Impacto dos fatores de risco vascular nos desfechos clínicos de idosos com depressão recebendo eletroconvulsoterapia

Episódios depressivos são comuns; com prevalência mundial em torno de 4,4%, são considerados um dos principais fatores que contribuem para a diminuição da qualidade da saúde do paciente.

O tratamento de primeira linha, que costuma ser realizado com inibidores seletivos da recaptação da serotonina, é moderadamente efetivo – apenas 30% dos pacientes atingem a remissão com uma terapia prescrita em dose e duração apropriadas. Além disso, em 50% dos casos, os sintomas persistem após o tratamento de segunda linha.

A depressão é um dos quadros psiquiátricos mais comuns na população idosa, e está associada a morbidade e mortalidade significativas, com perda de função, dependência e alta taxa de suicídio. Vários fatores contribuem para uma resposta ruim nesta população, como interação medicamentosa e baixa tolerância ao medicamento.

O uso da eletroconvulsoterapia (ECT) é comum no idoso, mas há uma grande variabilidade na resposta nesta população (55% a 92%). Estudos de imagem sugerem que alterações vasculares, como profunda hiperintensidade na substância branca ou atrofia cerebral, podem explicar esta heterogeneidade, mas os resultados ainda são inconsistentes. Nos idosos, a síndrome apática – definida como diminuição da motivação para atividades físicas, cognitivas ou emocionais –, pode estar associada a mau prognóstico e resposta ruim ao tratamento.

Poucos estudos foram desenhados para investigar a relação entre a resposta da ECT e os fatores de risco vascular em idosos. Um deles explorou o impacto dos fatores de risco vascular na resposta ao tratamento em pacientes idosos deprimidos. Comparando tratamentos farmacológicos com a ECT, foi constatado a superior eficácia da mesma. Não houve diferença clara entre pacientes com ou sem os fatores de risco vascular. No entanto, outro estudo demonstrou uma significante diferença no tratamento farmacológico de pacientes idosos com ou sem os fatores de risco vasculares, constatando uma pior resposta nos pacientes que apresentavam estes fatores de risco.

O objetivo deste estudo é comparar a taxa de resposta ao ECT em pacientes idosos com ou sem fatores de risco vasculares. A hipótese dos autores é que a presenças dos fatores de risco se traduzirá em uma resposta pior ao ECT. Como desfecho secundário será avaliado a relação da severidade dos danos vasculares cerebrais pelo escore de Framingham e melhora clínica.

Foram incluídos 52 pacientes (idade acima de 55 anos) com depressão, os quais foram tratados com ECT e separados em dois grupos de acordo com a presença de fatores de risco vasculares (N = 20) ou não (N = 32). O desfecho primário foi o numero de bons respondedores ao ECT em cada grupo (definido como uma diminuição de ao menos 50% na escala MADRS após ECT). Pacientes com os fatores de risco vasculares apresentaram uma resposta pior quando comparados aos pacientes sem estes fatores de risco (60% a 94%). A correlação entre os escores de Framigham e MARDS após ECT foi negativa.

Para lembrar:

É importante que pacientes acima de 50 anos que apresentem os quadros de humor (sejam quadros depressivos ou maníacos), façam uma avaliação para alterações vasculares através de exame de ressonância magnética. Este exame, além da história de comorbidades clínicas são decisivos para se entender o diagnóstico e o prognóstico do paciente.

Artigo publicado no Medscape em 10 de fevereiro de 2021


Erros médicos imponderáveis ou imprevisíveis: vítimas secundárias

Para além da imperícia, imprudência ou negligência, muitas vezes eventos imponderáveis, imprevisíveis ou primeiras ocorrências entram na definição de “erro médico”. Neste contexto, os profissionais de saúde envolvidos no atendimento que causou dano ao paciente são definidos como vítimas secundárias do evento. Em um produtivo debate, os advisors de cardiologia e psiquiatria do Medscape em português, Dr. Bruno Valdigem e Dr. Sivan Mauer, abordam o tema, trazendo definições e colocando o assunto em perspectiva para os nossos leitores.

Saiba mais em Medscape.


Temperamento afetivo e depressão maior em idosos

Relação entre temperamento afetivo e depressão maior em idosos: Um estudo caso-controle

Os temperamentos afetivos podem ser conceitualizados como parte do espectro das doenças afetivas. O conceito moderno de temperamento integra a visão que o psiquiatra alemão Dr. Emil Kraepelin tinha da doença maníaco-depressiva quando definiu que a recorrência de transtornos afetivos surgia de sintomas duradouros de depressão, ciclotimia e mania.

