução e com filhos foram associadas a sofrerem um impacto negativo da quarentena. Profissionais da saúde apresentaram sintomas mais intensos de ansiedade, raiva, medo, frustração, culpa e tristeza, além de mais medo de infectar outras pessoas.
Estressores durante a quarentena
Duração da quarentena
Estudos mostram que quanto mais longa a quarentena, maior o impacto na saúde mental, causando principalmente sintomas de raiva, ansiedade e esquiva.
Medo da infecção
Pelo menos oito estudos mostraram que as pessoas em quarentena apresentaram temor pela própria saúde ou de infectar os outros. Um estudo mostrou que gestantes e famílias com filhos pequenos representam uma grande parcela da população que tem medo da infecção.
Frustração e tédio
O confinamento, a perda da rotina e a redução do contato físico e social com outras pessoas frequentemente causam tédio, frustração e sensação de isolamento do resto do mundo. Estes sentimentos podem causar angústia a quem está de quarentena. A frustração aumenta diante da impossibilidade de realizar as atividades do dia a dia, como fazer as próprias compras de necessidades básicas ou interagir socialmente.
Inadequação de suprimentos
A inadequação de suprimentos como água, comida, roupas ou acomodação durante a quarentena é uma fonte de frustração, e tem sido associada à ansiedade e raiva. Estes sentimentos podem durar por volta de quatro a seis meses após o término da quarentena. Além disto, a falta de acesso a atendimento médico regular e prescrições médicas também é um problema para as pessoas em quarentena.
Falta de informação
Muitas pessoas que ficaram em quarentena citaram que a falta de informações do poder público é um estressor, referindo insuficiência de orientações sobre ações e o propósito da quarentena. Participantes relataram uma falta de transparência das autoridades sobre a gravidade da pandemia.
Estressores após a quarentena
Finanças
Perdas financeiras podem ser um problema durante a quarentena, pois muitas pessoas não podem trabalhar e são pegas de surpresa neste momento, não podendo se organizar financeiramente. Estudos mostram que perdas financeiras causam angústia e são fatores de risco de sintomas psiquiátricos como ansiedade e raiva, podendo perdurar mesmo após o fim da quarentena. Um estudo com pessoas em quarentena durante o surto de Ebola concluiu que, mesmo recebendo auxílio financeiro, a ajuda foi insuficiente e chegou tarde demais. Outro estudo mostrou que pessoas mais pobres acabam sendo mais prejudicadas nestes períodos.
Estigma
O estigma em relação a outras pessoas foi o tema mais recorrente na literatura, persistindo por um bom tempo após a quarentena. Em uma comparação entre profissionais da saúde que ficaram em quarentena e aqueles que não ficaram, os primeiros relataram maior sensação de estigmatização e rejeição de pessoas nos bairros onde viviam. Participantes de estudos relataram que eram tratados de maneira diferente por outros, sendo temidos por alguns, além receberem comentários críticos. Diversos profissionais de saúde envolvidos no surto de Ebola, no Senegal, relatam que durante a quarentena suas famílias os pressionaram a abandonar seus empregos por serem muito arriscados, criando tensão dentro de casa.
Educar as pessoas sobre as doenças, além de explicar os fundamentos da necessidade de quarentena, pode diminuir o estigma. A mídia deve tomar os devidos cuidados ao relatar as notícias para o público em geral. É importante que as autoridades de saúde pública forneçam informações rápidas e claras para a população.
O que se pode fazer para atenuar as consequências da quarentena?
Os autores da revisão estipulam alguns fatores que podem reduzir as consequências da quarentena.
Fazer com que a quarentena seja o mais breve possível
As quarentenas mais longas estão associadas a desfechos psíquicos mais negativos. Deve-se tentar restringir a duração ao menor tempo possível, respeitando as evidências científicas. Entende-se que, para pessoas que já estão em quarentena, a decisão de estender ainda mais o período de isolamento pode causar ainda mais frustação e sensação de desmoralização. Quarentenas impostas a cidades inteiras, como ocorreu na China e Itália, podem ser ainda mais prejudiciais para a saúde mental.
