Suicídio e posse de armas de fogo: uma questão de saúde pública

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O novo governo eleito no Brasil tem como uma de suas propostas a flexibilização da posse de armas de fogo para a população. É um tema polêmico, que merece profunda discussão e análise em diversos setores. Sobretudo, é importante discutir essa questão no que se refere à saúde pública. Para isso, um bom começo é analisar o artigo Suicide, Guns, and Public Policy, publicado em 2012 pelo periódico American Journal of Public Health sobre suicídio, armas e políticas públicas.

O suicídio é um comportamento complexo e extremo, em que o paciente tem como objetivo a morte. A Organização Mundial da Saúde (OMS) identificou o suicídio como um problema de saúde pública, responsável por mais mortes, em todo o mundo, do que homicídios e guerras combinados. De acordo com a publicação no periódico norte-americano, os Centers for Disease Control and Prevention (CDC) registraram em 2007 34.598 suicídios apenas nos Estados Unidos, número muito maior do que os 18.361 assassinatos no mesmo período.

As doenças psiquiátricas estavam presentes em 80% a 90% dos pacientes que cometeram suicídio. Tratar, principalmente, os transtornos do humor é uma forma de prevenção. Outros fatores associados ao comportamento suicida são: abuso de bebidas alcoólicas e de drogas, e acesso a meios letais, como armas de fogo. A impulsividade também é um fator bastante importante neste cenário. Diversas organizações determinam que a restrição aos meios letais, ou seja, dificultar o acesso dos pacientes a esses meios, sejam incluídas nas estratégias de prevenção ao suicídio. Nos Estados Unidos, a arma de fogo é o meio mais comum para o suicídio, além de ser o mais letal, chegando a quase 91% de efetividade, seguido de afogamento (84%) e enforcamento (82%).

Um estudo fez uma análise retrospectiva em todos os 6.196 suicídios no estado de Maryland, nos EUA, entre 2003 e 2015, e concluiu que a prevalência do suicídio em áreas rurais foi maior onde as armas são ainda mais acessíveis (IRR = 1,66; IC de 95%, de 1,20 a 2,31). Na região rural, os suicídios por outros meios não foram mais prevalentes do que na urbana.

A restrição do acesso aos meios letais é extremamente importante para esses pacientes, pois a ideação suicida muitas vezes passa e não é concretizada se não houver um meio letal à disposição. Muitos países utilizam políticas de restrição a meios leitais; em alguns países asiáticos o acesso a pesticidas é dificultado, e na Austrália dificulta-se o acesso a barbitúricos. Em vários países são instaladas cercas de proteção em lugares altos com índice elevado de quedas, como no edifício Empire State, em Nova York, e na Torre Eiffel, em Paris. E, diversos países restringem o acesso às armas de fogo.

A substituição do método usado para o suicídio sempre pode ocorrer, mas em relação às armas de fogo, essa substituição será sempre por um meio menos letal, o que aumenta a chance de sobrevivência. Pacientes com doenças psiquiátricas deveriam ter o acesso às armas ainda mais dificultado. Um dos modelos que vem sendo utilizado para dificultar o acesso de pessoas com ideação suicida é justamente o do Brasil, além do Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Mesmo nos EUA, as taxas de suicídio nos estados com políticas de acesso mais restritivas (idade mínima de 21 anos) são menores.

Entre 36 países desenvolvidos, apenas os EUA apresentam alta mortalidade por armas de fogo, além da maior proporção de suicídios, também por armas de fogo. Nos EUA, as armas de fogo são mais utilizadas para suicídios do que para homicídios. O risco de suicídio é maior nos estados com mais proprietários de armas do que nos estados com menos proprietários de armas de fogo.

O suicídio deve ser tratado como um problema de saúde pública. Hoje, o Brasil tem uma política em relação à posse de armas que está entre as mais protetivas que existem. Devemos discutir com seriedade, no meio médico, a proposta de flexibilização da posse de armas de fogo. A legislação dos EUA é a mais flexível do mundo e seus índices de suicídio são bastante altos, sem contar com os atiradores que causam centenas de mortes em locais públicos. Um país como o Brasil terá condições de controlar todo esse comércio?

Artigo publicado no Medscape em 04 de dezembro de 2018