Consequências da escetamina e depressão na pandemia

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1. Preocupações em relação à segurança da escetamina após a liberação de venda: análise de desproporcionalidade de relatos espontâneos sobre efeitos colaterais notificados à FDA

Em março de 2019, a Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos aprovou o uso da escetamina em spray intranasal no tratamento adjuvante de adultos com depressão refratária. Alguns meses depois, a formulação também foi aprovada pela European Medicines Agency (EMA). Depois de aprovada, a FDA determinou uma estratégia de avaliação e mitigação do risco dirigida ao potencial de abuso, sedação e mau uso.

Com a venda liberada nos EUA e na Europa, iniciou-se um debate sobre a falta de evidências convincentes da segurança e eficácia da escetamina, inclusive em relação ao risco de abuso e de suicídio. Uma análise de dados agrupados sobre o perfil de segurança da escetamina concluiu que o medicamento era menos aceitável do que placebo – de acordo com essa análise, o risco de dissociação entre os pacientes que utilizaram o produto foi sete vezes maior do que nos grupos que receberam placebo.

Sistemas de relatos espontâneos reúnem efeitos adversos e representam uma fonte de dados pronta para identificação precoce de problemas relacionados com a farmacoterapia no mundo real. A análise dos dados provenientes de relatos espontâneos posteriores à liberação da venda do produto é particularmente adequada para detectar a ocorrência de efeitos colaterais raros, que acabam não sendo detectados ou reportados nos estudos controlados randomizados devido ao pouco tempo de acompanhamento e à diferença das doses e das populações incluídas em comparação com o mundo real.

O objetivo deste estudo foi analisar os dados de segurança da escetamina em spray nasal informados espontaneamente pela população dos Estado Unidos após a liberação da venda do produto ao maior banco de dados de farmacovigilância disponível no país, o FDA Adverse Event Reporting System (FAERS).

O estudo utilizou a metodologia consolidada de caso/não caso para estimar a razão de chances (OR, sigla do inglês Odds Ratio), com intervalo de confiança (IC) de 95%, para os efeitos adversos relacionados à escetamina com mais de quatro relatos. Foram registrados 962 casos de efeitos adversos associados ao uso de escetamina registrados no FAERS, dentre eles:

  • Dissociação (OR de 1,61; IC 95% de 1,35 a 1,92);
  • Sedação (OR de 238,46; IC 95% de 202,98 a 280,15);
  • Ideação suicida (OR de 24,03; IC 95% de 18,72 a 30,84);
  • Suicídio (OR de 5,75; IC 95% de 3,18 a 10,41); e
  • Humor eufórico (OR de 46,03; IC 95% de 28,02 a 75,59).

Para lembrar:

É muito importante ressaltar que a escetamina foi aprovada para o tratamento da depressão refratária. Na grande maioria das vezes o problema da depressão refratária é o diagnóstico e não o tratamento em si. O erro diagnóstico mais comum é não detectar a ocorrência de estados mistos, algo que não deve ser tratado com antidepressivos. Por isto, não surpreende o resultado deste importante estudo. Isto se confirma com a grande chance de se apresentar humor eufórico. Ideação suicida e suicídio estão muito relacionados aos estados mistos. Vale ressaltar também a importância da metodologia utilizada pelos autores, que pode ser desconhecida para alguns; o principal uso da análise de desproporcionalidade é confirmar ou não a potencial associação dos efeitos adversos ao medicamento em questão com base na hipótese farmacológica.

2. Tendência suicida nos primeiros meses da pandemia de covid-19: uma série de análises temporais de dados preliminares de 21 países

Existe a preocupação de que a pandemia de covid-19 leve a um aumento das taxas de suicídio. No entanto, poucos estudos examinaram os efeitos de outros surtos de doenças na incidência de casos de suicídio.

Duas revisões sistemáticas identificaram 10 estudos que focaram em epidemias ou pandemias de Influenza, síndrome respiratória aguda grave (SARS, sigla do inglês Severe Acute Respiratory Syndrome) e Ebola. Estas revisões sugerem que, em alguns momentos, as taxas de suicídio aumentaram após emergências de saúde pública. Esse aumento não necessariamente ocorre de imediato, visto que muitas vezes o risco é menor no início.

Os autores utilizaram o International Covid-19 Suicide Prevention Research Collaboration (ICSPRC) para monitorar o efeito global da pandemia na incidência de suicídio e monitorar também os estudos especificamente relacionados com a pandemia de covid-19 e os casos de suicídio. Por meio de uma revisão sistemática viva (living systematic review) concluiu-se que a maioria dos estudos tiveram limitações metodológicas. Alguns trabalhos utilizaram dados sem confirmação das fontes ou com fontes secundárias. Estes relatos apresentaram um aumento nas taxas de suicídio após o início da pandemia de covid-19. Outros estudos usaram dados estatísticos oficiais sobre suicídio para os meses desde que a pandemia começou e fizeram comparações com períodos equivalentes sem levar em conta tendências subjacentes. Estudos com esta metodologia na Noruega, Suécia, Coreia do Sul, Áustria, Alemanha e EUA mostraram uma diminuição nas taxas de suicídio e na Grécia mostrou que não houve alteração.

As evidências até o momento são insuficientes para indicar os efeitos da covid-19 na incidência de suicídio. É provável que os efeitos apresentem diferenças entre e dentro dos países, de acordo com fatores como a extensão da pandemia, medidas de combate à crise sanitária, consequências econômicas e medidas de amparo social às famílias mais atingidas.

Este estudo teve como objetivo avaliar o efeito inicial da pandemia de covid-19 nas taxas de suicídio ao redor do mundo. Para isto, os autores realizaram pesquisas entre 1º de setembro e 1º de novembro de 2020 nos sites oficiais dos ministérios da Saúde, das agências de políticas e das agências de estatísticas dos 21 países incluídos na análise, usando os termos “suicídio” e “causa da morte”.