Fornecer o máximo de informações para a população
Pessoas em quarentena normalmente têm medo de infectar outras pessoas ou de ser infectadas por elas. Muitas vezes as pessoas confinadas têm avaliações catastróficas dos sentimentos experimentados durante a quarentena. Os autores pontuaram que é fundamental que as pessoas submetidas ao confinamento tenham um bom entendimento sobre a doença em questão e as razões para a quarentena.
Fornecer suprimentos adequados
As autoridades devem assegurar que as pessoas em quarentena tenham acesso a suprimentos de necessidade básica. As coordenadas dever ser feitas antes do início da quarentena, para que estes suprimentos não faltem.
Reduzir o tédio e melhorar a comunicação
O tédio e o isolamento causam angústia e sofrimento. Pessoas em quarentena devem ser orientadas, e medidas objetivas devem ser repassadas para que elas tenham mais condições de lidar com o estresse da situação. É essencial acionar amigos e familiares remotamente. Um estudo mostrou que disponibilizar uma linha direta com psiquiatras e outros profissionais de saúde mental especificamente para as pessoas em quarentena diminui o senso de isolamento. É importante que as empresas provedoras de internet se preparem para a sobrecarga de seus sistemas, e que ofereçam velocidade mais alta para os lugares em quarentena. É importante também disponibilizar linhas diretas com profissionais de saúde que possam dar informações sobre o que fazer e para onde se dirigir em caso de contaminação.
Profissionais de saúde merecem atenção especial
Os profissionais de saúde geralmente estão em quarentena e esta revisão sugere que, assim como a população em geral, eles sofrem efeitos negativos. Os profissionais de saúde acabam sentindo-se culpados por abandonar seus postos de trabalho e de causar uma sobrecarga aos seus colegas. É importante que estas pessoas tenham o suporte de seus colegas mais próximos.
A revisão tem algumas limitações. A mais importante é o fato de ter sido feita em pouco tempo, devido ao surto de Covid-19. A maioria dos estudos teve pequenas amostras, poucos estudos comparam participantes em quarentena com participantes que não estavam em quarentena.
Conclusão
No geral, esta revisão sugere que as consequências da quarentena são amplas e podem durar por um longo tempo. Diante desta conclusão, os autores não sugerem que a quarentena não deva ser aplicada, mas reforçam que, com a necessidade da quarentena, as autoridades devem tomar todas as medidas para que essa experiência seja mais tolerável para as pessoas.
Artigo publicado no Medscape em 23 de março de 2020
Estudo sueco avalia risco de pacientes psiquiátricos sofrerem ou cometerem atos de violência
Estudo sueco avalia risco de pacientes psiquiátricos sofrerem ou cometerem atos de violência
Indivíduos diagnosticados com doenças psiquiátricas podem vivenciar diversos desfechos adversos, como desemprego, falta de moradia e morte prematura. Além disso, em comparação com a população em geral, estes indivíduos têm mais contato com o sistema judiciário e mais risco de cometer atos violentos; no entanto, as evidências do aumento do risco desses pacientes serem vítimas de violência são limitadas.
Primeiramente, revisões sistemáticas relataram grandes, mas imprecisos, riscos relativos relacionados com a probabilidade de pacientes psiquiátricos serem vítimas de violência, em comparação com a população em geral. Estas revisões foram baseadas em estudos transversais com pequenas amostras e em estudos retrospectivos. No entanto, as pesquisas publicadas até então não excluíram a possibilidade de causa reversa nem controlaram para risco de violência pregressa.
Em segundo lugar, estudos com famílias e gêmeos têm mostrado que doenças psiquiátricas, crimes violentos e ser vítima de violência tem uma tendência a ocorrer em famílias, mas sua etiologia ainda é pouco conhecida. A literatura sugere que os estudos sobre agressividade em pacientes psiquiátricos são enviesados por causa do confundidor familiar.
