Populismo e a ameaça ao conhecimento científico

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Políticas populistas e hesitação em relação à vacinação na Europa Ocidental: uma análise de dados nacionais

Programas de vacinação erradicaram ou reduziram imensamente a prevalência de doenças graves antes muito comuns, trazendo enormes benefícios para a sociedade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a vacinação previne entre 2 e 3 milhões de mortes todos os anos, e este número poderia ser ainda maior se a cobertura fosse ampliada.

Historicamente, o maior obstáculo para aumentar a cobertura é o acesso às vacinas em países pobres. Entretanto, há cerca de duas décadas, a redução da cobertura tornou-se um problema de saúde pública também nos países ricos. Atualmente, a Europa é a região com o maior número de pais que hesitam em vacinar os filhos, segundo o Vaccine Confidence Project da London School of Hygiene and Tropical Medicine.

A desconfiança em relação à vacinação iniciou-se em 1998, com a publicação de um artigo no periódico Lancet que relacionou as vacinas com casos de autismo. Posteriormente, o artigo foi muito debatido, e cientificamente desacreditado. Ideias como esta tiveram um impacto na saúde pública de diversos países. Na Inglaterra, a taxa de aplicação da vacina MMR caiu de 92%, em 1995, para 79%, em 2003; bem abaixo da taxa de 95% necessária para atingir a imunização da população, de acordo com OMS.

Em 1998 a Inglaterra registrou 56 casos de sarampo; em 2008 foram 1.370. Apesar de ter sido feita uma retratação em relação ao estudo que relaciona vacinação com autismo, esta ideia persiste em algumas camadas da população – e os casos de sarampo têm aumentado na Europa.

No entanto, os profissionais de saúde pública deveriam debater e contrapor os fatores determinantes para a hesitação em relação à vacinação. Existem evidências anedóticas sugerindo uma conexão entre a ascensão de políticos populistas e movimentos relacionados com a negação de vacinação na Europa Ocidental. O caso mais emblemático ocorreu na Itália. Em 2017, um editorial do The New York Times intitulado “Populismo, Política e Sarampo” relatou que o Movimento Cinco Estelas (M5E) questionou a segurança das vacinas, reascendendo a ideia que relaciona vacinas e autismo. Este tipo de argumentação fez com que os casos de sarampo na Itália aumentassem de 840, em 2016, para cerca de 5.000, em 2017.

Apesar destes números, o parlamento italiano, que foi bastante reforçado por membros do M5E, passou uma lei tornando facultativa, e não mais compulsória, a vacinação de crianças para serem matriculadas em escolas estaduais.

Na França, o partido de direita lançou dúvidas sobre a segurança das vacinas e questionou as leis que tornam obrigatória a vacinação das crianças. Na Grécia, o partido de esquerda SYRIZA propôs que os pais poderiam deixar de vacinar seus filhos. Na Inglaterra, os eleitores do partido de direita UKIP são cinco vezes mais propensos a acreditar que as vacinas não são seguras, quando comparados com a população em geral. Nos Estados Unidos, Donald Trump é conhecido defensor do movimento anti-vacinação.

Os partidos citados – tanto os de esquerda como os de direita – são definidos como populistas. Na Europa, atualmente, a grande maioria é de direita ou de extrema direita. A característica mais comum dos partidos populistas é a mensagem antissistema. Na Europa Ocidental, o suporte aos partidos populistas vem da parte da população que acredita que a própria cultura está sendo ameaçada pela imigração ou pela parcela da população economicamente marginalizada, que se sente abandonada pelos partidos políticos ortodoxos.

O avanço do populismo é um processo longo e está relacionado com a falha de partidos ortodoxos em combater a desigualdade econômica.

Uma questão importante é o conceito de cientificismo populista, que parece ser dirigido por sentimentos semelhantes ao populismo político, ou seja, um grande descrédito aos especialistas e à ciência. No caso das vacinas, a desconfiança é voltada aos profissionais de saúde pública e aos laboratórios farmacêuticos que defendem as vacinas.

A análise deste estudo foca na Europa Ocidental, e foram incluídos 14 países. A lista de partidos populistas foi feita pelo autor Van Kessel, 2015, que define como partidos populistas basicamente aqueles que vão contra as o establishment. Partidos que ganharam ao menos uma cadeira nas eleições foram incluídos na lista.