Os três principais tipos de temperamento afetivo são:

  • Hipertimia: Sujeitos que apresentam nível de energia aumentado, menos necessidade de sono, libido aumentada, são mais sociáveis e mais suscetíveis a abuso de álcool e drogas.
  • Distimia: Sujeitos com sintomas depressivos leves como parte de sua personalidade, tendo como características baixo nível de energia, necessidade de horas de sono acima da média, libido diminuída, maior preocupação com falhas pessoais.
  • Ciclotimia: Sujeitos com constante alternância de sintomas leves de mania e depressão (diária ou por dias), que acabam não atendendo aos critérios temporais de síndromes afetivas completas, tendo como características labilidade de humor, raiva e irritabilidade. Além disso, podem apresentar dificuldades atencionais.

Os diferentes tipos de temperamento são constituídos com base nas disposições afetiva e comportamental, com forte origem genética. Estudos familiares identificaram uma alta prevalência de ciclotimia entre parentes de primeiro grau com transtorno bipolar tipo I.

Os temperamentos podem ser mensurados por meio do questionário preenchido pelo próprio paciente, TEMPS-A (Temperament Evaluation of Memphis Pisa Paris and San Diego Auto-questionnaire). A linha de corte costuma ser 75%, ou seja, 75% dos itens das subescalas devem ser confirmados.

O estudo caso-controle em tela comparou 50 sujeitos com 65 anos ou mais com diagnóstico de depressão maior a 100 controles. Os temperamentos foram avaliados usando o TEMPS-A. Para avaliar os sintomas de depressão e mania foram utilizadas as escalas Hamilton Depression Rating Scale (HDR) 17 e Young Mania Rating Scale (YMRS), respectivamente. Nesta amostra, 80% dos sujeitos apresentaram algum temperamento afetivo, mais comumente o hipertímico (67,3%). Entre os pacientes com depressão, 48% apresentaram critérios de temperamento hipertímico versus 77% dos controles (razão de chances ou odds ratio, OR, de 0,3; intervalo de confiança, IC, de 95% de 0,1 a 0,7). Com relação ao temperamento ciclotímico, 38,8% dos pacientes apresentaram critérios. Em relação aos controles, apenas 12% apresentaram critérios de ciclotimia (OR de 2,9; IC 95% de 1,1 a 7,2).

Para lembrar:

A análise do temperamento no tratamento dos pacientes com transtorno do humor é de extrema relevância e a melhor maneira fazê-la é usando o TEMPS-A, como realizado no estudo. A informação em relação ao temperamento não é apenas importante para o diagnóstico, mas também para o tratamento. O próprio estudo propõe que pacientes com depressão maior e temperamento ciclotímico podem responder melhor ao tratamento com estabilizadores do humor do que com antidepressivos.

Artigo publicado no Medscape em 28 de janeiro de 2020


Eletroconvulsoterapia: estigmas e resultados

Discussões sobre a saúde mental vêm se intensificando nos últimos meses no Brasil, e uma das grandes controvérsias é sobre o uso da eletroconvulsoterapia (ECT), método que existe há mais de 80 anos na psiquiatria.

A ECT nasceu definitivamente na Itália com dois psiquiatras, Ugo Cerletti e seu assistente Lucio Bini. Após definir parâmetros seguros de um estimulo elétrico por meio de estudos com animais, eles induziram pela primeira vez uma convulsão em um paciente psicótico em abril de 1938. Após 11 sessões o paciente teve alta. Em 1950, Dr. Cerletti faz a sua primeira publicação em inglês sobre a sua nova técnica de tratamento.

Até hoje a ECT é considerada a primeira grande intervenção terapêutica na psiquiatria, que até aquele dado momento só podia oferecer internamentos prolongados aos pacientes e esperar a história natural da doença dar conta dos episódios de humor ou psicóticos. Algumas hipóteses sobre os mecanismos de ação passam pela indução da alteração da plasticidade estrutural cerebral e estímulo da neurogênesis pela promoção da proliferação de células-tronco. A partir de 1952 foi descrito o uso do relaxante muscular succinilcolina junto com a anestesia em sessões de ECT, evitando a convulsão periférica, e assim muitos efeitos indesejados como fraturas de vértebras, sangramentos bucais e confusões pos-ictais. Hoje a grande maioria dos serviços que aplicam ECT realiza a técnica “modificada”, ou seja, com o uso de relaxante muscular. Poucos países ainda usam a técnica “não modificada”.