Buscando preencher esta lacuna na literatura, foi conduzido um estudo populacional na Suécia entre janeiro de 1973 e dezembro de 1993 que permitiu a avaliação de potenciais associações entre a perpetração de violência e a vitimização de pacientes psiquiátricos – levando em conta os confundidores familiares.
No total, 250.419 pacientes psiquiátricos foram identificados a partir do registro nacional sueco. A exposição à violência foi avaliada desde o nascimento dos participantes. Os pacientes foram pareados por idade e sexo com a população em geral (2.504,190) e com seus irmãos biológicos sem diagnóstico de doença mental (194.788). A data de início foi definida como a liberação do primeiro episódio. Os participantes foram excluídos do estudo em caso de migração, morte ou desfecho de interesse.
Exposição à violência foi definida como: buscar por atendimento médico em algum serviço de saúde, ser submetido a internação hospitalar ou ter sido assassinado. Perpetração de violência foi definida como: cometer algum crime violento com dolo.
Foi usado o modelo de regressão de Cox na tentativa de eliminar confundidores sociodemográficos e familiares.
Entre os 250.419 pacientes, 55,4% eram mulheres, sendo que a média de idade ao receber o primeiro diagnóstico psiquiátrico variou de 20,0 anos para pacientes diagnosticados com transtorno por uso de álcool a 23,7 anos para pacientes com transtornos de ansiedade.
Em comparação com os controles sem doenças psiquiátricas, os pacientes psiquiátricos tiveram mais risco de sofrer e de cometer atos de violência. Nos modelos ajustados para confundidores, as pessoas com doenças psiquiátricas apresentaram risco 3,4 vezes maior de sofrer alguma violência do que seus irmãos sem diagnóstico psiquiátrico (intervalo de confiança, IC, de 95% de 3,2 a 3,6). Já o risco de cometer atos de violência foi de 4,2 (IC 95% de 3,9 a 4,4).
Para lembrar:
É importante ressaltar que este estudo não diferenciou os pacientes em episódios agudos ou em momentos crônicos da doença. É sabido que pacientes psiquiátricos em episódios agudos têm mais risco de cometer atos de violência do que quando estão estáveis.
Taxa de suicídios na Grécia antes e durante o período de austeridade estratificado por sexo e idade: Relações com desemprego e variáveis econômicas
Nos últimos anos tem sido debatido se o aumento da taxa de suicídios na população europeia está relacionado com a recessão econômica na região. Embora o comportamento suicida seja multifatorial, existe uma grande ênfase nos fatores socioeconômicos.
Vários fatores de risco de suicídio foram identificados e classificados como sendo primários, tal como a presença de doenças psiquiátricas, doenças graves e história de tentativa de suicídio. Fatores de risco secundários são: situações adversas da vida e fatores psicossociais. E fatores demográficos, como ser do sexo masculino e ter idade avançada, podem ser considerados como fatores de risco terciários.
Sabe-se que a presença de fatores de risco primário torna o risco de suicídio maior. Os fatores secundários e terciários só elevam o risco com a presença de um fator primário.
As variáveis econômicas são de suma importância, pois são fatores modificáveis.
Uma análise dos países europeus, especialmente da Grécia, identificou um aumento de mortes por suicídio. Em 2014 e 2015 a taxa de suicídios atingiu recordes históricos no país (mesmo ainda sendo baixa para a Europa); em comparação com a média registrada entre 2000 e 2010, o aumento de casos chegou a 51,7% entre os homens e 76,2% entre as mulheres. Em 2015, foi observada uma pequena diminuição de 5,4% entre homens e 6,8% entre mulheres, o que sugere uma estabilização da taxa de suicídios na Grécia.
A causa do aumento e da diminuição dos índices de suicídio ainda é motivo de debate, sendo que a situação econômica em geral pode ter sido um fator; no entanto, também foram observados padrões de aumento da taxa de suicídios na Alemanha, Noruega e Holanda.
Durante os anos de crise, a imprensa enfatizou a possível relação entre a crise econômica e o aumento da taxa de suicídios. Tanto na Europa como nos Estados Unidos o aumento do desemprego foi seguido de um aumento da taxa de suicídio.