Os dados sobre a hesitação em relação à vacinação são a porcentagem de pessoas em cada país que acreditam que vacinas não são seguras, importantes ou efetivas, de acordo com os dados de 2015 provenientes do Vaccine Confidence Project.

Foi identificada uma associação positiva significativa entre a porcentagem de eleitores de partidos populistas nos países e as pessoas que acreditam que as vacinas não são importantes (R = 0,7923; P = 0,007). Também houve uma relação positiva entre pessoas que acreditam que as vacinas não são efetivas (R = 0,7222; P = 0,0035). A porcentagem de quem acredita que as vacinas não são seguras também estabeleceu uma relação positiva.

Os dois países europeus onde a população mais hesita em tomar vacinas são Itália e França, segundo o estudo.

Para lembrar:

É necessário que a relação de confiança entre os profissionais de saúde e a população leiga seja ainda mais reforçada, e os conceitos científicos sejam cada vez mais fortalecidos. Caso contrário, corre-se o risco de outras aéreas da medicina, principalmente a psiquiatria, sofrerem retrocessos, trazendo um grande prejuízo para a população em geral.

Mudanças na prescrição para tratamento do transtorno afetivo bipolar entre 2009 e 2016: um estudo com dados nacionais escoceses

O transtorno afetivo bipolar (TAB) é caracterizado por episódios de depressão e mania. Esta doença chega a afetar de 1% a 2% da população global, e está associada a diversos desfechos adversos, sejam físicos ou mentais.

As atuais opções farmacológicas para o tratamento do TAB são amplas e incluem estabilizadores do humor, antipsicóticos, antidepressivos, hipnóticos e ansiolíticos. Apesar dos novos tratamentos, o lítio é considerado o tratamento mais efetivo para reduzir a recorrência de episódios e, desde 2014, tem sido recomendado como tratamento de primeira linha pelo Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (NICE). Antes disto, as diretrizes de 2006 recomendavam o próprio lítio, valproato e olanzapina como tratamento de primeira linha.

Existem ainda evidências robustas de que o lítio tenha efeito de prevenção ao suicídio e provoque menos efeitos colaterais do que outros psicotrópicos. Além disto, o uso do lítio na manutenção está associado a menores índices de insuficiência renal do que se acreditava.

Apesar da recomendação do NICE ainda existe uma subutilização do lítio na prática clínica. De fato, o transtorno bipolar é uma doença onde existe um dos maiores hiatos entre tratamento baseado em evidências e prática clínica.

Estudos em vários países têm identificado importantes mudanças no uso do lítio nos últimos anos. Utilizando dados nacionais da Dinamarca, autores avaliaram prescrições em pacientes com TAB entre 2000 e 2011. De todos os medicamentos utilizados para o tratamento do TAB, o lítio deixou de ser o mais prescrito para se tornar o menos prescrito, sendo substituído pelos antipsicóticos atípicos. Dados similares foram encontrados na Suécia, onde a prescrição de lítio diminuiu entre 2007 e 2013. No entanto, um estudo italiano observou um aumento na prescrição de lítio entre 2006 e 2010. Uso da polifarmácia também aumentou no manejo do TAB em muitos países.

O objetivo deste estudo foi identificar se esta mudança no manejo medicamentoso do TAB, que ocorreu em vários países, e também ocorreu no Reino Unido. Para isto, foram utilizados dados eletrônicos escoceses, provenientes de uma coorte com 23.135 pacientes com TAB, para os quais foram prescritos psicotrópicos entre 2009 e 2016.

Foram examinadas tendências de prescrições de seis classes de medicamentos. Modelos de regressão logística foram utilizados para examinar a mudança nas prescrições durante os anos de interesse.

A forma de tratamento mais comum foi a prescrição de antidepressivos em monoterapia (24,9%) e apenas 5,9% dos pacientes receberam lítio em monoterapia. A prescrição de antipsicóticos aumentou 16% de 2009 até 2016 (OR = 1,16; intervalo de confiança, IC, de 95% de 1,15 a 1,18). O uso de anticonvulsivantes aumentou 34% (OR = 1,34; IC 95% de 1,32 a 1,36). A prescrição de lítio diminuiu 17% (OR = 0,83; IC 95% de 0,82 a 0,85). A prescrição de valproato para mulheres diminuiu 7% e aumentou 11% para homens.