Quando devemos optar pelo uso da ECT? Apesar da robusta evidência científica o uso da ECT é avaliado com reservas que, muitas vezes, não podem ser explicadas racionalmente. A ECT se mantém estigmatizada pela falta de conhecimento e entendimento, além de ressalvas quanto a possíveis efeitos colaterais. Estudos científicos comprovam que pacientes com transtornos afetivos podem se beneficiar do tratamento com ECT. Uma metanálise mostrou resposta de 77,1% em episódios de depressão bipolar. Alguns estudos têm mostrado  fatores preditores para boa resposta, como no caso de episódios mistos, nos quais muitos pacientes acabam respondendo mal a medicações antipsicóticas em doses baixas e antidepressivos. Um exemplo é um estudo recente que incluiu 670 pacientes, sendo que os pacientes com agitação psicomotora apresentaram uma razão de chances (do inglês, odds ratio) de 4,43 (IC de 95%; 1,61-12,20), ou seja uma chance de boa resposta de mais de quatro vezes quando comparados aos pacientes que não apresentavam agitação.

Outra importante indicação da ECT é para pacientes com ideações suicidas que, mesmo com o uso de lítio, se mantêm intensas. Um estudo com 138 pacientes mostrou uma redução do sintoma após três sessões em 38,2% dos pacientes, após seis sessões em 61,1% dos pacientes, e em 80,9% após o fim do tratamento. Estes dados mostram o quanto importante é o tratamento com ECT para pacientes com ideação suicida, sendo que muitos, sem esta intervenção, podem não sobreviver à doença.

Com relação aos efeitos adversos da ECT, com o uso da técnica “modificada” a questão mais importante é em relação aos efeitos cognitivos. Uma revisão recente sugere que 60% dos pacientes relatam problemas de memória. Os efeitos cognitivos são determinados pelos parâmetros da ECT como: colocação dos eletrodos, dose da eletricidade, amplitude do pulso, frequência do tratamento e fatores individuais do paciente. Considerando a cognição não relacionada à memória, as pesquisas relatam alteração na velocidade de processamento apenas nos primeiros três dias. No entanto, com relação à função atencional não se verificou alteração neste período.

Com relação à memória anterógrada, estudos mostram alteração deste domínio desde o início das sessões de ECT, mas retornando aos parâmetros basais entre 4 e 14 dias após o término das aplicações. Os pacientes podem relatar queixas com relação à memória retrógrada, e normalmente está relacionada a perda da memória autobiográfica, ou seja, perda de memória relacionada a experiências do indivíduo. Este tipo de perda de memória depende dos parâmetros usados no tratamento com ECT. Estudos sugerem que há dois fatores de risco para se aumentar a chance deste tipo de efeito colateral: pacientes de sexo feminino e uso da técnica bilateral (independente do sexo).

Considerando a frequência do tratamento, a mais utilizada é a aplicação de ECT três vezes na semana. Esta escolha pode trazer uma resposta mais rápida para o paciente, porém pode acarretar mais efeitos colaterais cognitivos. Na maioria dos estudos apresentados, o número de sessões fica entre 8 e 10. Caso seja necessário um número maior de sessões, os efeitos cognitivos devem ser monitorados, usando o mini exame do estado mental ou outra ferramenta breve. A frequência ideal para avaliação seria após cada 2 a 3 sessões. A avaliação também deve ser realizada no período de 3 a 4 dias após o término do tratamento, para planejar o retorno do paciente a suas atividades. A ECT só é superior ao tratamento medicamentoso nos episódios agudos. Até o momento não está comprovada a superioridade da ECT em tratamentos de manutenção, baseados em estudos clínicos randomizados.

Os dois tratamentos mais antigos e com as evidências mais robustas são os que mais sofrem estigma nos dias de hoje: ECT e lítio. Este estigma levou ambos a serem menos prescritos com o passar do tempo. Com relação à ECT, que é o foco desta discussão, o estigma teve início durante a Segunda Guerra Mundial. Setenta e sete dias antes do início do conflito um importante jornal de psiquiatria alemão publicou um artigo sobre um método revolucionário para tratamento da esquizofrenia vindo de Roma. Infelizmente em 1944 um médico membro do partido nazista chamado Dr. Gelny, que recebeu seu título de psiquiatra após apenas três meses de treinamento na clinica Po¨tzl, iniciou o uso de ECT para executar prisioneiros vítimas de guerra, e para isso modificou a estrutura da máquina. [16] Este tipo de conduta foi utilizada apenas pelos nazistas e é algo sem precedentes nos mais de 80 anos de história da ECT.