O objetivo deste estudo foi entender o papel do desemprego e de outras variáveis econômicas, como produto interno bruto (PIB), inflação e PIB per capita, no aumento dos índices de suicídio específico por idade e gênero. Para isso, foram utilizados dados da autoridade grega de estatística, usando regressão linear e correção de Bonferroni para múltiplos testes.
Os resultados mostram 33% de aumento das mortes por suicídio durante o período de recessão na Grécia (de 2009 a 2015). Um terço dessas mortes pode ser diretamente atribuída ao desemprego, um terço a outros fatores associados à recessão, e o outro terço a fatores desconhecidos. O efeito do desemprego foi restrito a homens em começo de carreira (de 20 a 24 anos), meia-idade (de 45 a 49 anos e 55 a 59 anos).
Para lembrar:
Países que passam por momentos de grande crise econômica, como o Brasil, devem levar em consideração a possibilidade de aumento da taxa de suicídios. É importante que programas de assistência sejam estruturados e melhorados. Os canais de atendimento por telefone são uma forma de apoio que contribui para a prevenção, como o trabalho desempenhado pelo Centro de Valorização da Vida (CVV), que deve sempre ser divulgado.
Incidência e determinantes de uso de serviço de saúde mental após cirurgia bariátrica
A associação entre ganho ponderal em excesso e saúde mental é complexa e pode envolver fatores genéticos, hormonais, sociais e ambientais. A obesidade tem sido ligada a falta de satisfação corporal, baixa autoestima e depressão. Doenças psiquiátricas estão associadas ao início do ganho ponderal. Indivíduos com obesidade normalmente são estigmatizados, sofrem exclusão social e discriminação.
A cirurgia bariátrica foi concebida nos anos 50 e tornou-se muito comum nas duas últimas décadas. Estudos mostram que este tipo de cirurgia exacerba doenças psiquiátricas, especialmente automutilação e suicídio. No entanto, como esta relação se faz ainda é desconhecido.
A hipótese dos autores do estudo em pauta foi que a cirurgia bariátrica exacerbaria as comorbidades do paciente, resultando em um aumento da procura por atendimento psiquiátrico após a cirurgia, inclusive por aqueles sem diagnóstico prévio de doença psiquiátrica. O estudo avaliou a incidência e os fatores de risco de busca por serviços psiquiátricos após a cirurgia bariátrica. Para isso, foi feita uma estratificação de acordo com o tipo de doença psiquiátrica.
Foram utilizados dados do banco de dados da Austrália Ocidental, sendo a data index o momento da cirurgia. Os pacientes foram acompanhados por 10 anos. No total, 24.766 pacientes foram incluídos no estudo; a média de idade foi de 42,5 anos; e 77,3% eram mulheres.
O uso de ao menos um serviço psiquiátrico ocorreu em 16,1%. Destes, 35,2% buscaram atendimento antes da cirurgia; 25,8% antes e depois; e 39,0% apenas depois do procedimento. Houve um aumento na ocorrência de doenças psiquiátricas após a cirurgia bariátrica (uso de ambulatórios, RR = 2,3; IC 95%, de 2,3 a 2,4; uso de pronto-socorro, RR = 3,0; IC 95% de 2,8 a 3,2; e hospitalização, RR = 3,0; IC 95%, de 2,8 a 3,1. Houve um grande aumento na incidência de casos de automutilação (RR = 4,7; IC 95% de 3,8 a 5,7); e quase 10% de casos suicídio após a cirurgia.
Para lembrar:
É necessária uma avaliação psiquiátrica muito criteriosa antes da liberação de qualquer paciente para a cirurgia bariátrica. Nem todo paciente deve ou tem condições clínicas de se submeter a este tipo de intervenção. Lembrando que existem critérios muito bem estabelecidos, que às vezes não são seguidos, para que pacientes sejam submetidos à cirurgia bariátrica.
Artigo publicado no Medscape em 02 de fevereiro de 2020