O suicídio e a controvérsia do diagnóstico de “depressão”
Há algumas semanas dois expoentes, duas pessoas talentosas e admiradas mundialmente – uma do mundo da moda e outra da área de gastronomia/entretenimento – chocaram o mundo ao tirarem as próprias vidas. Anthony Bourdain, diziam muitos, tinha o emprego dos sonhos, viajando pelo mundo e mostrando em seu programa a cultura e a culinária de lugares desconhecidos.
Kate Spade era uma conhecida estilista norte-americana que influenciou milhares de mulheres com seu trabalho inovador, irreverente e feminino. Ambos cometeram suicídio na mesma semana e da mesma maneira, tragicamente trazendo à tona, mais uma vez, a discussão sobre o tema.
Muitas questões já foram abordadas em relação ao suicídio, que é um grande problema de saúde pública, mas não restam dúvidas de que ainda há muito espaço para discussões sobre o assunto.
Primeiramente, a sociedade precisa ser conscientizada e orientada sobre o problema, parando de tratar o assunto de uma maneira simplista. Antes de mais nada, a classe médica precisa compreender melhor o que realmente esta por trás da grande maioria dos casos de suicídio para poder orientar a população leiga.
Muitas vezes, quando o assunto é tratado de maneira pública, o termo “depressão” é utilizado. Entretanto o termo se popularizou de uma maneira incorreta do ponto de vista médico, sendo mal compreendido por muitos. Na psiquiatria existem quatro tipos de episódios depressivos: melancolia, depressão mista, depressão neurótica e depressão pura.
A melancolia é um tipo grave de depressão, geralmente não associada a ansiedade, onde os pacientes podem apresentar grave retardo psicomotor e acentuada anedonia. A característica principal da melancolia é a completa ausência de reatividade do humor, além do fato de que os pacientes são pouco responsivos a estressores psicossociais.
Já na depressão neurótica os pacientes apresentam sintomas depressivos menos graves, porém apresentam uma proeminência maior de sintomas ansiosos, além de uma sensibilidade aumentada a estressores psicossociais. A depressão pura se caracteriza pela total ausência dos outros tipos de depressão, ou seja, os pacientes apresentam os critérios definidos pelo DSM para depressão clínica, mas não apresentam sintomas maníacos ou ansiedade.
O quadro do paciente com depressão pura é geralmente episódico, apresentando-se eutímico entre os episódios de depressão.
A depressão mista, desde Kraepelin, é o tipo de episódio mais comum dentro do conceito de doença maníaco depressiva, no qual os polos (depressão/mania) não são importantes, mas sim o curso recorrente da doença.
Usando como exemplo um paciente que apresenta 20 episódios depressivos e nenhum episódio de mania ou um paciente que apresenta 10 episódios depressivos e 10 episódios maníacos. Ambos teriam o mesmo diagnóstico de doença maníaco-depressiva. Este conceito foi extinto a partir do DSM-III, em 1980.
A depressão mista ou episódio misto pode ser definida, segundo Koukopoulos, como um quadro de depressão maior associado a agitação psicomotora, aumento da fala, tensão muscular, fuga de ideias, labilidade de humor, irritabilidade ou humor extremamente reativo.
Este conceito é importante, pois muitos pacientes que acabam desenvolvendo episódios mistos são pacientes com temperamento hipertímico, que envolve sintomas leves de mania, como aumento da energia, necessidade diminuída de sono, libido aumentada, sociabilidade, extroversão e bom senso de humor.
Esses indivíduos muitas vezes correm mais riscos, são mais criativos, audaciosos, se impõem cargas de trabalho maiores (workaholics). A criatividade é algo que desde muito tempo se correlaciona com os transtornos do humor. Por isso, em muitas profissões que têm em comum a criatividade (artistas, cantores, estilistas, chefs e apresentadores de televisão) muitas vezes nos deparamos com suicídios.