O estigma em relação à ECT ganhou bastante força por meio da mídia, principalmente da televisão e do cinema. O historiador Edward Shorter escreveu no seu livro Shock Therapy que a ECT é perfeita para a dramatização cinematográfica. Uma revisão relata que a ECT, na maioria dos filmes, é usada como meio de tortura e controle comportamental. Nos programas de TV, a principal indicação seria para apagar a memória do personagem. Em 72% das cenas o uso da ECT é realizado sem consentimento e sem anestesia. A grande maioria dos filmes mostrou uma imagem errônea do processo da ECT (80,7%).

Algumas atitudes são necessárias para reduzir o estigma ao redor desta importante ferramenta para muitos pacientes. A primeira seria a mídia, englobando TV e cinema, começar a mostrar a técnica de forma honesta e não de maneira caricaturada. Além disto, uma pesquisa mostra que com a participação da família na sala de ECT o medo diminui em relação ao procedimento em 71% dos familiares. Destes, 86% consideraram ECT um tratamento benéfico.

Novas atitudes são muito importantes para que o estigma diminua em relação à ECT. A técnica é, possivelmente, a maior representação do preconceito com relação à psiquiatria e à doença mental, pois muitos médicos e psiquiatras preferem continuar com sua visão distorcida vinda da mídia a abraçar a robustez cientifica que existe por trás deste tratamento. É curioso que um tratamento também revolucionário usando a eletricidade para tratar a fibrilação atrial foi pela primeira vez relatado em 1959 na antiga União Soviética. Trata-se de um procedimento bem aceito e que nunca foi alvo de estigma. No Brasil  é importante lembrar que a ECT é um ato médico chancelado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) por meio da resolução 1.640/2002. A pergunta mais importante é se o estigma está dificultando o uso e a pesquisa para o aprimoramento da técnica de ECT. É urgente que a classe médica e as autoridades de saúde façam esta reflexão.

Artigo publicado no Medscape em 13 de janeiro de 2021


Os estudos mais relevantes na psiquiatria em 2020

advisor de psiquiatria do Medscape em português, Dr. Sivan Mauer seleciona e compartilha os principais estudos publicados em sua área ao longo de 2020. O médico destaca trabalhos que abordaram questões como aumento do uso de álcool e de casos de suicídio durante a pandemia, entre outros. Confira.


Eletroconvulsoterapia em foco

Eficácia da donepezila para atenuar os déficits de memória associados a eletroconvulsoterapia

A eletroconvulsoterapia (ECT) acarreta efeitos colaterais cognitivos, especialmente déficits de memória (retrógrada e autobiográfica). Muitas estratégias farmacológicas foram empregadas em estudos animais e clínicos para lidar com estes efeitos colaterais, mas com resultados inconsistentes. Uma estratégia bastante usada em ensaios clínicos tem sido o uso de inibidores da acetilcolinesterase. Algumas evidências sugerem que a ECT diminui a neurotransmissão colinérgica, que faz parte do processo de aprendizagem e memória; portanto, existe a hipótese de que os inibidores da acetilcolinesterase possam atenuar os déficits causados pela ECT.

Uma revisão sistemática de cinco estudos, realizada em 2017, concluiu que existe a possibilidade de haver algum benefício associado ao uso de inibidores da acetilcolinesterase para atenuar os efeitos colaterais cognitivos da ECT.

O objetivo do estudo em pauta foi confirmar e estender os achados de estudos anteriores, que relataram que os inibidores da acetilcolinesterase são protetores contra os efeitos cognitivos induzidos pela ECT. Para isto, foram randomizados 30 pacientes, dentre os quais, 15 usaram 10 mg/dia de donepezila e 15 usaram placebo, três vezes por semana por 30 dias.

A média de idade da amostra foi de 34,6 anos. Os dois grupos (intervenção e controle) foram compostos de 12 pacientes com diagnóstico de depressão e três com diagnóstico de esquizofrenia.