A pesquisa on-line ficou restrita, por motivos pragmáticos, a países com mais de três milhões de habitantes, mas este critério foi flexibilizado para países identificados através de literatura ou da rede de pesquisa dos autores. Áreas dentro de países também puderam ser incluídas com menos de três milhões. Foi usada uma análise seriada temporal para modelar a tendência de casos de suicídio por mês antes da pandemia de covid-19 (de 1º de janeiro de 2019 até 1º de março de 2020), comparando com a estimativa do número de suicídios derivada de modelos com números observados nos meses iniciais da pandemia (1º de abril a 21 de julho de 2020).

Foram analisados dados de 21 países (16 países de alta renda e cinco de alta média renda) incluindo dados de 10 outros países e dados de várias áreas de 11 países. A razão de taxas e o intervalo de confiança (IC) de 95% foram calculados com base nos dados observados e na estimativa de suicídios. Não foram observadas evidências de aumento significativo no risco de suicídio desde o início da pandemia em nenhum dos países ou áreas.

Para lembrar:

O suicídio é um desfecho multicausal, sendo que as doenças psiquiátricas são responsáveis por uma grande parte do risco. Dentre os fatores sociais, sabe-se que grandes crises financeiras podem cursar com o aumento da taxa de suicido. Seria de extrema importância que um estudo como este focasse em países de média e baixa renda, além de tentar entender e quantificar a incidência de casos de suicídio em países que ofereceram suporte financeiro para as pessoas que perderam seus empregos ou suas fontes de renda.

3. Prevalência de doenças mentais, ideação suicida e suicídio na população geral antes e durante a pandemia de covid-19 na Noruega: Uma análise transversal populacional de repetidas análises

O governo da Noruega determinou medidas de distanciamento social a partir de 12 de março de 2020 para conter a pandemia de covid-19. A situação foi considerada como estando sob controle no final de abril de 2020, com gradual relaxamento das restrições durante o verão. No entanto, pequenos surtos da doença levaram à reintrodução das medidas restritivas no início de setembro de 2020.

A grande preocupação de que a pandemia causaria uma crise de saúde mental levou a uma rápida propagação de pesquisas explorando questões sobre a saúde mental na pandemia, mas a maioria desses trabalhos tem grandes limitações. A maioria consiste em pesquisas on-line, com importantes vieses amostrais, e muitas são pesquisas transversais, com apenas uma coleta no início da pandemia. Há apenas alguns estudos de qualidade baseados em populações probabilísticas que compararam sofrimento mental na população geral durante a pandemia com níveis pré-pandêmicos.

Pesquisas no Reino Unido, nos Estados Unidos e na República Checa concluíram que o início da pandemia trouxe um aumento dramático no número de diagnósticos de sofrimento mental, em comparação com 2017-2019. Em contraste, um estudo holandês não observou aumento na prevalência de sintomas de ansiedade e depressão em março de 2020 versus março de 2019.

Parecem existir alguns fatores de risco de sofrimento mental durante a pandemia como: ser mulher, ser adulto(a) jovem, estar desempregado(a), ser estudante, estar solteiro(a), morar com crianças pequenas ou ter comorbidades (físicas ou mentais).

Os estudos publicados foram conduzidos nos primeiros meses da pandemia e contaram quase exclusivamente com questionários ou ferramentas de rastreio com período curto de referência. Verificações como essas funcionam para descrever uma onda aguda de sofrimento mental que pode recuar assim que as pessoas se adaptarem à nova situação. Por outro lado, estressores crônicos, como recessão econômica, podem causar uma deterioração prolongada na saúde mental. No entanto, sofrimento mental não é sinônimo de doença mental. Estudos sobre doença mental são necessários no sentido de prevenção, suporte e cuidado.

Este estudo tem com pontos fortes o fato de os autores terem recorrido a uma fonte de dados confiável e realizado um acompanhamento mais extenso do que outros estudos que avaliaram os efeitos da covid-19 na saúde pública. Para isto, foram usados dados de um estudo que estava em andamento antes do início da pandemia e dados do registro de óbito norueguês. O objetivo foi comparar a prevalência de doenças mentais, ideação suicida e suicídio nos seis primeiros meses da pandemia de covid-19, na população geral e entre grupos com suspeita de risco aumentado de problemas em relação a saúde mental durante a pandemia.

Foram incluídos 2.154 indivíduos. As avaliações sobre doenças mentais e ideação suicida foram feitas de modo transversal e em análises repetidas. Dados sobre suicídio foram obtidos por meio do registro de óbito norueguês e comparados entre os meses de março a maio de 2014 a 2018 e 2020.

A prevalência de doenças mentais diminuiu do período pré-pandemia (15,3% de janeiro a março de 2020) em comparação até o início da pandemia (8,7% entre março e maio de 2020). A prevalência de doenças mentais pré-pandemia foi muito parecida quando comparada com o período de junho/julho de 2020 (14,2%) e também entre agosto/setembro de 2020 (11,9%). Em relação à ideação suicida e ao suicídio, não houve diferenças observadas no período.

Para lembrar:

Este estudo reforça a hipótese de que as taxas de suicídio e de ideação suicida não apresentaram aumento até o momento. É importante ressaltar que não houve uma diferença significativa no diagnóstico de doenças mentais, porém, devemos lembrar que o estudo foi realizado na Noruega, um país de alta renda e com um sistema de saúde universal, que oferece amparo social para pessoas que perderam seus empregos ou foram afastadas por doença. Estes aspectos comprometem a capacidade de generalização do estudo. Assim, são necessários estudos como este em outros países, principalmente nos de baixa renda.