Os episódios mistos são um grande fator de risco para o suicídio, pois muitas vezes os pacientes apresentam-se com ideação suicida e com muita agitação psicomotora, o que os leva a colocar em prática a ideia de morte. Os pacientes normalmente apresentam-se agitados e ansiosos, sentindo um sofrimento extremamente grande, para o qual a única saída é a morte.
Sabe-se que com relação a Anthony Bourdain ele não tinha tomado um único copo de bebida alcoólica ou usado qualquer tipo de droga, o que nos faz imaginar o tamanho do sofrimento dele.
Outro fator importante que contribui para o aumento da incidência dos episódios mistos é o crescente uso de antidepressivos, que tem ocorrido desde os anos oitenta, com a introdução dos antidepressivos inibidores seletivos da recaptação da serotonina.
O primeiro a ser lançado no mercado, e ainda o mais conhecido, é a fluoxetina. Com a ampliação do conceito de “depressão” pelo DSM-III, consequentemente popularizaram-se as prescrições de antidepressivos. Esta classe de medicação está intimamente ligada com o aumento do número de episódios mistos, podendo levar também a um aumento das ideações suicidas e, consequentemente, a tentativas de suicídio nos pacientes.
Uma meta-análise de 2016 concluiu que o uso de antidepressivos em pacientes fisicamente saudáveis chegava quase a dobrar o risco de suicídio e violência (OR = 1,85; IC de 95%, 1,11 – 3,08) e um NNH de 16, o que significa que para cada 16 tratados com antidepressivos, um paciente cometerá suicídio.
Esses números deveriam chamar muito a atenção a comunidade médica. O tratamento dos episódios mistos deveria ser feito com estabilizadores de humor e doses baixas do que classificamos como antipsicóticos.
Outro fator importante pouco discutido ainda é a influência da luz solar sobre os pacientes que cometem suicídio. Este dado é conhecido há muito tempo, principalmente no hemisfério norte, onde existe um pico de suicídio na primavera, entre os meses de março a junho, com uma grande intensidade em abril.
Kraepelin já entendia que pacientes com sintomas depressivos dos invernos prolongados entravam em episódios mistos com o aumento gradual da luz solar. Não por acaso os suicídios destas duas celebridades ocorreram nesta época do ano.
Devemos começar a tratar a prevenção do suicídio de maneira diferente, com mais vigor do que se vem fazendo hoje.
Em primeiro lugar devemos começar a ser mais críticos com relação a diagnósticos, entendendo que sintomas maníacos são extremamente importantes, independentemente do tempo que ocorram ou da intensidade.
Devemos parar de tratar os sintomas e sim tratar as doenças, começando pela mais letal delas: a doença maníaco-depressiva, e principalmente os episódios mistos. As altas prescrições de antidepressivos devem ser revistas, e as medicações adequadas para o tratamento dos transtornos do humor devem ser mais utilizadas.
Não podemos mais negar dados tão concretos sobre a prevenção de suicídio, como doses baixas de lítio, uma medicação barata e de fácil acesso. Esta droga chega a reduzir aproximadamente 90% dos suicídios em estudos controlados comparados com placebo.
Alguns estudos demostram a eficácia do uso de caixa de luz para o tratamento de pacientes com sintomas depressivos em períodos de inverno.
O estigma com relação ao suicídio ainda é grande. Se a classe médica, principalmente a psiquiátrica, não entender a necessidade de mudança urgente no diagnóstico e no tratamento dos transtornos de humor, muitos dos nossos ídolos serão interrompidos abruptamente da possibilidade de nos prover com suas músicas, receitas, roupas ou até mesmo decisões políticas, além de que muitos dos nossos entes queridos poderão tirar as próprias vidas.
Eu costumava assistir semanalmente aos episódios de Anthony Bourdain pelo mundo e sentirei falta da genialidade de um chef que conseguiu entrevistar o presidente dos Estados Unidos em um simples restaurante no Vietnã.
Artigo publicado no Medscape em 16 de julho de 2018