A memória foi avaliada por meio da escala PGI-MS; os pacientes foram analisados ao início do estudo, no segundo, no sétimo e no trigésimo dia após a ECT. Não houve diferença significativa entre os grupos em termos de pontuação na escala PGI-MS entre o segundo e o trigésimo dia após a ECT.

Para lembrar:

Efeitos cognitivos são muito comuns em decorrência da ECT. Na grande maioria dos casos, são efeitos colaterais leves e passageiros. Devemos lembrar que na medicina todo tratamento tem seu custo e benefício. Em casos graves, tanto de transtornos do humor como de esquizofrenia cursando com ideação suicida, muitas vezes a ECT é a saída mais eficiente.

Alterações cognitivas após eletroconvulsoterapia em pacientes com transtornos do humor avaliados pelo MoCA

A eletroconvulsoterapia (ECT) é um tratamento efetivo e seguro para pacientes com transtornos do humor grave, no entanto, existe uma preocupação em relação aos efeitos colaterais neurocognitivos associados a este tratamento.

Os pacientes podem apresentar desorientação imediatamente após o procedimento, o que normalmente se resolve dentro de uma hora, além de outros efeitos colaterais cognitivos, como amnésia anterógrada para informações recentemente aprendidas e amnésia retrógrada para informações aprendidas anteriormente. A amnésia anterógrada normalmente se resolve dentro de dois meses, sendo rara a persistência do quadro.

Diversas diretrizes recomendam a avaliação cognitiva antes, durante e depois da ECT, mas não existe um consenso sobre o instrumento a ser usado. O Mini Exame do Estado Mental (MEEM) é o mais usado para avaliar o impacto da ECT na função cognitiva global, mas este instrumento não tem a sensibilidade necessária para detectar alterações cognitivas mais sutis. O Montreal Cognitive Assessment (MoCA) pode ser uma boa alternativa, pois, em vários casos, é mais sensível para o rastreio cognitivo do que o MEEM.

É fundamental que se identifique o funcionamento cognitivo antes da primeira sessão de ECT. Até o momento não se estabeleceu um corte ideal do MoCA para o prejuízo cognitivo. O corte inicial, de 26/30, levou a uma grande quantidade de falsos-positivos em diversos estudos. Uma recente metanálise propôs 23/30. A vulnerabilidade ao comprometimento cognitivo induzido pela ECT varia muito de paciente para paciente.

O estudo em pauta utilizou o MoCA para avaliar os efeitos cognitivos da ECT em curto e longo prazos em uma amostra de pacientes com diagnóstico de síndromes depressivas. Foram incluídos 65 pacientes, dos quais, 76,9% eram mulheres, com média de idade de 58,4 anos e uma taxa de 41,5% de prejuízo cognitivo anterior à ECT.

O estudo concluiu que não houve comprometimento cognitivo persistente induzido pela ECT.

Para lembrar:

Montreal Cognitive Assessment se mostrou uma boa alternativa ao Mini Exame do Estado Mental para avaliar alterações cognitivas de curto e longo prazos. É importante frisar que não existe uma ferramenta padrão-ouro no rastreio de alterações cognitivas causadas pelo ECT.

Incidência de casos de suicídio entre pacientes com câncer: Revisão sistemática e metanálise

Estima-se que o câncer venha a ser uma das principais causas de morte no século 21. Com o aumento da capacidade de rastreio e diagnóstico precoce, e o desenvolvimento de melhores tratamentos, atualmente mais pacientes sobrevivem à doença.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, em 2016, cerca de 800.000 pessoas cometeram suicídio em todo o mundo, com uma taxa de 10,5 casos de suicídio por 100.000 habitantes na população geral. O suicídio de pacientes com câncer é um problema mundial. O risco de suicídio para pacientes com câncer é maior do que o da população geral (sem a doença).

Um estudo recente relatou uma taxa de 28,58 casos de suicídio por 100.000 pacientes com câncer nos Estados Unidos, um número quase três vezes maior do que na população geral. Um estudo inglês apresentou uma taxa de 11,3 casos de suicídio por 100.000 habitantes e outro estudo, realizado na Estônia, referiu uma taxa de 102,56 casos de suicídio por 100.000 habitantes. Diante destas discrepâncias, os autores do estudo em pauta entenderam que seria importante realizar uma revisão sistemática e metanálise sobre o assunto.