Para lembrar:

A diminuição do uso de lítio e o aumento do uso de antidepressivos é muito preocupante com relação ao tratamento de pacientes com TAB. É necessário a conscientização de médicos clínicos e psiquiatras de que o medicamento que reúne mais evidências para o tratamento do TAB é o lítio. A diminuição da incidência de prescrição deste medicamento ao redor do mundo deve ser vista com muita preocupação. Vale lembrar que o lítio é um fármaco barato e disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Estabilizadores do humor e risco de acidente vascular cerebral no transtorno afetivo bipolar

O transtorno afetivo bipolar (TAB) é uma doença mental que frequentemente está associada a desfechos desfavoráveis durante a sua progressão, como declínio funcional e cognitivo. Além disso, evidências mostram que pacientes com TAB têm mortalidade de duas a quatro vezes maior, e que sua expectativa de vida é pelo menos 10 anos menor em comparação com a população em geral.

Em particular, doenças cardio e cerebrovasculares estão entre as principais causas de morte prematura em pacientes com TAB. Até o momento, a literatura sugere que os efeitos adversos cardiometabólicos dos psicotrópicos podem ser um dos fatores de risco de aumento da mortalidade por doença cerebrovascular em pacientes com TAB. No entanto, os dados relacionados com a associação entre o acidente vascular cerebral (AVC) e os psicotrópicos ainda são conflitantes.

Uma recente revisão sistemática e metanálise sugere que antipsicóticos e antidepressivos aumentam o risco de doença coronariana e AVC. Com relação aos estabilizadores do humor e o risco de doença cerebrovascular, a literatura é inconsistente e limitada. Um estudo de coorte retrospectivo com lítio mostrou que os sujeitos que usaram esse medicamento apresentam um risco menor de AVC. Apesar de existirem dados sobre o aumento do risco de AVC em pacientes com epilepsia, faltam dados em pacientes com TAB.

Este estudo teve como objetivo investigar a associação entre a exposição aguda a estabilizadores do humor e o risco de AVC. Para isto, foi utilizado o banco de dados nacional de saúde de Taiwan. Entre a coorte retrospectiva de pacientes com TAB (19.433), 609 pacientes que tiveram AVC foram identificados entre 1999 e 2012. Um estudo de caso transversal com 14 dias de janela foi realizado para avaliar os efeitos da exposição aguda aos estabilizadores do humor em relação ao risco de isquemia, hemorragia e outros tipos de AVC em pacientes com TAB.

Usuários de estabilizadores do humor como grupo foram associados a um aumento de 26% no risco de AVC (adjusted risk ratio, aRR, de 1,26, IC 95%, 1,01-1,58). Entre os estabilizadores do humor, a carbamazepina foi a que mais aumentou o risco (aRR = 1,68; intervalo de confiança, IC, de 95%, de 1,09 a 2,59). Com relação ao tipo isquêmico, o aumento foi ainda maior (81%).

O uso de valproato de sódio aumentou o risco de AVC hemorrágico em 76% (aRR = 1,76; IC 95%, de 1,09 a 2,87). Entretanto, exposição aguda ao lítio e à lamotrigina não aumentou o risco de nenhum tipo de AVC.

Para lembrar:

É importante levar em conta a história clínica do paciente antes de prescrever estabilizadores do humor. Para pacientes com história prévia ou familiar de AVC, deve-se optar por lítio ou lamotrigina. Opta-se pelo segundo medicamento apenas em casos de pacientes com contraindicação de uso de lítio.

Lembrando que o lítio é bastante seguro mesmo para idosos. Para isto, basta administrar doses menores e litemia de 0,4 a 0,7 mEq/L, e não seguir os parâmetros sugeridos pela maioria dos laboratórios, de 0,6 a 1,2 mEq/L, que podem ser usados apenas para adultos jovens.

Artigo publicado no Medscape em 14 de agosto de 2019