O trabalho incluiu estudos em inglês e chinês, de onde as taxas de suicídio foram extraídas. A taxa de suicídio por 100.000 habitantes foi o desfecho principal. Foi usado o modelo de efeitos aleatórios. Foram incluídos 36 estudos, chegando a uma taxa de suicídio de 39,72 casos de suicídio por 100.000 habitantes. A heterogeneidade foi de 99,6% (I2). A taxa de suicídio foi maior entre homens (57,78 por 100.000). O câncer de esôfago apresentou a maior taxa de suicídio (87,71 por 100.000). A taxa de suicídio apresenta uma tendência de queda com o transcorrer dos anos após o diagnóstico, com a incidência de casos se concentrando nos seis primeiros meses (89,33 por 100.000).

Para lembrar:

Este estudo apresenta dados de grande valia para prevenção de suicídio em pacientes com câncer. Devemos levar em conta a alta heterogeneidade do estudo, mas, mesmo assim, é importante sabermos que há uma alta taxa de casos nos seis primeiros meses após o diagnóstico e que a incidência é maior entre pacientes com câncer de esôfago, para pensarmos em estratégias de prevenção para estes pacientes.

Artigo publicado no Medscape em 09 de dezembro de 2020


Atingir a remissão no tratamento de transtornos do humor é algo factível?

A remissão é um conceito muito importante no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, sigla do inglês, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) da American Psychiatric Association (APA), sendo reconhecido como o melhor desfecho para o tratamento dos transtornos do humor ou como a ausência ou presença mínima de sintomas de mania e depressão, por ao menos uma semana No entanto, ainda não foi definido um significado preciso e que constituiria um estado saudável para pacientes com transtornos do humor.

Tenta-se estabelecer parâmetros claros como a obtenção de < 5 pontos na Hamilton Depression Rating Scale (HDRS): escala de 17 itens; < 5 pontos na Montgomery-Asberg Depression Rating Scale (MADRS); < 8 pontos para depressão na Brief Psychiatric Rating Scale (BPRS); ou ≤ 8 pontos para mania na Young Mania Rating Scale (YMRS).

Um estudo demonstrou que apenas 25% dos pacientes que atingiram os parâmetros para remissão se sentiam realmente em remissão. Outro estudo recente mostrou que pacientes diagnosticados com depressão maior e temperamento afetivo do tipo de esquiva de dano (correspondente ao temperamento distímico) tratados com antidepressivos apresentaram mais dificuldades de alcançar a remissão.

A ideia de dar continuidade ao tratamento até que o paciente atinja a remissão tem sido questionada por alguns autores. A ocorrência de sintomas "residuais" acaba acarretando o uso de doses mais altas de medicamentos e, consequentemente, mais efeitos colaterais. Isto pode ser repensado por meio do conceito de temperamento.

É importante sempre lembrar os conceitos de temperamentos afetivos. Temperamento afetivo é um conceito antigo, descrito na Grécia Antiga e posteriormente sistematizado por dois importantes psiquiatras alemães, Emil Kraepelin e Ernst Kretschmer. Primeiramente, Kraepelin apresenta conceitos como temperamentos maníacos e depressivos, que levaram Kretschmer a desenvolver conceitos como hipertimia e distimia, respectivamente. A questão mais importante do conceito de temperamento é a noção de que sintomas maníacos e depressivos podem ser crônicos e leves, estando presentes e ativos o tempo todo, fazendo parte da personalidade do indivíduo, em vez de se manifestarem apenas como episódios agudos, com sintomas graves. Posto isso, temperamentos podem ser definidos como versões leves de estados de humor, incluindo alterações no nível de energia, no padrão de sono e em comportamentos (como sexual, social ou relacionados com o trabalho).

Existem três temperamentos básicos: hipertimia, distimia e ciclotimia. A hipertimia contempla sintomas leves de mania, como: aumento da energia, necessidade diminuída de sono, libido exacerbada, sociabilidade, extroversão e senso de humor. Esses indivíduos muitas vezes são conhecidos como "workaholics" e são mais propensos a se arriscarem. A distimia contempla sintomas depressivos leves, como: baixa energia, maior necessidade de sono, libido reduzida, ansiedade social, introversão, baixa produtividade no trabalho. Estas pessoas tendem a evitar situações arriscadas e são mais ligadas a rotinas. Já a ciclotimia contempla constantes alternâncias entre sintomas leves de depressão e mania, como altos e baixos no humor e nos níveis de atividade. Normalmente são pessoas extrovertidas e sociáveis, que às vezes se colocam em situações arriscadas e são imprevisíveis.

Em um estudo com 123 pacientes, 85% foram diagnosticados com transtorno bipolar de vários tipos, 7% foram diagnosticados com depressão maior e 7% receberam outros diagnósticos. A média de idade dos pacientes era de 38 anos. Usando o corte de 75% da escala de temperamento TEMPS-A (sigla do inglês, Temperament Evaluation of Memphis, Pisa, Paris, and San Diego Autoquestionnaire), 53% dos pacientes marcaram positivo para ao menos um temperamento, sendo a maioria ciclotímica.

Já um estudo recente detectou que 76% da amostra, composta de idosos com diagnóstico de depressão maior, apresentaram ao menos um tipo de temperamento, sendo a maioria hipertímica. Este trabalho também usou o corte de 75% da escala TEMPS-A. [13]

Em um recente editorial, Malhi e Bell defenderam que esperar períodos claros de remissão em pacientes com transtorno bipolar tipo I não seria realista. [14] Neste contexto, se levarmos em conta a noção de temperamento afetivo como características duradouras de mania, depressão ou ciclotimia, o conceito de remissão, definitivamente, estaria fora de cogitação.

Outra consequência de negar o conceito de temperamento afetivo na remissão é a polifarmácia.

A maioria dos psiquiatras acredita que a remissão é o único objetivo do tratamento, o que não é real. A maioria dos pacientes voltará a funcionar de acordo com seu temperamento de base. Devemos entender que a maioria dos nossos pacientes ainda apresentará sintomas após o tratamento, pois, como visto acima, a maioria apresenta algum tipo de temperamento.

Artigo publicado no Medscape em 07 de novembro de 2020


Volta à escola em plena pandemia: uma decisão difícil

Mandar ou não mandar as crianças à escola segue sendo um tema polêmico entre pais, professores, profissionais de saúde e governantes em todo o mundo, e no Brasil não é diferente. Neste episódio do Conversa de Médico, o Medscape aborda o tema, apresentando as evidências mais recentes acompanhadas da opinião de parte de seu time de advisors, mais especificamente o Dr. Sivan Mauer, psiquiatra, a Dra. Aline Serfaty, radiologista, e o Dr. Fernando Lyra, pediatra.

Recentes dados epidemiológicos brasileiros mostram que 25% dos óbitos no país foram de pessoas entre 70 e 79 anos de idade. Os menores de 19 anos constituem um quarto da população no Brasil, mas representam apenas 0,7% do total de óbitos por covid-19 desde o início da pandemia.

Apesar das notícias sobre a ocorrência de casos graves e fatais, na maioria das crianças (60%) a infecção pelo novo coronavírus é assintomática. Nas que apresentam sintomas, eles geralmente são muito parecidos com os sintomas de infecções das vias aéreas comuns da infância.

“Essa relativa benignidade, no entanto, não deve embasar as tomadas de decisões gerenciais, pois os casos graves também existem na pediatria e não é possível distinguir rápida e facilmente quais irão evoluir com piores quadros, como síndrome inflamatória multissisêmica pediátrica (SIMP) Kawasaki-símile”, aponta o Dr. Fernando.

Essa dificuldade no diagnóstico também se impõe diante dos exames de imagem, afirma a Dra. Aline, salientando que 50% dos pacientes com covid-19 podem apresentar tomografia normal nos primeiros dias após o surgimento dos sintomas. Ela cita um estudo feito na China com 30 pacientes pediátricos onde se viu que os achados tomográficos foram negativos em metade dos casos.

“Outro trabalho que comparou estudos de imagem de adultos e crianças também mostrou que os achados são menos frequentes em crianças e que, naquelas que apresentavam achados observáveis, o envolvimento do pulmão foi menor do que o visto nos adultos pesquisados.”

Superspreaders ?

Um estudo da Fiocruz destacou que 9,2 milhões de idosos e adultos com diabetes, enfermidades cardiovasculares ou doença pulmonar residem com ao menos uma pessoa da faixa etária entre três e 17 anos, portanto, em idade escolar.

Segundo o Dr. Fernando Lyra, novos dados já mostraram que crianças podem ter cargas virais – aferidas por PCR-RT quantitativo – até 100 vezes superior às registradas em adultos com formas graves de covid-19. Entretanto, é importante destacar que uma maior carga viral não significa necessariamente maior capacidade de contágio, e estudos têm mostrado que as crianças não são “superspreaders” do SARS-CoV-2, como se acreditava no início da pandemia.

Além disso, acrescentou o Dr. Fernando, um estudo comparando a experiência de dois países com características bem parecidas – a Suécia, que nunca suspendeu as aulas, e a Finlândia, que suspendeu aulas presenciais no início da pandemia – mostrou que a volta às salas de aula não representou diferença entre os dois países nas taxas de contaminação de professores.

Quando voltar

A decisão não é simples e não deve ser transferida em 100% para os pais. Segundo o Dr. Fernando, as ações devem ser tomadas pelos governantes, em parceria com pais, professores e profissionais de saúde, e com base em dados científicos.

“Também é preciso garantir condições mínimas, como infraestrutura e transporte seguros para essa volta à escola. Em um país com tamanha desigualdade, como o Brasil, a retomada das aulas presenciais pode ser factível em alguns lugares e em outros não”, disse o pediatra, acrescentando que, diante da decisão de voltar ao estudo presencial, devem ser priorizados os estudantes com sintomas de sofrimento devido ao isolamento social, os que não têm acesso a internet, e os que apresentam claras dificuldades para aprender com o sistema on-line.

As crianças menores de sete anos, e as que estão em maior risco em termos de saúde, devem aguardar. Entre as crianças com alto risco estão aquelas com obesidade mórbida, diabetes tipo 1, insuficiência cardíaca grave ou descompensada, doença pulmonar obstrutiva crônica, doença renal crônica, imunodeprimidas ou em uso de imunomoduladores, em tratamento de câncer, e adolescentes gestantes.

Assista o vídeo em Medscape.

Artigo publicado no Medscape em 15 de outubo de 2020


Depressão na pandemia

Prevalência de sintomas depressivos em adultos norte-americanos antes e durante a pandemia de Covid-19

A pandemia de covid-19 é um evento que pode causar danos emocionais, físicos e psicológicos. As políticas criadas para prevenir a propagação do novo coronavírus acabaram introduzindo novos eventos estressores na rotina da maioria da população. Além disto, com as medidas de distanciamento social e isolamento, mais de 20 milhões de pessoas nos Estados Unidos ficaram desempregadas.

A saúde mental é sensível a eventos traumáticos, podendo apresentar consequências sociais e econômicas. Estudos anteriores associaram desastres, epidemias e revoltas civis ao aumento do sofrimento psíquico nas populações afetadas. Por exemplo, após o 11 de setembro, 9,6% dos residentes de Nova York apresentaram sintomas depressivos e 7,5% apresentaram sintomas de transtorno de estresse pós-traumático. Também foi relatado aumento do número de casos de doença mental durante os surtos de Ebola e de SARS. Este aumento de casos também foi associado a revoltas civis, como a que ocorreu em Hong Kong em 2019.

É importante entender que as consequências dos eventos traumáticos não são igualmente distribuídas na população. A população mais pobre é vulnerável a maior sofrimento psíquico.

Estudos sugerem que a pandemia de covid-19 está associada a doença mental. Entre os profissionais de saúde expostos à covid-19 na China, 50,4% apresentaram sintomas depressivos. Um estudo com 9.009 pessoas, realizado por meio de mídias sociais, revelou que 67,3% dos participantes estavam muito preocupados com a covid-19.

O estudo em questão avaliou a presença de sintomas de depressão na população dos Estados Unidos durante a pandemia de covid-19 a partir das mesmas medidas de uma pesquisa representativa nacional realizada antes do início da pandemia. Foram usadas duas pesquisas populacionais com participantes acima de 18 anos. Os participantes avaliados durante a pandemia foram extraídos da pesquisa sobre estressores e impacto na saúde mental e bem-estar, conduzida no período de 31 de março a 13 abril de 2020. As estimativas de antes da pandemia vieram da pesquisa nacional sobre saúde e nutrição, conduzida entre 2017 e 2018. Os pesquisadores utilizaram a escala PHQ-9 para avaliar os sintomas de depressão dos participantes.

Artigo publicado no Medscape em 13 de outubro de 2020


Resiliência em tempos de pandemia

Em um breve esforço de contextualização etimológica, o Dr. Sivan Mauer, médico psiquiatra e membro do Conselho Editorial do Medscape em português, introduz o conceito de resiliência que, segundo ele, “é ditada pela genética, história pessoal, ambiente e contexto”. O médico discorre sobre a importância deste atributo diante de eventos traumáticos, como a pandemia de covid-19.

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